Breves considerações sobre a mulher na história

“No que diz respeito ao mundo ocidental observa-se, nitidamente, que, na história da humanidade, a condição das mulheres tem “(...) refletido categoricamente a perspectiva da ocupação do espaço público e privado, a partir dos papéis socialmente construídos como de homens e de mulheres” (Silva, 2000). Desse modo, Silva (2000) esclarece que o mundo do lar é tido, por excelência, como feminino, devendo ser revestido do amor materno, do amor conjugal e do sentimento doméstico da intimidade. Ele está em oposição ao mundo público, da rua, ambiente de relacionamento, inteligência e poder, reservado exclusivamente aos homens.

A mulher tinha como principais papéis os de filha e esposa, permanecendo sempre no seio da família, no interior da proteção do lar. Esse ser, tido como submisso, puro e delicado, deveria demonstrar capacidade de doar-se aos outros, além de dedicar-se à realização de atividades domésticas. Quanto a essa divisão sexual do trabalho, Coutinho (1995) assinala que a dedicação exclusiva das mulheres aos trabalhos domésticos criou uma barreira para sua participação autônoma no domínio da vida pública, ou mesmo impossibilitou essa participação. A vida pública era destinada aos homens e a eles cabia a função de provedores e de protetores do lar, além de possuírem o direito de tomar decisões em nome de todos os que estavam sob sua tutela.

Assim, vemos uma cultura familiar, no mundo ocidental, pautada em polaridades, tais como masculino/feminino, público/privado, dominação/submissão, razão/emoção, legitimando, por vários séculos, a exclusão das mulheres do convívio na esfera pública e limitando as possibilidades de emergirem novas configurações de convivência entre os sexos.

As derradeiras décadas do século XX evidenciaram um modo diferente de a mulher estar no mundo, ou seja, ela passou a participar ativamente dos acontecimentos de ordem política, econômica e social. Vale salientar que, em menos de trinta anos, as mulheres passaram a constituir a metade da população economicamente ativa em todo o mundo (Muraro, 2001). É interessante observar tal mudança de postura, após inúmeros anos em que a mulher esteve à margem das decisões e amplas transformações que afetaram a vida humana. Hoje, podemos afirmar que ela se distanciou, significativamente, do papel que lhe foi reservado através dos tempos, buscando novas formas para a sua existência, integrando-se ao domínio da vida pública, antes destinada apenas aos homens, em uma sociedade marcada pela estrutura do patriarcado.

Em tempos mais recentes, podemos citar, como exemplo desse avanço, a participação expressiva das mulheres no Fórum Social Mundial de 2002, na cidade de Porto Alegre (ES), no qual o engajamento feminino nos diversos debates e conferências foi destaque. Além disso, vale lembrar que, em nosso país, as mulheres já representam 40,4% da população economicamente ativa. Porém não podemos omitir que as desigualdades no tocante à remuneração ainda persistem, evidenciando uma desvalorização do salário da mulher. De acordo com o Censo do IBGE, de 2002, houve um crescimento do ingresso das mulheres no mercado de trabalho, estas superando em 45% o número de homens: as estatísticas apontam para a existência, na atualidade, de um percentual maior de mulheres, nas faixas etárias de 25 a 59 anos, inseridas no mercado de trabalho. Por outro lado, esse mesmo censo indica que os homens continuam a ter uma remuneração maior do que a das mulheres: em 2002, o rendimento médio da mulher foi equivalente a 70,2% da renda do homem, o que significa quase um terço a menos. A pesquisa também revela que a tendência parece ser de aproximação, pois em 1992 uma mulher ganhava, em média, 61% da renda de um homem.

É importante destacar, conforme expõe Badinter (1986), que, no final do século XX, a possibilidade de igualdade entre os sexos passou efetivamente a existir, graças ao abalo dos fundamentos da ideologia patriarcal, sistema de representações que favorecia aos homens o exercício do poder sobre as mulheres. De acordo com essa autora, os papéis sexuais eram bem delimitados até então, o que leva a crer que essa era a principal causa da desigualdade. Ela esclarece ainda que, por tal motivo, a já consolidada distinção sexual das tarefas foi substituída pela não-distinção sexual, gerando rupturas nas certezas relacionadas aos padrões de comportamento feminino e masculino.

Sendo assim, houve uma certa flexibilização no que diz respeito às atribuições assumidas por homens e mulheres, tanto na família quanto em outros contextos sociais. No que se refere à mulher, esta começou a exercer seus direitos de cidadã, deixando de restringir-se ao desempenho exclusivo dos papéis de mãe e esposa, o que possibilitou o estabelecimento de uma relação menos desigual com os homens.

