A base de formação do pensamento complexo de Edgar Morin
“O conjunto de três teorias - teoria da informação, cibernética e teoria dos sistemas - introduziu, no início da década de 40, um novo campo do saber até então desconhecido, um universo de organização produzida com e contra a desordem. O conhecimento da teoria da informação chegou a Edgar Morin pelos trabalhos do engenheiro estadunidense Warren Weaver (1894-1978) e do físico francês Léon Nicolas Brillouin (1889-1969) no fim da década de 60. A teoria da informação constitui-se de uma ferramenta para o tratamento da incerteza, da surpresa e do inesperado (MORIN e LE MOIGNE, 2000). Inseridos num universo que contém acontecimentos que somos incapazes de decifrar, a estrutura de conhecimentos pré-estabelecidos auxilia na extração de informações de algum ruído ou algo novo que nos chega. Por esse motivo, a informação é associada aos termos surpresa e inesperado. Segundo Morin e Le Moigne (2000, p.201), “o conceito de informação permite entrar num universo onde existe ao mesmo tempo a ordem (a redundância), a desordem (o bruto), e extrair o novo (a informação)”. A ligação entre a teoria da informação e a cibernética é muito fértil, pois a informação pode assumir a forma organizadora (programadora) em uma máquina cibernética, podendo até fornecer-lhe autonomia.
A cibernética é uma teoria de máquinas autônomas. Os trabalhos do matemático estadunidense Norbert Wiener (1894-1964), conhecido como fundador da cibernética, do médico inglês William Ross Ashby (1903-1972) e do biólogo, pensador sistêmico e epistemólogo da comunicação inglês, Gregory Bateson (1904-1980), foram as vias de acesso de Morin a este tema (MORIN, 2003).
O conhecimento dos processos auto-reguladores, introduzido por Wiener, apresenta a idéia de retroação, que rompe com o princípio de causalidade linear e admite, a partir de então, a idéia de círculo causal. Como em um sistema de aquecimento, no qual o termostato regula o movimento da caldeira, a causa age sobre o efeito e o efeito sobre a causa (MORIN, 1999, p.16; MORIN e LE MOIGNE, 2000, p.202). O círculo de retroação de Wiener, denominado feedback, permite, sob a sua forma negativa, estabilizar um sistema e reduzir o desvio. Sob sua forma positiva, o feedback funciona como um mecanismo amplificador. Tais comportamentos, inflacionistas ou estabilizadores, podem ser associados a diversos fenômenos econômicos, sociais, educacionais, políticos e psicológicos (MORIN, 2008a).
Formulada pelo biólogo austríaco Ludwig von Bertalanffy (1901-1972) na década de 50, a teoria geral dos sistemas possui como idéia central que um conjunto de objetos, seja da física, da astronomia, da biologia, da sociologia, átomos, moléculas, células, organismos, sociedades, astros e galáxias é formado por sistemas, ou seja, conjuntos de partes diversas que constituem um todo organizado; onde esse todo é mais que o conjunto das partes que o compõem (MORIN, 2008a). Isso significa que existem qualidades emergentes que nascem da organização desse todo e que podem retroagir sobre as partes. Para Morin (2007a, p.85), o todo é igualmente menos do que a soma das partes, porque as partes podem ter qualidades que são inibidas pela organização do conjunto.
Após o estudo sobre as três teorias, Morin percebeu que a integração das mesmas possibilitava a concepção de uma teoria da organização. Nas palavras de Morin (2003, p.38):
“[...] fui levado à convicção de que o sentido verdadeiro que era preciso extrair da revolução biológica era organizacional”. Portanto, às três teorias foram acrescentados desenvolvimentos conceituais trazidos pela idéia de auto-organização dos trabalhos de outros autores, como von Neumann, von Foerster e Prigogine.
A teoria dos autômatos auto-organizadores do matemático húngaro, naturalizado estadunidense, John von Neumann (1903-1957) propõe que a organização viva tem a propriedade de se manter e de se desenvolver não somente apesar da desordem, mas com ela, utilizando as degradações moleculares ou celulares para se auto-regenerar (MORIN, 2003).
Além disso, von Neumann apontou o paradoxo que diferencia máquina viva (autoorganizadora) e máquina artificial ou artefato (organizada). A máquina artificial constitui-se de elementos confiáveis (motor, peças), de materiais mais duráveis e resistentes, porém, seu conjunto é menos confiável do que cada um de seus elementos considerados isoladamente, pois, basta a alteração de um dos constituintes para que o conjunto pare e necessite de uma intervenção externa. Já as máquinas viventes possuem outro comportamento; seus componentes são pouco confiáveis, pois moléculas e proteínas se degradam sem cesar. No entanto, pode-se observar em um organismo que as moléculas morrem e se renovam, a tal ponto que um organismo, em certas espécies, pode regenerar até órgãos inteiros (MORIN, 2007a, p.31, 2008b, p.297-298).
A máquina artificial não pode consertar-se, auto-organizar-se, desenvolver-se, enquanto a máquina viva pode regenerar-se a partir da morte de suas células, segundo a fórmula de Heráclito: “viver de morte, morrer de vida” (MORIN, 2003, p.66, 2007a, p.63, 2008b, p.302; MORIN e LE MOIGNE, 2000, p.203).
