Preto, Branco e em Cores...



Preto, Branco e em Cores: o fator racial na estética de Dona Beja

"Na literatura produzida em torno do mito Dona Beja, o texto fundador seria
retomado na década de 1950, quando foram publicados os primeiros romances sobre ela, o que não o exclui como fonte de quase tudo que a imprensa e outros memorialistas da região já tinham publicado a seu respeito.

No campo da iconografia, a pintura passou a retratar Dona Beja na década de 1940,
logo, antes dos romances, o que faz necessário remetermos, de novo, a esse relato para localizar a matriz de onde surgiram as imagens que a apresentaram sempre branca, loira e de olhos claros, podendo ser verdes ou azuis e onde a beleza, expressada de forma superlativa, era sempre a tônica dominante. Acreditamos que essa decantada beleza estava intimamente relacionada e caminhava de mãos dadas com sua, também célebre, condição de prostituta de luxo.

Sua personalidade e atuação como sujeito histórico já haviam sido julgados,
segundo os critérios morais e de conduta da sedutora, em oposição ao da madona, mas, como musa, sua imagem física seria consagrada no século XX pelos artistas, fossem eles pintores, escultores, escritores ou poetas que passaram a retratá-la através das modalidades que praticaram com maior ou menor talento e sucesso, conforme as técnicas, os padrões culturais e estéticos vigentes.

Mas, se não há descrições documentadas ou registros iconográficos contemporâneos
que fundamentassem essas imagens, como foi que se chegou até elas? Nosso propósito é, portanto, discutir os mecanismos que produziram essa estética de Dona Beja e que acreditamos, em princípio, fruto da fantasia e dos devaneios de seu “Pigmalião”, o que nos levará, novamente, a percorrer os caminhos trilhados por Sebastião de Afonseca e Silva, suas concepções e convicções pessoais, como referências que eram de uma determinada época.

Embora o relato fundador de Dona Beja estivesse, como sabemos, baseado na
memória de algumas pessoas que a teriam conhecido pessoalmente e desde então tenhamlhes atribuído frases que se tornaram sentenças sobre sua beleza249, essas informações dificilmente poderiam ser complementadas ou confrontadas com descrições ou registros iconográficos, dos quais não localizamos nenhum da época. Por outro lado, a memória tem seus próprios caminhos, atalhos e armadilhas, que nem sempre todos os que se valem dela para “remexer” o passado estão preparados para enfrentar, o que torna indispensável uma série de reflexões que empreendemos a seguir.

O único documento conhecido que se refere à sua aparência física, o Censo
Provincial de 1832, apenas a relaciona como branca e ignoramos se teria chegado a conhecimento de seu “criador” que, certamente, se fiou da opinião de suas fontes orais, acrescentando as que foram de suas preferências pessoais, enriquecidas pela sua imaginação.

Por outro lado, existem diversos fatores, relacionados intimamente, que devem ser
considerados em uma análise que pretenda destrinchar os “mistérios” da origem do aspecto físico de Dona Beja. E quando dizemos “mistérios” o fazemos baseados nos debates, dúvidas e perguntas tantas vezes formuladas e ouvidas por nós sobre a veracidade de sua beleza ou de sua aparência física.

São diversos os fatores que intervieram em sua definição. Em primeiro lugar, deve -
se considerar o passado colonial brasileiro quando se introduziram e adotaram os padrões estéticos que iriam vigorar no país. Outro fator, relacionado com o anterior, pode ser encontrado no sistema escravista, que marcou, de forma indelével, as relações com a população negra, fosse com os escravos ou com seus descendentes, estabelecendo uma série de valores que se dispersaram e instalaram na sociedade. Para finalizar, e certamente influenciada pelos anteriores, estavam as preferências pessoais de seu idealizador. Através de sua metrópole e com relação às mulheres, o passado colonial legou ao Brasil dos brancos também os “padrões” morais e estéticos ou modelos dominantes, já mencionados anteriormente, que se encontravam presentes em todos os registros culturais do “Velho Mundo”. Com ligeiras variações esses mesmos modelos foram traduzidos por diversos autores que criavam suas próprias tipologias inspiradas nos estereótipos femininos historicamente construídos e sancionados nas sociedades ocidentais. Em 1889, C. de Varigny dizia:

Cada raça desenvolveu sua concepção particular da mulher. Para os franceses
representaria o ideal, para os espanhóis 'Nossa Senhora', para os italianos 'uma flor' e para os turcos 'um utensílio de felicidade'250. Produto de uma visão eurocentrista, essa era uma das fórmulas para retratar o suposto tratamento que cada povo dava às mulheres e que supunha reservar, apenas às orientais, o papel de mulher objeto.

No terreno artístico, desde finais do século XIX, os modelos franceses da “Belle
Epoque” exerciam sua influência na cultura nacional transportando para o país uma estética “decadentista” que freqüentemente encontrava inspiração em temas e figuras bíblicas ou mitológicas. Isso pode ser percebido no relato de 1915, com suas referências a Vênus, às estátuas de mármore gregas, às sereias e com palavras francesas como “cocotte”, utilizadas para comparar e descrever metaforicamente a beleza irresistível de Dona Beja e sua condição de meretriz.

