A medicalização da loucura

A Medicalização da Loucura e o surgimento dos Hospitais Psiquiátricos: um mal necessário?

“Até então, os loucos estavam nas mãos da justiça, destinados a cumprirem medidas legislativas de repressão em hospitais gerais, que apesar da nomenclatura, não tinham função curativa. Sua única função, como vimos alhures, era manter a cidade limpa “desses perturbadores da ordem pública” (Resende, 2000, p. 24).

Segundo Foucault (1972), foi ao final do século XVIII que a figura do médico e a do louco começam a se aproximar mais intimamente, na tentativa de tornar a doença algo privado, ou seja, transformá-la em assunto de exclusividade e domínio médico. Assistimos à entrada de um novo ator social, o médico, no desfecho da história da loucura. A questão que se coloca neste contexto é: como um sujeito com transtorno mental deve ser tratado? Será ele culpado ou não pelo seu “pathus”?

O suposto “crime” cometido pelos loucos deixa de ser, então, um problema da Justiça e da Moral para ser problema da Medicina, como bem explicita Szasz (1980): “Essa transformação (...) de crime em doença, de Direito em Medicina, Criminologia em Psiquiatria e de punição em terapia é (...) entusiasticamente abraçada por muitos médicos, cientistas sociais e leigos” (p. 15). O referido autor é bastante enfático ao mencionar o surgimento da Psiquiatria, lembrando que os antigos “castigos” aplicados ao louco não mudam com a conotação de “tratamento” destinado aos doentes mentais, mas que a tirania passará a ser justificada pela terapia (p. 13).

O que veremos a seguir é que esta apropriação total, por parte da Medicina, daqueles comportamentos que implicam no desvio da norma social dominante, respondia a um mecanismo social de controlar a diferença na sociedade capitalista
.

Castel (1978a) relata-nos o percurso da responsabilidade sobre a loucura durante o Antigo Regime e após a Revolução Francesa. No Antigo Regime, a “Lettre de Cachet”, ou ordem do rei, foi responsável por arbitrariedades cometidas em nome do poder. O poder judiciário também foi responsável pela efetivação de leis severas de repressão, que igualavam os loucos a animais ferozes que, quando não domesticados, precisavam ser recolhidos do convívio. Na história da assistência psiquiátrica, a França foi o primeiro país a institucionalizar a atenção médica ao louco.

Em 27 de março de 1790, a Assembléia Constituinte decretava, no artigo 9, que abolia as “Lettres de Cachet” (Castel, 1978a):

As pessoas detidas por causa de demência ficarão (...) sob os cuidados de nossos procuradores, serão interrogadas pelos juízes (...) visitadas pelos médicos (...) a fim de que, segundo a sentença proferida sobre seus respectivos estados, sejam relaxadas ou tratadas nos hospitais indicados para este fim
(p. 9).

Com a abolição da ordem do rei, o alienado não podia mais ser enclausurado, mas destinado a um tratamento específico. Faz-se necessário compreender quais circunstâncias propiciaram determinantes mudanças. Como bem nos lembra Desviat (1999), tais mudanças foram possíveis “(...) porque as novas normas sociais necessárias ao desenvolvimento econômico proibiam a privação da liberdade sem garantias jurídicas” (p. 17). É assim que o isolamento passa a ter uma função terapêutica. A justiça não poderá mais se responsabilizar pelo controle da loucura, cabendo à Medicina este papel.

A lei francesa de 30 de junho de 1838 foi a primeira grande medida legislativa que reconheceu um direito à assistência e à atenção para a categoria dos doentes mentais, idealizando os famosos asilos, que tempos depois viriam a se chamar hospitais psiquiátricos. A loucura assume um novo caráter e é vestida com o status de doença.

