A velhice para a ciência

“O enfoque filosófico acerca da velhice dominou até meados do século XIX, quando a modernidade científica começou a lançar suas luzes sobre a questão. O psicólogo argentino Ricardo Iacub, em seu livro Erótica e velhice: perspectivas do ocidente, de 2006, destaca perdas e ganhos nesse processo: se por um lado a velhice deixava de ser encarada somente pelo aspecto filosófico, o que significaria uma ampliação dos conceitos a respeito do tema, por outro ela passou a ser tratada quase que exclusivamente como doença. Segundo Iacub, o discurso médico acabou por tirar o conteúdo positivo do envelhecimento:

O vocabulário que se tornou frequente entre os médicos para designar a particularidade da velhice incluía termos como “debilitamento”, “alteração”, “atrofia”, “degeneração”, “lesão”, “esclerose”, “ulceração”. Também surgiu uma longa série de patologias, definidas pela idade, que recebiam o epíteto de “senis” como marca característica que as especificava: “arco senil”, “demência senil”, “psicose senil”, “gangrena senil”, “síncope senil” [...] Dessa maneira, os atributos ligados à sabedoria com os que havia sido revestida a imagem do velho se transformaram e surgiu um novo imaginário, no qual o corpo do ancião apareceu como uma curiosidade próxima ao monstruoso. (IACUB, 2007, p.71-72)

A reformulação operada por conta da medicalização da velhice determinou que ela passasse a ser encarada unicamente como resultado do que o indivíduo fez ao longo da vida. Se a vida havia sido de autocontrole, se poderia contar com uma velhice saudável. Do contrário, se teria um velho doente, conforme atesta Iacub: “A modalidade com que essa narrativa foi introduzida no plano religioso entendia a boa velhice como um prêmio ante uma vida virtuosa e a má como um castigo” (2007, p. 73).

Iacub observa que a mudança em relação à velhice a partir do século XIX sinaliza um súbito interesse pelo corpo e tem sua explicação na estrutura política e econômica da época. Com a crescente industrialização determinada pelo capitalismo moderno, o corpo passou a ser um bem utilizado no trabalho e, portanto, na obtenção de renda. Surgiram daí a consciência corporal, a higiene, a preocupação com o saneamento das cidades, com o adequado sepultamento dos cadáveres e inúmeras outras atitudes de caráter profilático.

Tais medidas voltadas à preocupação com o corpo vinham revestidas por um arcabouço de regras a fim de evitar os excessos. Nesse sentido, chama a atenção o discurso acerca da mulher velha, mais uma vez marcado pelo preconceito. Na mulher pós-menopausa eram apontadas como características a virilização, tendência maior a neuroses e psicoses e até um súbito interesse erótico por outras mulheres. Ainda assim, considerava-se, de acordo com Iacub, que a sexualidade feminina desaparecia antes da masculina, não apenas pela determinação biológica do climatério e da menopausa, mas porque a velha, segundo Gregório Marañón (1930), citado por Iacub (2007, p. 81), “experimenta sua ruína física de maneira muito mais profunda e precoce que o homem que, mesmo nos limites da velhice, pode conservar uma aparência cotizável no tráfico amoroso”.

Data dessa época também o surgimento do termo gerontofilia, utilizado, conforme Iacub, em “referência aos jovens que desejam um velho, embora também apareça a ideia dos velhos que desejam um jovem” (2007, p. 83). Portanto, constata Iacub, com o discurso medicalizado do século XIX, a atração por alguém bem mais jovem ou bem mais velho entrava para a esfera do patológico; era uma perversão:

No repertório, comentário e nominação de perversões sexuais humanas, o médico legista alemão Richard Von Krafft-Ebing (1840-1902) considerava que a gerontofilia era uma perversão ou degeneração psíquica, localizada entre a zoofilia, a homossexualidade e a pedofilia, ou seja, entre as variantes perversas segundo o objeto. (IACUB, 2007, p. 83)

Observa Iacub que todas as perversões sexuais acima citadas, incluindo a inclinação sexual por pessoas mais velhas ou mais novas, apresentavam em comum o fato de não terem como meta a procriação. Evidenciava-se, portanto, o peso dos conceitos religiosos sobre a ciência.