Por outro lado, o passado escravista estabeleceu valores que, embora nem sempre
fossem assumidos ostensivamente em lugares públicos onde pudessem ser considerados inconvenientes, estavam fortemente arraigados e eram expressos livremente na intimidade dos ambientes domésticos e familiares.

Para Lilia Moritz Schwarcz, embora o Brasil não praticasse uma política
discriminatória oficial depois da abolição, o preconceito e a exclusão sempre foram intensos, ainda que camuflados. Ela vê no país um tipo singular de racismo silencioso (...) e sem rosto que lança para o terreno do privado o jogo da discriminação.

A idéia popularmente sancionada de “quanto mais branco melhor” definiria bem o
desejo de “branqueamento” da classe média brasileira e a posição desigual entre negros e brancos que, em sua fase mais aguda, teria visto a mestiçagem como sintoma da falência da nação.

Por isso, ao buscarmos as causas para a “invenção” visual de Dona Beja, segundo as
imagens conhecidas e aceitas, devemos considerar o fator racial que, certamente, também contribui para explicar seu êxito. Para ser aceita, ainda que prostituta - ou justamente por isso-, a cor era importante. Dona Beja deveria ser branca, de preferência loira, traços que mais a aproximariam do modelo europeu, “objeto do desejo” de uma classe média em ascensão, “tingida” de negro com mais freqüência do que supunha ou estaria disposta a admitir; preço a pagar pelos mais de trezentos anos de escravidão. Uma classe média que tinha, em Araxá, um competente porta-voz.

Em um dos manuscritos de Sebastião de Afonseca e Silva, onde pela primeira vez
traçava os contornos físicos de sua musa, a descreve de olhos azuis, cabelos pretos, pele clara e aveludada, porte regular, linhas e contornos também regulares, que mereciam de todos os que a viam o título de beleza nunca antes igualada pelas suas conterrâneas. Na publicação de 1915, essa descrição adotou a seguinte forma: Reunia todos os encantos de uma beleza ideal à esplêndida primavera (...) e no todo harmonioso das linhas e dos contornos, lembrava as formas divinaes (sic) da escrava grega que Paros imortalizou no mármore.

Essa imagem, apenas delineada, foi sendo lapidada por ele ao longo de outras
anotações, onde foi- lhe acrescentando ou retirando as características que seu gosto e devaneios lhe ditavam. Os cabelos, que a princípio foram descritos “pretos e longos”, foram clareando até passar a “pretos-castanhos” e finalmente, “aloirados”257. Mas, o que definitivamente não mudou foi a suposta aversão de Dona Beja pela gente de “cor” e é ali onde entra o fator racial na invenção de sua estética.

Se no relato publicado Afonseca se limitava a descrevê-la fisicamente e a comparála
com Vênus, conferindo- lhe os atributos por ele sonhados, são suas notas pessoais que nos dão a conhecer, melhor, suas posições racistas que transferiu para sua criatura e que foram exploradas depois, de forma mais acentuada, na literatura. Não podemos esquecer que essas notas foram, também, fonte declarada de quase todos os escritores que nelas beberam para compor a personagem central de seus romances.

Nesse mesmo manuscrito, ao referir-se ao meio social de Araxá nos tempos de
Dona Beja, o autor o descreve formado em sua maioria por negros e mulatos, gente a quem uma suposta origem nobre da moça, levava a “detestar”. Mas, o racismo do “criador” de Dona Beja ficou público e explícito em um folheto de sua autoria, publicado por volta da década de 1930, em que expõe suas teorias sobre o “tublodismo”, suposto neologismo que, em sua opinião, deveria ser introduzido na língua brasileira para “exprimir” os resultados da miscigenação e as individualidades dos mestiços, mulatos, cabritos, caboclos, como portadores de dois sangues258. O anglicismo era derivado da associação das palavras “two” e “blood”: dois e sangue, respectivamente, que juntas e aportuguesadas, produziram “tublode”.

Desconhecemos a repercussão de suas teorias, mas refletem bem as preocupações e
questões presentes em uma sociedade empenhada em identificar suas raízes e preocupada, especialmente, com seu “branqueamento”. O folheto foi citado por Hildebrando de Araújo Pontes, entre as fontes consultadas para sua obra já mencionada, a “História de Uberaba e a Civilização do Brasil Central” e o próprio Afonseca disserta, detidamente, sobre as questões raciais usando como referência seus filhos, tentando identificar neles traços ou resíduos que acreditava exclusivos dos negros.

Não é difícil entender, portanto, que na literatura produzida com a temática de Dona
Beja, uma de suas rivais e inimigas fosse Josefa Pereira, prostituta de segunda, grande prejudicada pela sua concorrência, que lhe reservava apenas os “restolhos” de uma clientela “barata”, como já vimos no primeiro capítulo.

Esse nome não é fictício nem parece haver sido escolhido aleatoriamente. Josefa era
realmente vizinha de Anna Jacintha e como ela, andou às voltas com um processo judiciário, que também ganhou, em torno de uma herança. Mas, um detalhe importante: Josefa era negra.