Convém lembrar que os internamentos, ou melhor chamados, confinamentos do louco, nada tinham a ver com o pensamento médico. Dessa forma, a Psiquiatria demora a firmar-se como parte importante da ciência médica, justamente por não se enquadrar na orientação materialística, mecanística e racional dominante. O psiquiatra era incumbido de guardar o louco, não de curá-lo: “Ao mesmo tempo em que era suspeita, a Psiquiatria era também necessária e, por isso, foi limitada principalmente ao cuidado custodial de casos adiantados, em sua maioria sem esperanças ou perigosos para si próprios e para os outros” (Alexander & Selesnick, 1980, p. 25).

O que se pretende discutir aqui não é a necessidade do surgimento da Psiquiatria como ciência. É inegável que o louco precisava esquivar-se das mãos ferozes da justiça e amparar-se sob um olhar que lhe inspirasse os cuidados dos quais necessitava. Alguns questionamentos são anteriores a essa discussão, como por exemplo, analisar o controle exercido pela Psiquiatria, que culminou, a posteriori, na violação total dos direitos humanos dos portadores de doença mental, bem como analisar os métodos duvidosos utilizados pela mesma no seu exsurgir (sendo que alguns conseguiram perdurar até os dias atuais). Tais análises levam-nos a questionar as funções terapêuticas dos hospitais psiquiátricos e colocar em xeque a sua existência
.

Basta lembrarmo-nos de que o aparecimento dessa nova ciência é mais conseqüência do que causa do surgimento dos asilos. A Psiquiatria floresce quando os manicômios já estão abarrotados dos ditos “lunáticos” (Porter, 1997). Convém evocar as palavras de Foucault (2000) para reforçar a discussão:

A crise atual dessas disciplinas não coloca em questão simplesmente seus limites e incertezas no campo do conhecimento. Coloca em questão o conhecimento, a forma de conhecimento, a norma sujeito-objeto. Interroga as relações entre as estruturas econômicas e políticas de nossa sociedade e o conhecimento, não em seus conteúdos falsos ou verdadeiros, mas em suas funções de poder-saber. Crise por conseqüência histórico-política
. (p. 118)

Dessa forma, a partir do século XVIII, temos um novo saber especialista, que se utilizava de tratamentos bastante distintos e bizarros, como choques, banhos quentes, sangrias, chuveiradas frias, uso de algemas e camisas de força. Ainda segundo Porter (1997), as intenções de tais métodos eram de contenção: “Acabando com as agitações do físico, o objetivo último era acalmar a mente, e assim torná-la receptiva às carícias da doce razão” (p. 28).

Szasz (1980) descreveu o novo quadro que se delineia para a loucura: “(...) enquanto que na Idade Média a ideologia era a cristã, a tecnologia era clerical e o perito era o sacerdote, na Idade da Loucura a ideologia é médica, a tecnologia é clínica, e o perito é o psiquiatra” (p. 12). O que se pretende mostrar com o início do saber especialista da Psiquiatria, é a responsabilidade que esta tomou para si ao reivindicar o poder sobre a loucura. Os especialistas definem a realidade para a sociedade leiga. Ao diagnosticar o louco, o psiquiatra traça o seu destino, transformando-se em seu deus e carrasco. Segundo Castel (1978a), quem dá ao psiquiatra o seu mandato para transformar completamente a definição de loucura e condicionar o status antropológico do louco é o outro sistema de poder. E desta negociação é definido o destino social do doente: “É sempre uma questão de equilíbrio, de intercâmbio, de concorrência entre representantes de aparelhos: da justiça, da administração, da polícia...” (p. 145).

No século XVIII, numerosos são os gêneros e as classificações da loucura, época em que se consolida o domínio hegemônico da Medicina neste campo (Pessotti, 1999). Sobre isso, Basaglia (1979) afirma que a história da Psiquiatria é a história dos psiquiatras, com suas extravagantes classificações da doença mental. De lembrar-se, entretanto, que não se pode negar o pioneirismo de alguns médicos da época, como o francês Philippe Pinel, o inglês William Tuke, o italiano Chiaruggi e o alemão Reil, além de outros apontados pela literatura, introduzindo técnicas na “melhora” do tratamento dos doentes mentais. Sob sua orientação, os hospitais deixaram de acorrentar seus pacientes e começaram a tratá-los de modo mais “humano”: “sua contribuição primordial foi mudar atitude da sociedade em relação aos insanos, de modo que esses pacientes pudessem ser considerados seres humanos enfermos, merecedores e necessitados de tratamento médico” (Alexander & Selesnick, 1980, p. 161).

