A ótica feminina na Ciência

"Estudiosos de gênero analisaram a participação das mulheres nas transformações sociais sob diferentes pontos de vista. Em O Feminismo mudou a Ciência?, esmiuçando rigorosamente o fazer das mulheres nas várias ciências e sob vários ângulos, Schienbinger (2001), mostra que a presença da mulher no fazer científico é importante não apenas para dirimir a segregação por sexo. Seu trabalho busca iluminar a dúvida: mulheres têm feito ou podem fazer ciência diferentemente? O questionamento que leva à investigação científica pela ótica feminina é diferenciado e por isso mesmo leva a resultados diversos daqueles obtidos por homens?

Algumas pesquisas, citadas por Schienbinger (2001), que procurou estudar se e como as mulheres abordam a ciência diferentemente dos homens, mostram que cientistas altamente considerados acreditam que mulheres fazem ciência de maneira diferente. As diferenças vão desde maneiras de agir como: serem mais cuidadosas e atentas, evitar competição cerrada, até a escolha do tópico de pesquisa. Parece existir um fazer feminino desejável em ciência, no entanto algumas barreiras ainda persistem impedindo a participação mais igualitária.

O feminismo liberal serviu às mulheres, mas segundo Schiebinger (2001) também as encurralou quando, por exemplo, na tentativa de estender os direitos dos homens às mulheres, ignorou as diferenças de gênero, até mesmo negando-as. Isso requer que as mulheres possuam características masculinizadas. “O abandono dos atavios da ‘feminilidade’ não s ó é geralmente necessário para uma mulher ser levada a sério como cientista, mas é com freqüência importante também para evitar atenção indesejável à sua sexualidade” (SCHIEBINGER, 2001, p. 152).

A grande matemática alemã Emmy Noether foi afetuosamente apelidada de “der Noether” (“der” sendo um pronome masculino), não apenas porque ela era de constituição pesada e voz poderosa, mas também por seu poder como uma pensadora criativa que parecia ter rompido a barreira do sexo (SCHIEBINGER, 2001 p. 154).

Em seguida, na década de 1980 surgiu o feminismo da diferença. Enfatizando a diferença entre os sexos e reavaliando as qualidades humanas como a subjetividade, a cooperação, o sentimento e a empatia. Para que as mulheres se tornassem iguais na ciência, era preciso mudanças nas aulas de ciências, nos laboratórios, nas teorias, nos currículos. Defendia-se também que a mulher poderia “reformar a ciência, desviando o conhecimento da busca de poder para maior igualdade, liberdade e fraternidade para toda a espécie humana” (SCHIEBINGER,
2001, p. 24).

Ao olhar os resultados da pesquisa, por exemplo, em primatologia, após a entrada de mulheres na área, nota-se que desde a hipótese considerada ao iniciar uma pesquisa concorrem representações de gênero. Ao generalizar resultados de pesquisas com babuínos65, justapostos à evolução das espécies, como efetivos para justificar o comportamento de outros primatas, incluindo os humanos, durante algum tempo a agressividade entre os machos e a opressão das fêmeas pelos machos eram naturalizadas aos outros, por extensão do comportamento desses macacos.

Os primatólogos tendiam a dividir os primatas em três grupos para estudo: machos dominantes, fêmeas e jovens machos periféricos. Essas divisões reforçavam a noção de competição, entre machos dominantes que controlavam os limites territoriais e mantinham a ordem entre machos menores. (...) Igualmente importante: a imagem da sociedade primata como agressiva, competitiva e dominada pelos machos funcionava bem para um público que vivia durante a Guerra Fria. Os babuínos forneciam uma explicação pronta para a guerra e a violência humanas e agressão masculina. Neste caso a escolha do objeto introduzia um potente elemento antifeminista na primatologia, destacando e reforçando noções sobre domínio masculino.
(SCHIEBINGER, 2001 p. 256).

Graças à entrada de mulheres nesse ramo as idéias sobre a natureza dos primatas humanos se alteraram; Schienbinger faz notar que ao crescer o número de doutorados de mulheres nesta área, de zer o na década de 1960 para 78% do total na atualidade, paradigmas fundamentais da primatologia tiveram que ser readaptados, demonstrando que o olhar diferenciado muda o rumo da pesquisa científica.