O panorama, ainda carregado de preconceito e influenciado por dogmas, daria origem, segundo Iacub, a muitas outras teorias sobre a velhice, entre elas a que defendia a abstinência como forma de preservar as forças; o uso de elementos associados à sexualidade, como ingestão de testículos, supondo que assim se resgataria a juventude; e a crença de que o indivíduo, na velhice, tenderia ao retorno ao estado inorgânico tornando-se, por isso, egoísta e narcisista. Sobre essa posição, o psicólogo destaca sua clara tendência evolucionista ao situar o velho “como um sujeito que se retira para dar passagem às gerações seguintes” (2007, p. 88). Conforme o teórico, dominando todo o discurso da época pairava a ideia, própria do desenvolvimentista século XIX, de que na velhice, cessada a capacidade reprodutiva, cessava também a utilidade da pessoa.

A partir de meados do século XX as mudanças operadas na sociedade acabaram por refletir-se no olhar lançado sobre o tema. Em 1948, o zoólogo norte-americano Alfred Kinsey publica sua pesquisa enfocando a sexualidade. A obra Comportamento sexual no macho humano, que ficou conhecida como Relatório Kinsey, continha 735 páginas, mas apenas três sobre a velhice. Segundo Kinsey (1949), citado por Iacub (2007, p. 136), “uma das causas da diminuição da atividade sexual era a declinação física e fisiológica, que gerava fadiga”. Além disso, apontava também como fator para a redução, “o tédio diante da repetição da mesma experiência”.

Já a dupla formada pelo médico William Masters e a psicóloga Virginia Johnson em A incompetência sexual (1979), lançado em 1970, dedica dois capítulos à sexualidade de homens e mulheres idosos. O estudo alerta para os preconceitos que cercam o sexo após os cinquenta anos e afirma que tanto homens quanto mulheres podem e devem manter suas atividades eróticas ao longo do processo de envelhecimento. Referindo-se especificamente às mulheres idosas, assegura:

Os falsos conceitos, as falácias, e até mesmo tabus dirigidos para a função sexual das mulheres que estão no período menopáusico ou pós-menopáusico são incontáveis. O conhecimento das variações naturais no ciclo sexual feminino, que surgem com o processo de envelhecimento, tem sido extremamente limitado [...] Devemos, com efeito, destruir o conceito de que as mulheres no grupo de idade entre 50 e 70 anos não só não têm interesse, como também não têm facilidade alguma para a expressão sexual ativa. Nada poderia estar mais longe da verdade do que a ideia frequentemente expressada de que as mulheres idosas não conservam um nível elevado de orientação sexual. (MASTERS; JOHNSON, 1979, p. 345-346)

Atualmente, ainda que perdurem estigmas, tem havido uma tendência a inserir os idosos em mais um dos muitos grupos que lutam por seus direitos e, dessa forma, lhes conceder autonomia para viver como melhor entenderem. Iacub cita como um dos fatores fundamentais a colaborar nesse novo olhar, o fato de a idade, na pós-modernidade, ter sido desconstruída. Segundo Xavier Gaullier (1999), citado por Iacub (2007, p. 120-121), “a sociedade se acostumou ao estudante de 70 anos, ao diretor de universidade de 30, ao prefeito de 25 anos, à avó de 35 anos, ao aposentado de 50, ao pai de 65 que tem um filho no jardim da infância. As normas e restrições relativas à idade perdem importância”.

O resultado desses olhares múltiplos é um processo: a velhice vem mudando nas últimas décadas, se prestando, inclusive, para discursos fáceis. O direito à sexualidade, por exemplo, tanto pode servir ao efetivo exercício da liberdade como a uma tirania. Julgada um defeito pelo circo midiático que expõe modelos de velhos saudáveis, cheios de energia e de força, a velhice com suas mazelas naturais parece estar condenada. Ser velho continua sendo difícil, com a diferença de que, agora, há a alternativa de não sê-lo, de permanecer jovem à custa de cirurgias, academias, cursos de atualização, atividades múltiplas e outras tantas formas de negar a passagem do tempo.”

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Fonte:
Maria Rosilane Zoch Romero: “EROTISMO, VELHICE E CONHECIMENTO EM O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA” (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras – Mestrado, Área de Concentração em Leitura e Cognição, Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Letras. Orientador: Prof. Dr. Norberto Perkoski). Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Santa Cruz do Sul, 2009.

Nota
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As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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