A crítica ao “ensinamento” de Descartes

“A crítica à noção cartesiana de movimento compreende duas partes bem distintas: em primeiro lugar, Newton mostra em que medida ela se contradiz internamente; e, a seguir, apresenta as conseqüências, tidas por ele como absurdas, que dela podem ser retiradas. A primeira dessas contradições internas refere-se a uma passagem que se encontra na Parte Terceira dos Princípios, Artigo 140. Lá, Descartes afirma que a Terra, assim como os outros planetas, tem uma tendência a afastar-se do Sol, e por isso mantém sua devida distância com relação a ele. Vale notar, que nesse caso o Sol é estabelecido como referencial para o movimento dos planetas. Ora, se o Sol é um corpo distante, isso caracteriza justamente a noção vulgar de movimento que já havia sido rejeitada. Igualmente, “Descartes parece contradizer-se ao postular que a cada corpo compete um movimento individual, conforme a natureza das coisas” (Newton, 1979: 212). A contradição reside no fato de, segundo Newton, a vizinhança contígua que Descartes toma por referência não estar em repouso, mas apenas parecer estar. Aliás, é o próprio sujeito quem a considera em repouso a fim de atribuir movimento a um determinado corpo. Então, como se poderia afirmar que esse movimento é o único conforme a natureza das coisas, visto que seu referencial foi deliberadamente estabelecido? E, por último, Descartes sustenta que, embora todo corpo participe de incontáveis movimentos, enquanto parte de outros corpos, cada um deles possui apenas um movimento “segundo a verdade das coisas”. Assim, é contraditório dizer que certos movimentos não são conforme a verdade das coisas, na medida em que se admite que eles constituem movimentos realmente naturais, pois o corpo realmente faz parte do movimento de outros corpos. Por isso, porque são “realmente naturais”, não se pode negar que esses movimentos sejam conformes à verdade das coisas e, portanto, sejam movimentos em sentido filosófico.

Na segunda parte dessa crítica, são elencadas oito conseqüências do ensinamento de Descartes no que concerne ao movimento. Em primeiro lugar, considerando um corpo qualquer, em movimento, podemos dizer que apenas sua superfície externa move-se no sentido estrito do movimento cartesiano; pois, se as suas partículas internas não se deslocam com relação à superfície externa (sua vizinhança contígua), elas não se movem com o movimento do corpo, propriamente dito, mas apenas participam desse movimento. A segunda conseqüência é a de que não há um movimento verdadeiro e absoluto. Segundo Newton, ao atribuirmos movimento a um corpo, em sentido próprio, não podemos negar essa atribuição às suas partes, se admitirmos que elas participam desse movimento. Ou seja, se um corpo participa do movimento de diversos outros, como afirma Descartes, todos esses movimentos estão em suas partículas, “no sentido verdadeiro e filosófico”, e não se pode dizer que um entre eles seja absoluto. Em terceiro lugar, o movimento, no sentido cartesiano, pode ser gerado sem a ação de nenhuma força. Considerando, por exemplo, um corpo em rotação e cuja vizinhança contígua encontra-se no mesmo estado. Dizemos que ele está em repouso pois não se desloca com relação a ela. Entretanto, se pararmos essa vizinhança sem aplicar nenhuma força ao corpo, do mesmo corpo diz-se que, agora, está em movimento. Disso decorre a quarta conseqüência, ainda mais espantosa: “o próprio Deus poderia não gerar movimento em alguns corpos, mesmo que os impulsionasse com a maior força” (Newton, 1979: 214).

Em quinto lugar, pautando-se pela concepção cartesiana, dois corpos em repouso podem mudar suas posições relativas. É o caso, por exemplo dos planetas: eles estão em repouso, pois não se movem com relação à sua vizinhança, ou seja, ao fluido que os envolve. Porém, a posição de cada um deles varia constantemente com relação aos outros. Diretamente ligada a esta última, a sexta conseqüência é a de que dois corpos que mantém a mesma posição relativa podem estar um em repouso e o outro em movimento. E, em sétimo lugar, Newton afirma que nem sempre podemos dizer com segurança da vizinhança contígua de um certo corpo, se ela está em repouso ou em movimento.