O fato de escolher outras tribos de macacos, menos agressivos e com comportamentos diferenciados em relação à formação da família e responsabilidade com a prole, assim como abordar subjetividades entre machos e fêmeas, antes desconsideradas, como interações macho-fêmea que vão além das interpretações estritas do sexo vinculadas à reprodução, faz surgir novas representações sobre as sociedades humanas, e essas foram sendo incorporadas aos discursos científicos. Ao passar para o senso comum, marcam a transformação das representações vigentes.

Ao transformar conceitos em primatologia, as ciências correlatas são contaminadas. Como observa Schienbinger (2001), a sociobilogia ao ser orientada para as fêmeas e escrita por mulheres, lançou suspeitas sobre concepções básicas a respeito de agressão, acesso reprodutivo e dominação. Seus conceitos anteriores funcionavam

(...) primeiramente como um antídoto ao feminismo: se fundamentos, como a divisão sexual do trabalho, estão arraigados nas espécies, esforços para se contrapor a eles são temerários. (SCHIEBINGER, 2001 p. 250).

Conceitos fundamentais na teoria seleção sexual, como a noção de que os machos são competitivos e as fêmeas são tímidas, começaram a ser postas
em xeque.

Linda Fedigan citada por Schienbinger (2001, p.254), responsável pela derrocada do mito do “macaco assassino” argumenta que graças as primatólogas feministas as fêmeas foram reconhecidas como tendo seu lugar específico na sociedade primatas, já não são consideradas como secundárias para o processo da evolução.

Novos paradigmas gerais, que reorganizem totalmente essas disciplinas, ainda não surgiram, porém, o rumo da mudança despontou. Considerar as fêmeas também passou a ser obrigatório nas pesquisa em medicina. Evitar a sazonalidade dos ciclos femininos, retardando resultados, justificava sua exclusão. Os resultados antes obtidos testando em “amostras” e “grupos de controle” constituídos por machos, que poderiam ser danosos se generalizados pra fêmeas, passaram a ser necessariamente constituídos de porcentagens de cada sexo.

Talvez pelo próprio conteúdo, disciplinas em que objetos de estudo, sobre os quais se lançam as hipóteses, têm correspondentes por analogia com grupos humanos, biologia, sociobiologia, primatologia, assim como arqueologia e antropologia têm logrado evidentes avanços no que concerne a tornar sociedades humanas mais justas na distribuição dos benefícios e recursos. Esse sucesso, obtido por meio de maior inserção de mulheres nestes nichos, não é compartilhado por disciplinas em que questões de gênero não são evidentes no próprio conteúdo, como matemática e as outras ciências ditas duras. Quando se olha para o fazer científico nessas áreas, o panorama já não entusiasma tanto.

Como evidenciar discriminações em campos cujo objeto de pesquisa se distancia tanto quanto possível das subjetividades humanas? As hipóteses sobre o tamanho e funcionamento diferenciado do cérebro de homens e mulheres começam a ser esmiuçadas usando-se técnicas de imageamento não invasivas, como a tomografia por emissão de pósitrons (TEP) e a ressonância magnética funcional (RMF), por meios das quais é possível observar o cérebro em ação. Nessas pesquisas observaram-se diferenças reais no funcionam ento. Estas pesquisas conseguem identificar variações anatômicas em regiões do cérebro.

Os pesquisadores descobriram que determinadas partes do córtex frontal – envolvido em muitas funções cognitivas importantes – são proporcionalmente mais volumosas em mulheres do que em homens, assim como o córtex límbico, envolvido nas reações emocionais
(CAHILL, [s.d], p.8).

O hipocampo, estrutura responsável pelo armazenamento de lembranças e mapeamento do ambiente, também apresentou diferenças relativamente ao sexo, sendo maior nas mulheres do que nos homens. Tais diferenças podem ter relação com a forma como homens e mulheres se orientam espacialmente.

Vários estudos sugerem que os homens tendem a se orientar estimando a distância e sua posição no espaço, enquanto as mulheres se orientam observando pontos de referência. (idem, p. 8).

Os pesquisadores em neurociência têm se empenhado em demonstrar diferenças presentes desde o nascimento e outras que são resultado do amadurecimento devido ao lançamento de hormônios diferentes na corrente sanguínea de acordo com o sexo. Tais estudos lançam debates mais específicos sobre emoções e subjetividades com o propósito de resolver enigmas como o maior índice de depressão em mulheres do que em homens, por exemplo. A hipótese de que as mulheres, por terem o cérebro menor, têm menor capacidade de raciocínio nunca foi constatada nessas medições.

