As possíveis relações entre ciência religião

"Ao discutir as possíveis relações entre ciência religião, cumpre distinguir, desde logo, dois níveis de problematização: epistemológico e o psicológico. Religião e ciência se apresentam como dois modos conhecer o mundo e o homem. A fonte e os critérios e de verificação de cada modo de conhecimento são diferentes. Para a religião, entendida histórica e culturalmente no ocidente, a fonte é uma revelação transcendente e os critérios de verificação decorrem dessa revelação. A fonte do modo de conhecer científico é a força natural da razão e dos sentidos, e os critérios de verificação, por exemplo sob a forma de desmentido (Popper, 1975), são fornecidos por procedimentos empíricos guiados pela lógica. Trata-se, pois, de duas ordens de conhecimento, e a relação entre elas é a que existe entre epistemologias. Não pretendo recapitular em poucas páginas o que veio a ser o embate epistemológico entre religião e ciência, mesmo porque, o enfoque que me interessa é o do cientista confrontado com a religião. Ainda assim, destaco que esse interesse pela compatibilidade objetiva entre ciência e religião, se quase ausente entre nós (mas veja-se Freire-Maia, 1986, para algumas referências), inclusive pela idade relativamente recente da ciência, tem uma história identificável em outras culturas.

Um aspecto interessante dessa história é que a iniciativa da discussão partiu geralmente da instância religiosa. Os cientistas, mesmo por não se sentirem responsáveis pela guarda de alguma tradição, tendiam a realizar seu trabalho sem maiores preocupações, embora mais de um tenha tido de resolver conflitos, como Pasteur, que fechava o oratório quando abria o laboratório, e vice-versa (Olievenstein,1989), ou como Darwin "que se ocupava durante a semana em contradizer a Bíblia, e freqüentava o culto aos domingos" (Sauret, 1982: 147). Nesse contexto, então, citaria entre os católicos a Gorresgesellschaft, na Alemanha, a Thijmgenootschap, na Holanda, os Intellectuels Catholiques, na França, como exemplos mais antigos de discussão entre fé e ciência e, mais geralmente, entre fé e cultura moderna. Nos países de tradição protestante, coube às universidades, várias delas dotadas de faculdades de teologia, a iniciativa de promover a discussão epistemológica da compatibilidade entre ciência e fé. Assim, a faculdade de teologia da Universidade de Edimburgo, que já se notabilizara pelas Gifford Lectures, promove as Conferências Gunning, que ensejaram a R.Hooykaas (1985), professor de História da Ciência na Universidade de Utrecht, cotejar as concepções religiosas gregas, hebraicas e cristãs acerca de Deus e da Natureza. Dessa comparação, Hooykaas concluiu ser a tradição hebraico-cristã mais co-natural, do que a tradição grega, à ciência moderna, uma vez que considera a natureza antes máquina do que organismo. Na Europa vêm-se realizando, desde 1986, as "Conferências Européias sobre Ciência e Religião" (Fennema & Paul, 1990), as quais reúnem teólogos e cientistas das áreas exatas e biológicas. A 2ª Conferência, realizada em 1988, além de trazer um apanhado histórico-crítico dos debates travados em outras épocas, esteve sob o signo da unificação ou unidade do mundo, que aponta para um novo tipo de interação entre ciência e religião ou, mesmo, para uma superação dessa aproximação dicotômica da realidade do mundo. Essa é uma linha de pensamento que lembra várias tendências contemporâneas, como a "Gnose de princeton" (Ruyer, s. d. ; Russo, 1975; Ortoli, 1987),e de que é expressão o trabalho de física, de Ortoli & Pharabod (1984),intitulado Le cantique des quantiques. Na mesma direção vai a recente discussão de Guitton (1991) com os físicos Bogdanov. Um interessante estado da questão das relações objetivas entre religião e ciência é dado por Rottschaefer (1988), que distingue entre o antigo Separatismo e o atual Novo Interacionismo, que privilegia as sugestões oferecidas pelas ciências, entendam-se as naturais, ao caráter epistêmico da religião. Rottschaeffer recorda a situação dominante entre 1920 e 1960: o paradigma científico aceito, do positivismo lógico-empiricista, negava qualquer valor epistêmico ao conhecimento religioso, de modo que entre ciência e religião só podia haver separação. Com o questionamento da chamada versão recebida (received view), pelas discussões de natureza histórica e sócio-cultural de Kuhn, Feyerabend e outros, com a emergência do realismo crítico-histórico e com a re-emergência da crítica sócio-cultural, caminha-se hoje para um novo tipo de interação entre religião e ciência, que pensa o discurso científico e o discurso religioso como uma rede de analogias e metáforas que podem envolver as causas inobserváveis dos fenômenos e as realidades religiosas transcendentes. É interessante notar que o encontro entre ciência e religião se dá a partir de um e outro pólo. Embora as nuances das diversas tentativas de interação não sejam de se desprezar, penso que se pode ressaltar a linha-mestra dessa tendência contemporânea: os valores epistêmicos, que integram o empreendimento cognitivo, tais como potencial idade de sentido, capacidade referencial, verdade, poder explicativo, entendimento e progresso cognitivo estão bem servidos tanto no discurso cientifico como no religioso (Rottschaeffer,1988:2l8). As reflexões sobre a compatibilidade epistêmica entre ciência e religião têm sido feitas principalmente a partir das ciências naturais e biológicas. Ruyer (s.d.},por exemplo, em nota à Bibliografia de seu volume, observa que o interesse dos neognósticos pela área de psicologia é recente. Pode-se apontar, no entanto, alguns trabalhos, diretamente ligados à psicologia, que reivindicam a anulação da tradicional tensão entre religião e ciência. Sperry (1988) pensa que o novo paradigma, cognitivo, da psicologia "abre caminho para uma consistente fundamentação naturalista tanto para a crença cientifica como para a crença religiosa" (1988: 607).