Philippe Pinel foi um construtor teórico e prático, que definiu um estatuto patológico para a loucura. Foi um dos primeiros a acreditar na possibilidade de cura do doente mental, através do tratamento moral. Podemos considerar que Pinel inaugura o nascimento da clínica psiquiátrica. Convém, neste momento, ressaltar que não podemos perder de vista que o tratamento moral, bem como outras formas posteriores de tratamento, falaram prioritariamente em nome da repressão, da ordem social. A liberdade, neste contexto, não significa o direito de sair do asilo, mas ao tratamento na instituição que é autorizada para isso. Amarante (1996) também analisa o tratamento moral, ressaltando que sua principal base encontra-se no isolamento. Concorda-se aqui com Castel (1978a), quando o mesmo afirma que o movimento alienista visa, fundamentalmente, abolir da paisagem social esse foco que é a loucura.

É, no entanto, o século XIX que merece, de acordo com Pessotti (1996), o título de “século dos manicômios”. Para esse autor, também é o manicômio o núcleo gerador da Psiquiatria como especialidade médica, este lugar que “aparece como um
cenário de grandes combates, de uma imensa tragédia” (p. 9), onde o homo sapiens se encontra com sua negação.

No começo do século XIX, os médicos de todo o mundo reconheceram
as doenças mentais como uma forma de enfermidade, e elas se tornaram objeto de pesquisa e tratamento médico. Seguindo um critério nosológico de classificação, a loucura passa a ser entendida como qualquer outra doença, devendo ser descrita e classificada segundo os padrões clínicos (Amarante, 1996; Foucault, 2000; Pessotti, 1999). O prestígio da Neurologia começa a questionar o tratamento moral. Modernas teorias sobre a loucura encaixam-se perfeitamente com a solidez das bases científicas que dominavam o pensamento da época. Em 1892, Kraepelin na Alemanha classificou a loucura em dois grandes grupos de doenças, que eram as manias e depressões e as emências precoces. Os estudos psiquiátricos de Kraepelin são considerados um passo decisivo na consolidação da Psiquiatria como ciência médica (Elói, 1989). O hospício passa a ser o lugar da loucura, como nos afirma Machado (1978): “De todas as moléstias a que o homem é sujeito, nenhuma há cuja cura dependa mais do local em que é tratada do que a loucura” (p. 380). Para o isolamento do louco, muitas eram as necessidades terapêuticas que o justificavam, como por exemplo, garantir a segurança da própria pessoa e da família, a imposição de novos hábitos intelectuais e morais, liberá-los de influência externa etc.

Atualmente, percebe-se claramente que a evolução dos conceitos
psiquiátricos que observamos no trajeto histórico de Pinel a Kraepelin não elucida o dilema da institucionalização: o traçado miserável do destino do doente mental, relegado à estigmatização e à invalidação social (Amarante, 1996). A Psiquiatria de hoje ainda é incapaz de responder à indagação inicial que encetou a nossa discussão. No entanto, fala-nos com bastante propriedade sobre sintomas e novas doenças que surgem a cada dia, sem conseguir enxergar a pessoa que adoece."

---
Fonte:
Ilana Lemos de Paiva: "EM DEFESA DA REFORMA PSIQUIÁTRICA: POR UM AMANHÃ QUE HÁ DE RENASCER SEM PEDIR LICENÇA". (Dissertação elaborada sob orientação do Prof. Dr. Oswaldo Hajime Yamamoto e apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Psicologia). Natal, 2003.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

Um comentário:

  1. Olá sobre a lei francesa de 1838, gostaria de saber onde posso achar o "número" da lei?

    ResponderExcluir

Excetuando ofensas pessoais ou apologias ao racismo, use esse espaço à vontade. Aqui não há censura!!!