Censura: o que você não pode ver (1967)

O texto a seguir foi extraído da revista “Realidade” (junho de 1967), publicada pela Editora Abril, a qual encontrei hoje num desses pródigos “sebos” aqui de São Paulo.

Como é sabido, o momento histórico em que se publicou o referido periódico fora fortemente marcado pelo regime ditatorial dos militares, que buscava por meio da Censura restringir tudo aquilo que o “incomodava”.

Lendo a reportagem, hoje, parece irreal que um dia o filme “Terra em Transe”, do grande Glauber Rocha, teve sua exibição interditada por supostamente conter “mensagem marxista de subversão da ordem”. A reportagem é, sem dúvida, um importante “achado” que nos fará refletir ainda mais sobre o absurdo papel exercido pelos temidos censores da ditadura militar. Ei-la:

"Êle aparece todos os dias, em todos os filmes — desde um desenho aninado até uma tragédia mexicana.

Êle trabalha atrás de uma mesa de aço, no quarto andar de um edifício de paredes de vidro, em Brasilia.

Mais criticado que elogiado, é êle quem determina o que o brasileiro pode e o que não pode ver no cinema.

Êle é o censor, e nas telas seu nome e assinatura nunca falham: “A. Romero do Lago, chefe do Serviço de Censura de Diversões Públicas”.

— Trabalho de censor desperta curiosidade muito grande — comenta um pouco vaidoso.

Romero do Lago chefia uma equipe de 16 homens, encarregada de cortar, dos filmes, cenas que — segundo êles — chocam, despertam- violência, ofendem o decôro público ou subvertem. Com nível de cultura de média para baixo, êsses 16 cidadãos têm o poder de proibir filmes para menores, cortar cenas e até interditar uma fita inteira.

Já houve tempo que se limitava um filme “impróprio para menores até...” só pelo título. Hoje não. Tôdas as fitas, nacionais ou estrangeiras, são vistas.

— O chefe Romero do Lago, porém, não gosta de cinema. Quase nunca entra na sala de projeções do departamento. Sem confessar sua indiferença, explica que não assiste aos filmes para poder opinar posteriormente, em grau de recurso, sôbre qualquer dúvida surgida entre os censores.

A equipe agüenta ver quatro filmes de longa metragem por dia, mais um tanto de documentários e jornais cinematográficos. A ordem de exibição é a de chegada, mas os nacionais têm preferência. Os censores trabalham em grupos de dois, três ou quatro. No subsolo do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico (onde a Censura ocupa metade do quarto andar); êles têm uma sala de projeção: 300 lugares, luz e som perfeitos.

Depois de visto o filme, cada censor dá seu parecer por escrito. Se houver empate, Romero do Lago, ou um segundo grupo de censores, desempata. Se não houver, Augusto da Costa, que já teve seu nome conhecido no Brasil inteiro, pois foi o beque da Seleção Brasileira na Copa de 1950 — recebe os pareceres, prepara os certificados, passa ao chefe para assinar e despacha aos distribuidores.

Funcionários federais (dos níveis 17 e 18), os censores ganham no máximo NCr$ 356,50 por mês e só podem ter outro emprêgo se forem jornalistas.

CENSORES DO REGIME MILITAR BRASILEIRO

O censor nasceu de um beijo
A censura do cinema começou um pouco antes do cinema. Em 1896, no filme A Viúva Jones (do tempo da lanterna mágica), Mary Irvin e John C. Rice assustaram o público americano com um beijo mais ou manos longo. Membros do clero, escandalizados, denunciaram a fita como a lyric of the stockyards (um lirismo de matadouro).

Estava criada a censura. O censor oficial foi a conseqüência.

No Brasil, 71 anos depois, o censor é um funcionário público que ainda faz restrições aos beijos:
— O beijo passa, é claro, mas se o galã começa a dar mordidinhas nos lábios da mocinha, aí vamos estudar o caso.

No estudo do caso, há pelo menos 16 critérios para julgar o que o povo não pode ver: um para cada censor. Além da Orientação geral a de Romero do Lago, através das portarias que vai baixando.