O neurologista Richar Haier submeteu, recentemente, ao TEP homens e mulheres enquanto resolviam problemas de matemática do SAT [logo a seguir mencionados] e descobriu que eles usavam seus cérebros de maneiras bem diferentes a esse respeito. (...) Os homens e as mulheres com alta avaliação tiveram desempenho igualmente bons
(SCHIEBINGER, 2001 p. 318).

Estudos para verificar o desempenho de homens e mulheres em ciências e matemática são abordados através de testes e análise puramente das respostas a esses testes. Schienbinger (2001) salienta as formas como esses testes privilegiam o sexo masculino. Uma dessas formas é usar resultados conhecidos da neurociência, como a maior habilidade verbal nas mulheres e espacial nos homens, formulando questões que privilegiem a última, por exemplo.


Nos EUA há vários testes aplicados nas escolas de nível médio visando avaliar desempenho dos estudantes no intuito de prever seu desempenho nos primeiros anos da graduação. A autora relata a reformulação dos testes, adaptando-os para manter o mito da curta habilidade das meninas no raciocínio matemático, já que desde 1942 admite-se a medição da inteligência por meio desses testes.

O teste Binet, original de 1903, mostrava que as meninas eram mais inteligentes do que os meninos de acordo com suas medidas. Como Phyllis Rosser do Center for Women Policy Studies [Centro de Estudos de Política para Mulheres] documentou, no início da década de 1970, o Educational Testing Service dispôs-se a tornar o SAT- Verbal mais “neutro em relação ao sexo”. Seus esforços resultaram em um deslocamento de 3 – 10 pontos das moças para os rapazes – um resultado que o ETS considerou neutro em gênero, embora de fato favorecesse ligeiramente os rapazes
(SCHIEBINGER, 2001 p. 320).

Assim, ao formularem-se questões que privilegiem a compreensão da leitura pela ótica masculina, em conteúdos sobre esporte ou ciências, por exemplo, consegue-se aumentar os índices de acertos nesses testes. Os mitos que envolvem o conhecimento matemático são mantidos dessa maneira, dentro e fora das universidades. Desde cedo se aprende que matemática e genialidade têm um laço umbilical, matemáticos são tempestuosos e trabalham sozinhos na criação de “grande” matemática pela pura força de sua criatividade. Essas lendas, segundo a autora, também contribuem para afastar as mulheres da matemática.

A afinidade da física com guerra foi suposta como um motivo do distanciamento das mulheres. Vários exemplos do conhecimento em física aplicada ter sido desenvolvido para usos bélicos estão presentes na história da ciência, como “os espelhos ardentes” de Arquimedes; some-se a isto a observação da proximidade do pensador em ciências (Newton, Galileu, Arquimedes, citando alguns) do poder do estado, que sob a denominação de defesa, patrocina a pesquisa com esses fins.

Acreditou-se por algum tempo que a militarização do conhecimento, teria peso considerável nas decisões de meninas em recusar-se a cursar a disciplina. Schienbinger (2001) tenta desfazer essa noção ao revelar a quantidade de mulheres que participaram do projeto Manhattam e que orgulhosamente publicaram seus esforços em livro. Tanto companheiras de cientistas, como pesquisadoras diretamente envolvidas na construção da bomba atômica, participaram dessa conquista de destruição em massa, patrocinada pelo governo americano no projeto de pesquisa cooperativo que envolveu milhares dos melhores pesquisadores na criação de um único produto.

Os laços que a Física mantém com o poder dos governos, sobretudo pelo seu sucesso na guerra, segundo a autora mostram-se em declínio com o fim da Guerr a Fria, e com os financiamentos migrando para o Projeto Genoma Humano e a Biologia Molecular despontando como a ciência principal (grifo da autora). Haveria a possibilidade de uma retração no acesso das mulheres a essa área?


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Fonte:
Joliane Olschowsky da Cruz: “MULHER NA CIÊNCIA: Representação ou Ficção”. ( Tese apresentada como exigência para obtenção do título de Doutora em Ciências da Comunicação no programa de pós-graduação do Departamento de Cinema, Televisão e Rádio da Escola de Comunicações e Artes da Universidade São Paulo - USP. Área de Concentração: Estudo dos Meios e da Produção Mediática. Orientador: Prof. Dr.Marcello Giovanni Tassara). São Paulo, 2007.

Nota
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As referências bibliográficas de que faz menção a autora estão devidamente catalogadas na citada obra.

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