Sappington (199l), referindo-se a Sperry, explora dois novos conceitos científicos, o de controle superveniente e o de caos. O controle superveniente consiste nas opções livres e no funcionamento do cérebro dos agentes humanos, que se sobrepõem às condições determinantes de natureza física, biológica, social e outras. O conceito de caos refere-se à imprevisibilidade do comportamento de elementos combinados em sistemas de espantosa complexidade. Tanto o controle superveniente como o caos seriam conceitos que abririam caminho para vontade livre, responsabilidade moral, finalidade cósmica e valores objetivos. Sappington discorda de que esses conceitos suportem os conceitos religiosos aparentados, mas pensa que podem servir de fonte de analogias para os conceitos religiosos. Aludindo ao aspecto psicológico, o autor fala da contribuição de outra ordem trazida por esses novos conceitos científicos: eles têm o poder de reduzir a tensão emocional entre a maneira religiosa e a maneira científica de 'ver o mundo, embora possam não se adequar, como tais, aos conceitos religiosos. Arnheim (1991), incomodado com a "dupla verdade", e mal sabendo que na tradição islâmica a verdade pode ser tripla (Jaki, 1987), duplicidade que, no fundo, é uma forma de separatismo entre ciência e religião, aspira à superação dessa "chaga" através de uma visão do mundo integrada, mais conforme à percepção estética e que vai no sentido de identificar Deus com a Natureza. Essa superação, esse ir além (beyondism), faz eco ao desejo de R.B.Cattell (1987), de que surja a religião a partir da ciência. Esse desejo não coincide com a transformação da ciência em religião mas é, na avaliação severa de M.Jahoda (1989: 816 s), a "extraordinária façanha de deduzir uma nova religião dos princípios e fatos científicos". Jaki (1987) pensa que a incompatibilidade entre ciência e religião resulta de uma confusão de limites e, pois, numa incompreensão dos respectivos campos de abrangência da religião e da ciência. Observa que nos dias atuais praticamente não existe dificuldade em se compor a ciência com o cristianismo liberal e com um tipo de religião cósmica, popularizada por Einstein, os quais receberiam a adesão de quase todos os grupos religiosos (e também de psicólogos como Heider (1987), que alude a uma religião científica, ao modo da diluição do eu na totalidade, como seria o budismo), ou mesmo de ateus educados na cultura católica (Bocquet, 1986).A oposição, segundo Jaki, continua entre uma ciência que desconhece seus limites e o cristianismo dogmático, isto é, aquele que, mesmo não sendo fundamentalista, mantém um corpo de afirmações inquestionáveis sobre um criador pessoal transcendente e suas relações com o homem responsável. Se se mantivessem os limites do plano do empírico observável e do plano religioso metafísico, não só em princípio mas até nas derivações concretas, não haveria por que a pessoa experimentar incômodo em mover-se em ambos os planos. Mais clara, e também mais amplamente, o filósofo Jean Ladrière (1984; 1987), julga a cultura contemporânea mais afinada com o sentimento religioso, inclusive do ponto de vista científico. O conhecimento científico, hoje, se assinala, segundo Ladrière, por duas características particularmente significativas: ele é ao mesmo tempo reflexivo e expansivo.