O Serviço de Censura de Diversões Públicas foi criado enr 1946, dentro do Departamento Federal de Segurança Pública (hoje Departamento de Polícia Federal). Na mesma ocasião foi feito um regulamento de 136 artigos, onde só um — o “41” — fala das coisas que são proibidas: “Será negada a autorização sempre que a representação, exibição ou transmissão: a) contiver qualquer ofensa ao decôro público; 1,) contiver cenas de ferocidade ou fôr capaz de sugerir a prática de crimes; c) divulgar ou induzir aos maus costumes; d) fôr ofensiva à coletividade ou às religiões; e) puder prejudicar a cordialidade com outros povos; f) fôr capaz de provocar o incitamento contra o regime vigente, à ordem pública, às autoridades e seus agentes; g) ferir, por qualquer forma, a dignidade e o interêsse nacional; h) induzir ao desprestígio das fôrças armadas.”

São proibidas por-lei, portanto; entre outras, cenas que ofendem o decôro público. Mas, como até hoje ninguém definiu nem indicou quando o decôro público é ofendido, os censores usam, para julgar, a intuição e o
bom senso pessoal.

Baiano não entende “O Silêncio”?

"O SILÊNCIO", DE INGMAR BERGMAN

Todo censor é a favor da censura: — Como é que aquela gente do interior da Bahia vai entender ou suportar um filme como O Silêncio, se não fôr cortado?

A frase é de Pedro Jossé Chediak, que antecedeu Romero do Lago na chefia do departamento. O Silêncio, filme de lngmar Bergman, premiado no mundo inteiro, saiu da censura brasileira com quatro cortes de cenas consideradas imorais: duas de relações sexuais, uma de masturbação e outra em que aparece um seio de mulher. Apesar de alguns dos censores admitirem que foram filmadas tão sutilmente que não chegavam ferir o decôro público, Chediak foi categórico
— O Silêncio não tem mensagem nenhuma, é vazio. O Ingmar Bergrnan fêz fama e deitou na cama.

A vez da Subversão

"TERRA EM TRANSE", DE GLAUBER ROCHA

Recentemente, o filme nacional Terra em Transe, de Glauber Rocha, foi submetido à censura, sendo inicialmente interditado por cinco votos contra um; Rnmero do Lago nem precisou ver o filme; examinou os pareceres e deu o veredicto:— Realmente êsse filme leva uma mensagem marxista de subversão da ordem.

José Vieira Madeira, o único censor que opinou por sua liberação, pensa diferente:
— O filme é pura ficção, que pode ter semelhança com o Brasil de hoje, mas pode ter também com outros países latino-americanos. É exagêro dizer que o tirano do filme seja Castelo Branco e Governador do Estado do Alecrim seja João Goulart.

Enquanto isso Terra em Transe era inscrito no Festival de Cannes, na França.

O recorde de cortes na censura é de um filme também nacional: Noite Vazia, de Walther Hugo Khouri. Cinco cenas foram cortadas — a considerada mais forte era aquela em que Norma Benguel e Odete Lara apareciam muma cama. Essa cena teve que ser exibida só com o comêço e o fim, sem o meio.

Outro filme brasileiro, Canalha em Crise, só foi liberado dois anos e meio depois de sua entrada no departamento. Nesse período houve trocas na chefia e, quando a fita ia sendo liberada por uma equipe, Miguel Borges, o diretor, não concordava com os cortes e entrava com recurso. De mudança em mudança, afinal, Canalha em Crise saiu de Brasilia — depois de dois anos e meio — com duas cenas de sexo a menos, e ainda deixando os censores preocupados, porque é o- bandido quem ganha no filme.

Mas acontecem coisas ainda mais estranhas: Katu no Mundo do Nudismo, liberado com alguns cortes, encontra-se em exibição. Enquanto isso, seu trailer está há vários meses aguardando liberação, pois chegou a Brasília atrasado.

Viva Maria, francês, foi liberado por acaso: tinha sido interditado pelos censores por ser considerado subversivo. Acontece que ao mesmo tempo o general Riograndino Kruel — então diretor do Departamento de Polícia Federal — via o filme em exibição especial e dava boas gargalhadas com as “guerrilheiras” Brigitte Bardot e Jeanne Moreau.

Quando soube da interdição não achou graça nenhuma. Chefe do chefe da censura, mandou que Viva Maria fôsse liberado.

