As festas no Brasil: um breve panorama historiográfico

“No Brasil, os historiadores seguiram igualmente a tendência de valorização das festas como desdobramento da ampliação de eixos temáticos produzidos pela adoção, a partir dos anos de 1980, da História Cultural. A historiografia nacional que nascia sobre o tema dialogou com a corrente francesa, com a produção anglo-saxônica e a micro história italiana.

Não são novos os documentos referentes às festas brasileiras, desde o período colonial há registros deles, porém, somente de modo recente, a historiografia nacional vem (re) descobrindo as fontes que tratam desse objeto, tais como: relatos e trabalho produzidos por viajantes; cartas jesuíticas; processos da Santa Inquisição; cordéis e crônicas históricas; iconografia, obras variadas, o estudo dos folcloristas, fontes orais, entre outras. Toda essa pluralidade de fontes passou a ser garimpada pelos historiadores brasileiros para se construírem novos trabalhos tendo por tema a festa.

É seguramente na década de 1990 que as pesquisas sobre as festas são catapultadas nas academias do País, não só com uma boa produção textual, mas também, ao mesmo tempo, com a realização de inúmeros seminários e encontros sobre a temática. István Jancsó e Íris Kantso foram os idealizadores da publicação Festa: cultura e sociabilidade na América portuguesa182, decorrência do Seminário de mesmo nome que ocorreu em 1999, na Universidade de São Paulo, e que reuniu os grandes vultos nacionais e internacionais especialistas em festas de diferentes ordens. A coletânea é tida como uma das mais significativas menções sobre festas dos séculos XVI ao XIX.

Um dos primeiros trabalhos que abordam as festas foi concretizado por Mary Del Priore, intitulado Festas e utopias no Brasil colonial, onde a historiadora avaliou as chamadas festas-concessões, consentidas e estimuladas pelo Regente Português ou mesmo pela Igreja Católica, para sancionar seus poderes e fazer à população da colônia obediente. Del Priore também enfatiza que as populações indígenas e africanas criavam subterfúgios para delinear nas festas traços particulares de suas variadas culturas, ressignificando as características “oficiais” do evento festivo. Essa constatação da autora é significante quando me reporto a festa do bumba-meu-boi, pois ela traduz bem essa ideia de “transformação” de moldes da moral europeia e de suas regras, sejam sociais, religiosas ou políticas e lhe imprime características próprias da cultura do índio e do negro.

Trabalhando com o mesmo período de Mary Del Priore, José Ramos Tinhorão, em As festas no Brasil Colonial, principia sua fala contando que as festas de caráter coletivo – tal como hoje a do carnaval, por exemplo – eram impensáveis na ocasião da chegada ao Brasil de portugueses provenientes de uma Europa mal saída do controle teocrático da sociedade, por meio do conceito da responsabilidade pessoal ante o pecado, que conferia aos cristãos vigilância constante contra os impulsos pagãos-dionisíacos legados do mundo antigo. Assim, o que durante mais de duzentos anos se registra como aproveitamento coletivo do lazer na colônia americana portuguesa não seriam propriamente festas consagradas à fruição do impulso individual para o lúdico, mas momentos de sociabilidade festiva, propiciados ora por efemérides ligadas ao poder do Estado, ora pelo calendário religioso posto pelo poder espiritual da Igreja.

A historiografia brasileira explorou temas inusitados, até então com certo ineditismo, como a morte, por exemplo. A obra João José Reis, A morte é uma festa, explora, além da temática da morte, como o próprio nome acena, também a festa. Ela versa sobre os comportamentos humanos ante a morte, sobretudo as cerimônias fúnebres na Bahia, abrangendo o período do século XIX. O historiador baiano considera que as festas de santos se caracterizavam não somente pela devoção ritualística às entidades católicas, mas ao mesmo tempo se convertiam em espaço para a confraternização tendo ao fundo música, bailado, bombo, entre outros artefatos que aludem ao convívio entre o profano e o sagrado.

Nesse orbe de estudos sobre as festas, a História voltou-se para a análise dos textos de folcloristas brasileiros consagrados, como Câmara Cascudo, Sílvio Romero, Mello Morais Filho, entre outros, que produziram verdadeiros “diários etnográficos”, dos quais muitos trataram de descrever o bumba-meu-boi. Festas e Tradições populares do Brasil, de Mello Morais Filho, reeditada pelo Senado Federal, em 2002, é um bom exemplo de recurso apropriado por pesquisadores inquietos com a cultura popular. Os escritos de Mello Morais ganharam visibilidade no período de fins do século XIX e início dos XX por designar como formidáveis as manifestações culturais populares à discussão sobre nacionalidade, sem se furtar de abranger o legado cultural africano para a sociedade brasileira. Os levantamentos de Morais Filho serviram de fonte para obras grandiosas, como as de Gilberto Freyre nos anos 30, chegando a historiadores contemporâneos como Martha Abreu.

A recuperação dos textos de folcloristas por historiadores vem sendo feita com seu devido cuidado, compreendidos no tempo histórico que lhe são próprios, pois boa parte desses estudiosos eram membros de uma dita intelectualidade branca brasileira, cujas análises centravam-se na procura de formas oportunas ou nas procedências e categorizações. Como foi posto por Thompson, “o significado de um ritual só pode ser interpretado quando as fontes (algumas delas coletadas por folcloristas) deixam de ser olhadas como fragmento folclórico, uma "sobrevivência”, e são reinseridas no seu contexto total”. Lição seguida pelos historiadores, inclusive os brasileiros.”

É isso!

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Fonte:
VIVIANE PEDRAZANI: “NO “MIOLO” DA FESTA: um estudo sobre o bumba-meu-boi do Piauí”. (Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em História). Niteró, 2010.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada.

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