A CONDIÇÃO DOS VELHOS NA HISTÓRIA CULTURAL DA HUMANIDADE
“A China proporcionou aos velhos uma condição singularmente privilegiada. A qualificação e a responsabilidade das pessoas aumentava com os anos e no cume encontravam-se os idosos. E essa posição elevada refletia-se na família, sendo que toda a casa devia obediência ao homem mais idoso e, sua autoridade, não diminuía com a idade. Confúcio (551 a.C. - 479 a.C.) justificava moralmente essa autoridade associando velhice à posse da sabedoria. Na literatura chinesa a velhice nunca é denunciada como um flagelo.
Já no Ocidente, o primeiro texto conhecido dedicado à velhice, escrito em 2500 antes de Cristo por Ptah-hotep, filósofo e poeta egípcio, traça um quadro sombrio:
Como é penoso o fim de um velho! Ele se enfraquece a cada dia; sua vista cansa, seus ouvidos tornam-se surdos; sua força declina; seu coração não tem mais repouso; sua boca torna-se silenciosa e não fala mais. Suas faculdades intelectuais diminuem, e lhe é impossível lembrar-se hoje do que aconteceu ontem. Todos os seus ossos doem. As ocupações que até recentemente causavam prazer só se realizam com dificuldade, e o sentido do paladar desaparece. A velhice é o pior dos infortúnios que pode afligir um homem. O nariz entope, e não se pode mais sentir nenhum odor.
Alerta a autora que essa “enumeração desolada das deficiências da velhice será encontrada em todas as épocas, e é importante sublinhar a permanência desse tema.” Ainda hoje, prevalecem idéias, mitos e preconceitos que datam de priscas eras.
O respeito do povo judeu pelos idosos pode ser verificado através de seu principal livro: A Bíblia, nos informa Leme. No livro bíblico Eclesiástico ( AT ) consta “Obrigações dos filhos” onde podemos encontrar recomendações quanto ao cuidado com os idosos: “Filho, ampara a velhice de teu pai, e não lhe dês pesares em sua vida: e se lhe forem faltando as forças, suporta-o, e não o desprezes por poderes mais do que ele: porque a caridade que tu tiveres usado com teu pai, não ficará posta em esquecimento” (Ecle, 3:14,15). Sobre a “Maturidade da Velhice”: “Como acharás tu na tua velhice, que o não ajuntaste na tua mocidade? Quão belo é às cãs o juízo, e aos anciãos o ter conhecimento do conselho! Quão bem parece a sabedoria nos velhos, e a inteligência, e o conselho nas pessoas da alta jerarquia! A experiência consumada é a coroa dos velhos, e o temor de Deus é a sua glória” (Ecle, 25:5-8).
No povo judeu, a sociedade descrita é patriarcal, na qual os grandes ancestrais eram os eleitos e os porta-vozes de Deus, eram venerados e respeitados. Tanto a velhice era valorizada que, maltratar os pais era um crime que podia ser punido com a morte. Os idosos tinham um papel político na sociedade, pois o órgão máximo do povo hebreu, o “Sinédrio”, era composto por setenta (70) “anciãos do povo”, homens ilustres, cujas filhas poderiam casar-se com sacerdotes.
Na Grécia Antiga não se verifica uma unidade de tratamento para com os mais velhos. Pode-se dizer que a velhice era mesmo uma etapa da vida temida pelos gregos, principalmente pela civilização helênica, onde o vigor característico da juventude era muito valorizado. Porém, de maneira geral, a velhice estava associada à idéia de honra, o que pode ser verificado mediante o fato de o rei ser assistido por um conselho de anciãos, mesmo que esse conselho tivesse apenas um papel consultivo, para o qual alertava Homero. É que nessa época (séc. IX) a coragem física e valores guerreiros desempenhavam um papel essencial, como podemos constatar através da obra “Ilíada”, de maneira que a velhice e a morte eram evocadas de forma a induzir a uma aceitação deliberada da condição humana, de acordo com Braunstein e Pépin. Portanto, a velhice era associada à experiência, à arte da palavra e à autoridade, mas era reconhecida a fragilidade física do idoso.
Para Mascaro, a idade madura e a idade avançada não deixaram de ser prestigiadas na Grécia, pela ausência do vigor físico pois, segundo ela, não confiavam nos jovens para os negócios públicos, lembrando os conselhos de anciãos. O conselho de anciãos de Esparta, chamado Gerúsia, era composto de pessoas com mais de 60 anos, eram muito respeitados e tinham bastante autoridade, além de mestres, possuíam o poder de avaliar e decidir qual recém-nascido deveria viver ou morrer. Mesmo quando a idade mínima para ser membro do conselho fosse 30 anos, como era no caso de Atenas, para fazer parte da Assembléia num tribunal de arbitragem era necessário ter 60 anos.