A contribuição do cientista austríaco Heinz von Foerster (1911-2002) foi, além de ter revelado a noção de auto-organização, a descoberta do princípio de “ordem pelo barulho” (order from noise) que revela que, em certas condições de desordem, pode-se produzir organização (MORIN, 2003, p.38, 2008b, p.300; MORIN e LE MOIGNE, 2000, p.203).
As leituras dos trabalhos do químico russo Ilya Prigogine (1917-2003) sobre a constituição de estruturas dissipativas em condições termodinâmicas distantes do equilíbrio e a termodinâmica de processos irreversíveis (PRIGOGINE, 1996; PRIGOGINE e STENGERS, 1984) introduziram na bagagem cultural de Edgar Morin outra forma de conceber a idéia de organização a partir da desordem (MORIN, 2003).
O pensamento de complexidade pode ser apresentado como um edifício de diversos andares. A base é formada a partir das três teorias (informação, cibernética e sistema), as quais comportam as ferramentas necessárias para uma teoria de organização. O segundo andar é composto pelas idéias que emergiram das teorias sobre auto-organização de von Neumann, von Foerster e Prigogine. Neste edifício, Edgar Morin introduziu elementos suplementares que resultaram em três princípios complementares e interdependentes: o princípio dialógico, o princípio de recursão e o princípio hologramático, que serão descritos a seguir (MORIN e LE MOIGNE, 2000):
O princípio dialógico se funda na associação de noções que são ao mesmo tempo complementares, concorrentes e antagônicas, porém, indissociáveis e indispensáveis para compreensão de uma mesma realidade (MORIN, 2003, p.201, 2007a, p.73, 2008c, p.110; MORIN e LE MOIGNE, 2000, p.204). Essa idéia foi derivada, entre outros, da teoria da dualidade onda-partícula do físico Niels Bohr (MORIN, 2008a; MORIN e LE MOIGNE, 2000; MORIN; CIURANA; MOTTA, 2007).
A dialogicidade, base do pensamento complexo de Morin tem especial destaque em suas obras, quando ele se refere aos processos organizadores, produtivos e criadores no mundo complexo, da vida e da história humana. Para Morin (2007a, p.74): “O princípio dialógico nos permite manter a dualidade no seio da unidade”, em permanente comunicação relacional.
O princípio da recursão organizacional vai além do princípio de retroação (feedback). Um processo recursivo é um processo no qual os produtos e os efeitos são, ao mesmo tempo, causas e produtores daquilo que os produz. Por exemplo, os indivíduos são produtos de um sistema de reprodução de muitas eras, mas esse sistema só pode se reproduzir se os indivíduos se tornarem os produtores pelo acasalamento. Assim, os seres humanos produzem a sociedade em e mediante as suas interações, mas a sociedade, enquanto um todo emergente, produz a humanidade desses indivíduos fornecendo-lhes linguagem e cultura (MORIN, 2003, p.201, 2007a, p.74, 2008c, 112; MORIN e LE MOIGNE, 2000, p.204).
A idéia recursiva rompe com a linearidade da relação causa/efeito, produto/produtor, estrutura/superestrutura, já que tudo o que é produzido volta-se sobre o que o produz em um ciclo autoconstrutivo, autoorganizador e autoprodutor (MORIN, 2007a).
O “princípio hologramático”, como num holograma físico no qual o menor ponto da imagem do holograma contém quase a totalidade da informação do objeto representado, coloca em evidência que em certos sistemas não apenas a parte está no todo, mas o todo está presente nas partes (MORIN, 2003, p.201, 2007a, p.75, 2008c, 113; MORIN e LE MOIGNE, 2000, p.205).
Um exemplo da presença do princípio hologramático é o código genético. Cada célula é uma parte do todo, porém, cada célula contém a totalidade da informação genética de um organismo global, remetendo, portanto, à idéia do holograma. A idéia do holograma vai além do reducionismo que só concebe as partes, e do holismo que só concebe o todo (PETRAGLIA, 2001).
Os três princípios estão relacionados: o princípio hologramático está ligado ao princípio recursivo, que está ligado, de certa forma, ao princípio dialógico. Como na lógica recursiva, o conhecimento adquirido sobre as partes volta-se sobre o conhecimento de um todo. O conhecimento do todo pode enriquecer-se pelo conhecimento das partes, num movimento produtor de conhecimentos. (MORIN, 2007a)
O pensamento da complexidade construído em tais bases não é um pensamento que expulsa a certeza para colocar em seu lugar a incerteza, que substitui a separação pela inseparabilidade, que exclui a lógica para permitir todas as transgressões. Não se trata de renunciar aos princípios do pensamento clássico (ordem, separabilidade e razão), mas de associá-los em um plano mais rico e abrangente.
Nas palavras de Morin e Le Moigne (2000, p.205): “A caminhada consiste, ao contrário, em fazer um ir e vir incessante entre certezas e incertezas, entre o elementar e o global, entre o separável e o inseparável”. Essa trajetória incerta precisa, necessariamente, de um guia, ou seja, de princípios organizadores do conhecimento...”
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Fonte:
RODIANE OURIQUES MARTINELLI PENSAMENTO COMPLEXO: "REPRESENTAÇÕES DE PROFESSORES DE CIÊNCIAS E MATEMÁTICA". (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Matemática da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Educação em Ciências e Matemática. Orientadora: Profa. Dra. Ana Maria Marques da Silva). Porto Alegre, 2010.
Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O pensamento complexo de Edgar Morin
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