Pode acontecer também que o público nem fique sabendo que certos filmes entram no Brasil. Delírio Noturno, japonês, foi devolvido pela censura para reexportação, por “imoral e antiestético”. Outros, começam a passar e depois são apreendidos: Tentação Morena, mexicano, teve sua exibição interrompida em Belo Horizonte. Os distribuidores tinham esquecido de tirar daquela cópia uma cena cortada pela censura em que a atriz Izabel Sarli toma banho num rio, completamente nua.

Mas nem só sexo e subversão dão trabalho aos censores:
— Crime com arma branca que tem sangue, eu corto — diz um dos homens do serviço.

005 contra o “strip-tease”

"VERIDIANA", DE LUIZ BUÑEL

O ex-chefe Chediak baixou uma portaria — de número 005 — proibindo o strip-tease para todo o território nacional. Romero do Lago derrubou essa portaria. Agora o strip-tease não é mais proibido, desde que as câmaras estejam a mais de cinco metros do objetivo. Isso é o que diz a nova portaria, que assim exige um requisito a mais dos censores: golpe de vista.

Além dessa liberalidade, Romero do Lago juntou uma importante inovação ao Serviço de Censura de Diversões Públicas:
— O SCDP — diz êle — concederá certificados especiais de censura cinematográfica a filmes considerados de valor educativo, para exibição em entidades culturais, onde entidade cultural é definida como universidade, cinemateca, fundação cultural ou cineclube filiado à Associação Brasileira de Cinema de Arte.

Veridiana, de Luiz Buñel, foi o primeiro a obter essa categoria de filme de valor educativo, tendo sido liberado integralmente, com a condição de não ser exibido comercialmente. Antes da portaria, o filme fôra censurado e cortada uma cena em que um grupo de mendigos se banqueteia numa mesa com talheres finíssimos, num salão medieval, durante a ausência dos donos da casa. A cena é uma paródia da passagem bíblica pintada por Leonardo Da Vinci.

Augusto da Costa, o ex-beque da seleção afirma:
— É uma tentativa de ridicularizar a Santa Ceia, e o filme é anticlerical.

Antônio Fernandes de Sylos, um dos censores, está com o beque:
— E quem é que garante que não é mesmo a Santa Ceia?

Proibido para censores

DR. JIVAGO


Extraconjugal
, filme italiano com quatro histórias, entrou na censura normalmente. A última das histórias deu um susto nos censores: era forte demais. Resolveram interditar a fita a não ser que aquêle episódio fôsse eliminado.


Os distribuitores entraram com recurso, pedindo reexame.
Extraconjugal foi revisto e a censura acabou autorizando a emissão do certificado, mas proibindo o filme para menores até 21 anos. Assim, um brasileiro de 18 anos, pode ser eleitor, funcionário público (e até censor), mas está proibido de ver a fita.

Não existe nenhuma lei, decreto ou portaria que permita proibir filmes em estágios fora dos níveis de 10, 14 e 18 anos. Uma vez ou outra, porém, há essas exceções:
Dr. Jivago, de custo caríssimo tinha sido proibido para menores até 18 anos. Os distribuidores, desesperados, apresentaram recurso. Resultado — foi proibido para menores até 16 anos. Afinal, o filme mostrava muita guerra, um herói que vivia feliz com a amante e o romance fôra proibido em seu país de origem, a Rússia.

Mas não são apenas essas as fórmulas de censura vigentes no Brasil. Cinemas de propriedade de padres e igrejas, principalmente nas cidades do interior, de vez em quando suspendem a exibição de algum filme, quando os gerentes foram
enganados pelo título, na escolha do programa mensal.

Há pouco tempo, em Niterói, o governador do Estado do Rio, Jeremias Fontes, que é protestante, censurou a própria censura. Rasgou e jogou no lixo uma foto de mulher nua que encontrou emoldurada, carimbada
censurado, enfeitando a mesa do chefe da censura estadual.

Quem está contra a censura

CARLOS DIEGUES ("CACÁ DIEGUES")

Nem todos, porém, pensam como o governador Jeremias Fontes. Entre os intelectuais brasileiros, por exemplo, será difícil encontrar-se alguém favorável à censura. Para Carlos Diegues, cineasta, diretor de Ganga Zumba e A Grande Cidade, “não deveria existir censura nenhuma”. Esta é a sua opinião:
- Sou contra qualquer tentativa de impedir a expressão livre de quem quer que seja.