Por outro lado, concordamos com a posição de Goldberg (citado por Giddens, 1993), quando diz que “as mulheres ainda são as principais agentes da criação dos filhos e das tarefas domésticas” (p.172). Vaitsman (2001), no contexto brasileiro, ratifica essa afirmação, ao constatar que, mesmo diante das inúmeras conquistas obtidas pelas mulheres, elas continuam sendo as “(...) principais responsáveis pela procriação e pela esfera de reprodução doméstica” (p.20). Essa situação pode significar, segundo o ponto de vista dessa autora, sobrecarga de trabalho, em vez de emancipação, principalmente se a mulher não divide as tarefas e despesas com o seu parceiro amoroso. De acordo com Badinter (1986), pesquisas realizadas sobre o dia-a-dia dos casais demonstraram que a partilha de tarefas domésticas não é eqüitativa entre os sexos, evidenciando a existência de um maior número de atividades exercidas pela mulher. Uma das conclusões apresentadas por Medeiros (2003), em sua pesquisa realizada na cidade do Natal (RN), sobre a “doença dos nervos”, endossa tal posicionamento, pois revela que a submissão aos maridos e o excesso de responsabilidades domésticas (grifo nosso), “(...) contribuem para o desencadeamento dos sintomas de nervos” (p. 112).

Isso nos faz refletir sobre a proximidade existente entre as questões de gênero, relacionamento amoroso e sofrimento, além de nos remeter ao nosso cotidiano profissional, no qual comumente encontramos mulheres que expressam o sofrimento vivido na relação amorosa, através do “problema de nervos”. Este envolve, segundo a autora anteriormente citada, uma polimorfia de sintomas (fisiológicos, físicos e psíquicos), além de questões tais como gênero, contexto sociocultural e econômico, abuso da medicalização, dentre outros.

Ainda no tocante à dimensão de gênero, vemos que, embora inexista, nos dias de hoje, uma rigidez nas identidades masculina e feminina, entendemos que a figura da mulher continua associada ao domínio do privado, da casa e aos afazeres que lhe são “próprios”. Juntamente com o papel conquistado de profissional, indicador da independência e autonomia femininas, permanece o tradicional papel de dona-de-casa ou “rainha do lar”. Não raramente constatamos tal realidade, em nossa experiência clínica, através de queixas de clientes do sexo feminino sobre as dificuldades de conciliar as tarefas domésticas, a educação dos filhos, o papel de esposa e o desempenho no emprego. De fato, tal situação parece ser desvantajosa para o plano de carreira de qualquer mulher.

Observa-se, atualmente, especialmente nos meios mais desfavorecidos economicamente, um elevado número de mulheres que exercem a função de provedoras da família (Giddens, 1993). Em nossa vida profissional, observamos com freqüência tal situação. Geralmente, elas demonstram insatisfação, cansaço ou mal-estar diante dessa sobrecarga e isso acaba sendo, muitas vezes, o principal motivo de suas queixas de permanência no sofrimento, na relação amorosa. Segundo o Censo do IBGE, de 2002, observa-se, no Brasil, um progressivo crescimento de lares chefiados por mulheres, sendo estas viúvas, separadas/divorciadas ou casadas. O censo mostra que, em 1991 a porcentagem de lares chefiados por mulheres era de 18,1%, contrastando com a situaçãono ano de 2000, quando esse índice aumentou para 24,9%.

Diante do exposto, evidenciamos que as desigualdades e diferenças entre homens e mulheres persistem, mesmo havendo maior flexibilidade em suas identidades. Ocorreu emancipação e, simultaneamente, surgiram novas formas de dominação (Vaitsman,2001), em consequência, talvez, dentre outros fatores, da dificuldade humana de lidar com a diferença.

Pensamos que as mudanças, quando muito intensas, ocorrem de maneira a deixar frestas, espaços vazios nos quais circulam os antigos modos de pensar, sentir e agir, em relação a determinadas questões. É como se certas mudanças precisassem de tempo para se acomodar, para se consolidar. Como assinala Biasoli-Alves (2000), “às vezes, práticas e atitudes parecem assumir apenas e tão somente uma outra roupagem, mostrando, numa análise mais aprofundada, que a maneira de pensar certas questões ainda se encontra presa aos padrões de outras épocas”.

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Fonte:
Ana Regina de Lima Moreira: "COMPREENSÃO DA EXPERIÊNCIA DO SOFRIMENTO DE MULHERES NA RELAÇÃO AMOROSA". (Dissertação de mestrado elaborada sob a orientação da Profª. Drª. Elza Dutra e apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Psicologia). Natal 2004.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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