"A Abolição da escravidão, em 1888, decretou o fim do trabalho cativo no Brasil, marcou o início da história da classe trabalhadora brasileira, como a compreendemos hoje, e destruiu o sistema de produção colonial, que por mais de três séculos, predominou e ditou as relações na sociedade brasileira. Importante corrente historiográfica entende que com o fim de escravidão, acabou também o fenômeno quilombola. O quilombo que até a Abolição representava um espaço de autonomia da força de trabalho perde o sentido, visto que a lei Áurea veio garantir as liberdades civis mínimas dos trabalhadores escravizados até então e dos que se encontravam escondidos no interior das matas.
Antes mesmo da Abolição, alguns senhores doaram as terras aos cativos. As doações ocorreram em vida e por meio de testamento. Essas terras negras tenderam a se transformar em pontos de atração para outros afro-descendentes. Também anteriormente à lei Áurea, cativos fugidos, libertos, negros livres sobreviveram como caboclos nas terras mais pobres das fazendas, ou entre as propriedades, em terras ainda não inseridas no circuito comercial. Ou seja, tanto nas comunidades negras como nos quilombos, as condições existenciais eram muito parecidas.
Estes trabalhadores viveram em terras, na maioria dos casos, sem documentação comprobatória de domínio. As comunidades foram crescendo, incorporando novos indivíduos, ocupando mais espaço territorial, mas sem maiores preocupações com a documentação legal. Eram pessoas que lutavam diariamente pela sobrevivência, não estavam acostumadas a lidar com papéis.
Na verdade, quando usamos a expressão – comunidades negras – estamos nos referindo a comunidades constituídas por diversas etnias, com predomínio do elemento afro-brasileiro. Estas comunidades formaram-se sobretudo em terras doadas, e em menor número, em terras originadas de antigos quilombos; terras oriundas de compra; comunidades que se assentaram em terras devolutas; terras abandonadas pelos antigos proprietários; terras obtidas por prestação de serviços guerreiros; ocupação de terras indígenas e terras originadas a partir da desagregação das fazendas de ordens religiosas.
Nas primeiras décadas do século XX, as comunidades negras viveram relativo isolamento. Segundo Maestri, “o distanciamento das roças das vilas defendia os caboclos negros das investidas dos grandes proprietários e aumentava a dificuldade da mercantilização da produção”. As “terras de preto” permaneceram invisíveis aos olhos dos especuladores, porém, conforme foram avançando as fronteiras agrícolas, as terras das comunidades passaram a ser cobiçadas por latifundiários, grileiros, etc.
A relativa abundância de terras cultiváveis favoreceu que camponeses pobres se instalassem na terra sem se preocupar com o título. Em sua dissertação de mestrado, o historiador Francisco C. Teixeira da Silva apresentou uma correspondência enviada ao Ministério do Império por um pároco, que atuava no sertão do rio São Francisco, logo após a promulgação da Lei de Terras em 1850, comunicando que o “sollo de toda freguesia do Porto da Folha he apreendido pelas posses sem se preocuparem com os títulos legais”.
Casos semelhante aos das posses sem título de “Porto da Folha” repetiram-se em todo território brasileiro. Segundo José de Souza Martins, nos primeiros tempos de “vigência do trabalho escravo a terra era praticamente destituída de valor”. Somente com a crise do trabalho servil, “o objeto da renda capitalizada passa do escravo para a terra”. O pequeno lavrador, o camponês pobre, o caboclo ocupavam terras devolutas. Do mesmo modo, no período inicial de sua formação, as comunidades negras não se preocuparam com a legalização das terras.
A Lei de Terras, de 1850, instituiu bloqueios “ao acesso à propriedade por parte dos trabalhadores, de modo que eles se tornassem compulsoriamente força-de-trabalho das grandes fazendas”. Os grandes proprietários “conseguiram registrar em cartório amplas áreas de terra, já que não se reconheciam as posses tradicionais e as formas de ocupação comunitárias”. A Lei não reconheceu as chamadas “terras de negros ou terras de índios” e contribuiu para a expropriação “das áreas ocupadas pelo campesinato negro, índio ou mestiço, formado ao longo dos séculos da história colonial”.
No Brasil, a grande propriedade não conheceu praticamente nenhum limite. Após 1888, nenhum projeto para assentamento de ex-cativos foi efetivado. A partir de 1964, o regime militar “reforçou politicamente a irracionalidade da propriedade fundiária no desenvolvimento capitalista, reforçando, consequentemente, o sistema oligárquico nela apoiado”. Desta forma, qualquer possibilidade de reforma agrária foi definitivamente afastada.”
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Fonte:
ADELMIR FIABANI: "OS NOVOS QUILOMBOS: Luta pela terra e afirmação étnica no Brasil - 1988-2008". (Tese apresentada à Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor em História. Orientador: Prof. Dr. Karl Martin Monsma). São Leopoldo, 2008.
Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
Terras negras
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