Quando a Grécia viveu um regime feudal o papel dos velhos permaneceu mais honorífico que eficaz, pois a propriedade era defendida pelas forças das armas, atributo dos jovens. A condição dos velhos passou a ter outro enfoque quando se colocou o regime de propriedade, garantida não mais pela força, mas sim pela lei, possibilitou que os idosos por acumularem mais riqueza que os jovens, ocupassem o alto da escala social.
Em Esparta a velhice era honrada, os homens de 60 anos ou mais liberados de suas obrigações militares, estavam predestinados a manter a ordem que lhes fora imposta, ou seja, manter o status quo da sociedade oligárquica, opressiva e estática, por isso eles eram encarregados de formar a juventude e nelas inculcavam o respeito à idade avançada.
Em Atenas, as leis de Sólon conferiram todo o poder às pessoas idosas e, enquanto o regime permaneceu aristocrático e conservador, a velha geração manteve suas prerrogativas, que foram perdidas quando estabelecida a democracia.
Platão e Aristóteles refletiram sobre a velhice e chegaram a conclusões opostas. Platão, estreitamente ligado a suas opções políticas, criticava severamente a democracia ateniense que não respeitava suficientemente as competências, deplorando que Esparta escolhesse para magistrados não os homens mais sábios, isto é, os velhos, mas aqueles que a guerra formara. Segundo ele, os homens só estariam capacitados para governar a Polis após uma educação que começasse na adolescência e que frutificasse plenamente aos 50 anos, idade a partir da qual o filósofo possuiria a verdade. Sua filosofia o autorizava a desprezar o declínio físico do indivíduo, pois a verdade do homem residiria na sua alma imortal, que se aparentava às idéias, enquanto que o corpo não passava de uma realidade ilusória. Aristóteles, por sua vez, afirmava que a alma não era puro intelecto, pois o homem só poderia existir através da união do corpo e alma, consequentemente, o corpo deveria permanecer intacto para que a velhice fosse feliz. Assim, “uma bela velhice é aquela que tem a lentidão da idade, mas sem deficiências. Ela depende ao mesmo tempo das vantagens corporais que se poderia ter, e também do acaso.” A concepção de velhice de Aristóteles afasta os idosos do poder, que são vistos como indivíduos enfraquecidos.
Entre os romanos, a relação do velho com a sociedade se dá através da propriedade. Enquanto proprietários, a propriedade privada era garantida por lei e eles eram respeitados. E, foram os ricos proprietários fundiários, que haviam chegado ao fim de suas carreiras de magistrados, que detiveram o poder, eles compunham o senado. O senado era a mais importante instituição de poder, cujo nome deriva de “senex”, que significa idoso, valorizando a experiência destes cidadãos.
Esta situação privilegiada dos velhos afirma-se no interior da família, onde o poder do paterfamilias é quase sem limites. Ele tem os mesmos direitos sobre as pessoas do que sobre as coisas: matar, mutilar e vender. O regime republicano fracassa a partir dos Gracos e o senado perde pouco a pouco seus poderes que passam às mãos dos militares, ou seja, de homens jovens. Cícero, que era senador, compõe, aos 63 anos, uma defesa da velhice para reforçar a autoridade do senado que estava abalada. Ele chama de preconceitos as idéias que se têm da velhice, mas reconhece que, em geral, ela é detestada.
Durante o Baixo-Império e a alta Idade Média (século V ao X), quando a sociedade era regida pelas armas, os velhos foram excluídos da vida pública. Na família, na Idade Média, o avô era respeitado, os pais exigiam obediência de seus filhos e lhes impunham casamentos. Ao fim da Idade Média, no século XIV, quando a propriedade funda-se em contratos, e não na força física, os velhos podem tornar-se poderosos através da acumulação de riquezas. Observa-se que, os antigos não tinham como referência a idade cronológica para estabelecer a condição de velhice, o tempo de velhice poderia ser a partir dos 45 anos, considerando que, com esta idade, a pessoa já detinha saber ou propriedade, o que lhe assegurava um papel na sociedade, e a longevidade era rara, poucos viviam muito mais do que isso. Carlos V, por exemplo, morre com 42 anos de idade, em 1380, com a reputação de um velho sábio.