Por outro lado compreendo os motivos pelos quais o Estado se protege através de instrumentos odiosos como o da censura: êle precisa se precaver contra as “doenças sociais”, animadas, quase sempre, pelo livre pensamento condutor da opinião pública e da crítica. A censura moral encobre, no final das contas, a censura política. E é em nome desta que se faz a primeira. Para quem faz cinema (ou qualquer outra coisa) a presença da censura é asfixiante, estamos sempre medindo nossa possibilidade de enfrentá-la. A única maneira de conviver com ela, já que é impossível evitá-la, é lutar pela sua liberalização, tentar fazê-la progredir, para que possa se transformar nun instrumento menos obscuro, como já é em tantos países do mundo: O melhor modo para se chegar a isso é estabelecer uma discussão da qual ela sairá, quase que fatalmente, mais moderna.

“Sou contra qualquer tipo de censura”

PAULO FRANCIS

O jornalista, ensaísta e crítico literário Paulo Francis faz comparações entre o Brasil e os Estados Unidos:

— Sou contrário a qualquer tipo de censura: política, moral etc. É evidente que o excesso de liberdade pode acarretar alguns excessos anárquicos. Mas está provado, pela experiência de países como os Estados Unidos, que qualquer sociedade civilizada é perfeitamente capaz de absorver êsses excessos sem nenhum prejuízo para a sua estrutura. Um bom exemplo é a peça Mac Bird, onde o presidente Johnson é explicitamente acusado de haver assassinado o presidente Kennedy. A peça não foi censurada, e o govêrno Johnson não caiu.

Isto é válido também para a censura dos livros ditos obscenos. No Brasil, em particular, a censura tem sido um fator de obscurantismo político e sexual. Um bom exemplo do primeiro caso foram as apreensões do livros no govêrno Castelo Branco; e, no segundo, as apreensões de Livros como O Casamento e Fanny Hill. Uma sociedade que não pode ler a respeito de um ato fisiológico normal, como é o sexual, não está preparada para o desenvolvimento industrial e para a era da tecnologia.

“Crítica sim, censura não”
—José Montelo, escritor e membro do Conselho Nacional de Cultura, também condena a censura:
— Só aceito como válida à obra de arte a censura feita em nome de princípios de ordem estética. E esta é exercida ou pelo artista — no momento da criação — ou pelo espectador, diante da obra realizada. Esta censura chama-se crítica e só interfere na criação por iniciativa de seu criador. Fora daí, a censura aparece numa faixa de ordem ética. Fala a moral onde deveria falar a estética. Ora, a obra de arte deve ser permanente, como mensagem humana, enquanto os princípios de ordem ética — onde a censura se baseia variam com o tempo e as latitudes.

“O censor vive assustado”
O jurista Êvaristo de Morais vê o problema assim:
— A censura, do ponto de vista jurídico, pouco se diferencia da censura do ponto de vista sociológico. Pois ela representa nada mais do que aquêle contrôle social, difuso e inorganizado, mas formal e institucionalizado através de códigos, leis e tribunais e policias. Em qualquer país do mundo, a censura é sempre a defesa da ordem social e econômica constituída. Por isso mesmo, o govêrno — apesar de tôdas as críticas — prefere sempre a censura prévia, em lugar da exercida depois do fato consumado, com plena responsabilidade de seu autor. Com a censura prévia o que se procura é evitar que o público tenha conhecimento daquilo que poderá causar dano aos valôres, interêsses e crenças dos poderes constituídos. Infelizmente, salvo raras exceções, os censores vivem assustados e vêem atentados contra a ordem dominante por tôda parte, mutilando as livres criações do espfrito humano.

“Ela cria hipócritas”
Napoleão Moniz Freire, autor e atualmente diretor do Departamento de Teatro da Guanabara, encerra a série de críticas:
— Há um perpétuo conflito, na marcha do mundo, entre o bem e o mal. Existe a idéia. Existe a liberdade de pensamento. Existe a liberdade de opinião, de exame e deliberação. A liberdade de expressão sofre, às vêzas, censura. Acontece que, existindo a liberdade de pensamento e a de Opinião, não será a censura que irá eliminar a idéia. Uma idéia só poderá ser eliminada quando voar e sofrer o embate da dignidade. Nunca será eliminada pela censura, que somente cria hipócritas."

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É isso!

Fonte
:
Revista "Realidade". Editora Abril. Ano II - Número 15 - Junho de 1967.

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