Em 1838, em um dos documentos dos autos do processo, o advogado de sua
oponente referiu-se a ela como “Josefa Pereira mulher parda” o que provocou uma reação interessante. Seu advogado respondeu com uma ação contra o colega, solicitando uma multa e sua suspensão das atividades profissionais, alegando que esse adjetivo era desnecessário e somente com o intuito de humilhar a sua cliente, que mesmo não sendo uma “européia”, era uma cidadã brasileira “honra” que muito prezava.

Ao não se poder negar a “negritude”, conseqüência de uma ascendência escrava,
invocava-se a cidadania que, em substituição da pele branca, também poderia ser motivo de orgulho e de merecimento a um tratamento digno e justo.

Mas Josefa ganhou a causa e a herança o que a tornou “dona e senhora”, entre
outras coisas, de um sobrado vizinho ao de sua contemporânea Anna Jacintha de São José e daí, ao igual que as irmãs Cândidas, também suas vizinhas, até ser conduzida ao prostíbulo foi apenas um passo, na imaginação do povo, dos escritores e, certamente, do “informante” que os alimentava.

No processo não se encontraram referências que pudessem lançar dúvidas sobre sua
“honestidade”. A união livre e consensual que Josefa e seu marido mantiveram por anos, legalizada ao final da vida dele, na que poderia estar apoiada qualquer denúncia sobre sua conduta, não era, como sabemos, algo inédito na sociedade brasileira do século XIX e Araxá não era a exceção. As uniões mistas tampouco.

Ao contrário de Anna Jacintha, Josefa tinha uma ficha “limpa”e uma filiação
legítima: natural da Freguesia de Nossa Senhora do Desterro de Desemboque, onde foi batizada, era filha legítima do capitão Manoel Gonçalves da Silva e de Anna Pereira da Silva (...). Viúva do Alferes Desiderio Mendes dos Santos, com quem fui casada em face da Igreja e por carta de ametade na forma da Lei do Reino...

Mas, como Anna Jacintha, Josefa também transgrediu as normas em que se
apoiavam as duas grandes instituições sociais: a propriedade e a família. Alterou a ordem, as relações familiares e de poder ao enfrentar a mãe de seu marido, branco, em função de uma herança. Tudo indica que na construção do mito, ela era necessária como contraponto da prostituta branca e de luxo que teria sido Dona Beja.

Isso não significa que toda prostituta branca fosse de luxo, mas, uma negra
dificilmente o seria. Foi precisamente a exceção um dos motivos que tornaram Xica da Silva também um mito, sendo as duas mulheres temas de romance de um mesmo autor, como veremos mais adiante.

Por ter seu nome incluído nos autos de um processo judiciário, envolvendo
interesses da família e da propriedade, Josefa Pereira, “mulher parda” foi transportada para o bordel, como prostituta “barata”, onde pudesse realçar a figura “limpa” e branca de Dona Beja.

A esse respeito, a posição do “pigmalião” de Dona Beja e suas preferências
pessoais, refletiam as da sociedade que lhe deu respaldo. No Brasil, diz Marilena Chauí, as fantasias sexuais repressivas estão carregadas de mitologia, preconceito e racismo. A imagem da prostituta superior, limpa, experiente, professora de sexo, está fortemente associada à prostituta branca de origem européia 261. Se Dona Beja foi concebida branca, loira e de olhos claros, imagem com que foi retratada na iconografia e na literatura, foi porque assim era solicitada pela sociedade.

Significativamente, foi de uma mulher a única voz discordante com relação a seu
aspecto físico. Ao notar a cor “triguera” de uma bisneta que conheceu na juventude, a escritora araxaense Maria Santos Teixeira teria recebido dela a informação de não existirem loiros na família de Dona Beja. Essa bisneta teria ouvido de uma ex-escrava a seguinte descrição, que a escritora transcreveu imitando o antigo “argot” dos negros: era morenona, dos cabelos pritinho, que inté briava cumo é qui ela haverá de sê crara si na faminona qui ela dexou tudo é trigêro?.

Essas informações a teriam feito mudar de opinião. Acatou a nova aparência que lhe
era descrita o que, aparentemente, não afetou a Sebastião de Afonseca, que fez a apresentação do livro publicado em 1965. Como mulher, a autora parecia imune ao apelo erótico de Dona Beja, que inundava as fantasias masculinas com um aspecto físico de inspiração européia. Contudo, nenhum desmentido poderia abalar a certeza daquela aparência; prevaleceu a “ficha” com a imagem da jovem prostituta, branca, loira, de olhos claros, segundo se pode conferir na iconografia e na literatura."

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Fonte:
Rosa Maria Spinoso de Montandon: "DONA BEJA: Desfazendo as Teias do Mito". (D
issertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Uberlândia, como requisito parcial para a obtenção do título de mestre em História. Orientado ra: Profº. Drº. Vera Lúcia Puga de Sousa). Uberlândia, 2002.

Nota
:
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As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
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