É possível verificar a associação entre velhice e sabedoria também na descrição das idades da vida, apresentada por Ariès, onde as idades são representadas no século XVI, de acordo com as funções sociais. Em uma pintura no palácio dos Doges, pode ser visto:
“Primeiro, a idade dos brinquedos: as crianças brincam com um cavalo de pau, uma boneca, um pequeno moinho ou pássaros amarrados. Depois, a idade da escola: os meninos aprendem a ler ou seguram um livro e um estojo; as meninas aprendem a fiar. Em seguida, as idades do amor ou dos esportes da corte e da cavalaria: festas, passeios de rapazes e moças, corte de amor, as bodas ou a caçada do mês de maio dos calendários. Em seguida, as idades da guerra e da cavalaria: um homem armado. Finalmente, as idades sedentárias, dos homens da lei, da ciência ou do estudo: o velho sábio barbudo vestido segundo a moda antiga, diante
de sua escrivaninha, perto da lareira."
No século XVIII, em toda a Europa, a população cresce e rejuvenesce graças a uma melhor higiene, mas o domínio do velho na família e na sociedade começou a mudar, e acredita-se que o início da perda de poder e de prestígio se deva a Revolução Industrial, que ocorreu no fim desse século, e que pode ser considerada a causa fundamental de grandes transformações estruturais, especialmente no mundo ocidental, que interferiram na estrutura familiar, nas relações de trabalho, nos valores econômicos e em outros campos. Surge a família nuclear, na qual o idoso perde seu espaço, e não sendo mais produtivo economicamente, passa a ser considerado improdutivo e descartável. E assim instala-se o conceito negativo de velhice.
De acordo com Beauvoir as concepções de velhice variam conforme o interesse das classes sociais, manifestas pelos legisladores e moralistas, e esta questão está sempre relacionada com a questão do poder, pois até o século XIX, ela não encontrou referência aos velhos pobres, que eram pouco numerosos e sua vida era mais curta. A velhice idealizada e prestigiada na mitologia e no folclore, observa Mascaro, é representada na maioria das vezes pela imagem do homem idoso, cheio de vigor, bondade e sabedoria, enquanto que a imagem da velhice feminina é identificada inúmeras vezes com o lado negativo e sombrio da vida. O prestígio e a valorização da mulher estavam relacionados à procriação, após a menopausa, perdiam seu valor.
As ideologias predominantes em cada época reconheciam a velhice como categoria social, ora exaltando-a como virtude, ora marginalizando-a pela ausência da força física. Já aos artistas e poetas a velhice só interessou enquanto aventura individual, e desta forma era temida e apresentada como algo negativo, evidenciando-se as suas limitações. Como exemplo podemos citar as obras referidas por Braunstein e Pépin: “Velha mulher bêbada”, escultura de Míron de Tebas, Grécia, século I, que retrata o corpo descarnado e a atitude decadente; as dramatizações da Escola de Pérgamo, Grécia, século I, que representavam as mulheres velhas associando velhice à decadência. Os autores referiram-se também à “Ilíada”, de Homero (século IX), onde a força, coragem física e valores guerreiros desempenhavam um papel essencial, evocando a velhice e a morte de forma a induzir a uma aceitação deliberada da trágica condição humana.
De toda a história da velhice o que verifica-se é que, mesmo tendo sido reconhecida como sabedoria, nunca foi ignorada sua fragilidade, por isso as imagens que dela se tem em diferentes épocas, ora evocavam um ou outro atributo.Mas o interessante é que hoje já não tem sentido a imagem da decrepitude do ancião dos séculos XVI e XVII. O ancião desapareceu, como diz Ariès, foi substituído pelo “homem de uma certa idade”, e por “senhores ou senhoras bem conservados”. Segundo o autor, “a idéia tecnológica de conservação substituiu a idéia ao mesmo tempo biológica e moral da velhice,”associadas à fragilidade e à sabedoria.”
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Fonte:
ELIANE JOST BLESSMANN: "CORPOREIDADE E ENVELHECIMENTO: O SIGNIFICADO DO CORPO NA VELHICE". (Dissertação de Mestrado em Ciências do Movimento Humano Universidade Federal do Rio Grande do Sul Programa de Pós-Graduação Escola de Educação Física. Orientador: Silvino Santin). Porto Alegre, 2003.
Nota:
O título e a imagem inseridos no texto não se incluem na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
Este escrito me ajudou muito na construção de um trabalho.
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ExcluirUsei parte como citação no meu tc
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