Reflexivo, o conhecimento científico apreende cada vez mais as condições que comandam a efetividade de sua démarche. É a partir das propriedades do espírito que se compreendem as propriedades da realidade física, o que leva a questionar radicalmente o princípio cartesiano da separação metafísica entre matéria e espírito, extensão e pensamento. Essa propriedade reflexiva é que permite à ciência expandir-se sempre mais, tendendo, finalmente, a um saber unificado: unidade do pensamento, unidade da realidade cósmica, unidade do real em sua inteireza, além da aparente cisão entre o pensamento e a realidade cósmica. E Ladrière se pergunta qual pode ser a incidência desse sentimento de unidade em relação à experiência religiosa. Segundo o filósofo, há, positivamente, no pensamento científico um apelo a uma forma de experiência que daria sua efetividade àquilo que o pensamento científico não pode antecipar a não ser como horizonte. "Ele pressente, através do pensamento da unidade, que deve haver um estofo espiritual à realidade cósmica, da qual o pensamento humano é como uma refração parcial (...). Através desse pressentimento pode manifestar-se a espera interrogativa, e talvez o desejo, de uma forma de experiência na qual o espírito poderia viver numa espécie de comprovação imediata, sua identidade com o róprio princípio da unidade longinquamente percebida. O que se bosqueja, então, é a possibilidade de um panteísmo cósmico, que iria ao encontro, talvez, a partir de uma base totalmente diferente, das mais profundas intuições da tradição bramanista. Essa, contudo, não é a única possibilidade à qual o pensamento científico poderia se abrir.
Teilhard de Chardin propôs uma interpretação do pensamento científico que o prolonga até uma visão mística na qual se reencontra integralmente o conteúdo da fé cristã" (1987: 199). De passagem, Ladrière faz notar que a concepção teilhardiana não é apenas uma reinterpretação teológica do pensamento científico, mas também uma reinterpretação em moldes científicos do pensamento teológico. O espírito científico tende a se pensar como manifestação singular de um espírito universal, a pensar num Logos eterno ao mundo, mais naturalmente do que a reconhecer esse Logos encarnado. De outro lado, o pensamento científico se faz cada vez mais atento à singularidade, ao imprevisível, ao improvável, ao que não se deixa subsumir sob a conceptualização de sua teoria: prepara-se, talvez, assim, a se tornar mais receptivo ao acontecimento, à singularidade histórica, à facticidade e, por aí, à experiência cristã, além da experiência religiosa."

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Fonte:
Geraldo Jose de Paiva: Itinerários Religiosos de Acadêmicos: um enfoque psicológico”. (Tese de livre-docência). Universidade de São Paulo – USP. São Paulo, 1993.

Nota
:
O título e a imagem inseridos no texto não se incluem na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada.

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