Finalmente, apresentaremos uma dupla conseqüência que, por si só, evidencia o absurdo do ensinamento de Descartes; segundo Newton, porque tal ensinamento nos “leva a concluir que um corpo em movimento não tem nenhuma velocidade determinada (primeira conseqüência) e nenhuma linha definida (segunda)” (Newton, 1979: 216). O que se segue daí é ainda mais grave, por abalar diretamente as duas primeiras leis cartesianas do movimento: “não se pode afirmar que a velocidade de um corpo que se move sem resistência seja uniforme, nem se pode dizer que é reta a linha na qual se efetua o seu movimento” (idem). Apresentadas essas oito “conseqüências do ensinamento cartesiano”, a questão que se impõe é a de saber em que se sustentam essas afirmações de Newton.

Primeiramente, é preciso retomar a noção cartesiana de lugar. Este, é determinado pela posição da vizinhança contígua ao corpo que se está considerando. Nesse caso, como é possível determinar o ponto de partida do movimento desse corpo? Newton responde: é simplesmente impossível. Ao iniciar-se o movimento, aquela vizinhança que circundava o corpo, anteriormente, é desfeita. E, mesmo que se pretenda determinar o lugar de início do movimento a partir de corpos distantes (seguindo a concepção vulgar), o problema se mantém; já que, no sistema cartesiano, pode-se dizer de todos os corpos que, mesmo que não estejam verdadeiramente em movimento, participam do movimento de outros corpos. Então, pode-se dizer que o lugar existe apenas enquanto os corpos mantêm as mesmas posições. Pois bem, em se tratando do movimento de um corpo, assim que ele deixa o seu lugar de origem, esse lugar deixa de existir, e portanto, não pode mais ser determinado.

Disso decorre que não é possível determinar o espaço percorrido por um corpo, visto que não se consegue encontrar seu ponto de origem. Ou seja, não há como saber qual o comprimento, qual a distância percorrida. Vale notar que a velocidade de um corpo é obtida pela distância percorrida em um certo intervalo de tempo. Por isso mesmo – porque a velocidade depende da distância percorrida – , Newton conclui que “o movimento cartesiano não é movimento, pois não tem velocidade” (Newton, 1979: 217).

Pelas mesmas razões, assim como não se pode determinar o lugar do movimento, também não se podem encontrar seus pontos intermediários. Assim, tendo em vista as duas primeiras leis do movimento, ambas estão comprometidas. A primeira, porque não se pode afirmar que a velocidade de um corpo, que se move sem resistência, é uniforme; uma vez que, como já vimos, o corpo nem mesmo tem velocidade. A segunda, pela impossibilidade de se obter a localização dos pontos intermediários do movimento, o que evidentemente impediria a qualquer um de afirmar que um corpo se desloca em linha reta.

Destacamos essas duas conseqüências porque ela evidencia um problema que, segundo Newton, é crucial para provar o absurdo do sistema cartesiano: a definição de lugar. Até agora está provado que essa definição de lugar tem como produto uma concepção de movimento que gera, por sua vez, conseqüências absurdas. Entretanto, esta definição está firmada em certas bases que, por isso, serão o alvejadas pela crítica, daqui por diante. Isso fica claro ao levar-se em conta que o problema da definição de lugar é que ela se estrutura a partir de corpos que, de um modo ou de outro, estão constantemente em movimento. É preciso que se encontre algo destituído de movimento a que se possa referir a definição de lugar e, assim, possibilite uma coerente atribuição de movimento aos corpos. Dito isto, qual seria o melhor candidato para assumir essa condição? O espaço, a extensão por si mesma, dirá Newton. E, para tanto, é imprescindível distinguir o espaço, destituído de movimento, dos corpos, como coisas móveis.

É nesse percurso exposto até aqui, que se fundamenta a crítica ao princípio cartesiano da identidade entre matéria e espaço. Tendo mostrado a inconsistência a que conduz a concepção de movimento que é fruto desse princípio, Newton tem, agora, o próprio princípio como alvo:

... uma vez que Descartes parece haver demonstrado (...) que o corpo não difere em
absoluto da extensão, (...) a fim de que não permaneça dúvida alguma acerca da natureza do movimento, responderei a esse argumento explicando o que é a extensão e o que é o corpo, e como diferem um do outro” (Newton, 1979: 218)."

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Fonte:
Veronica Ferreira Bahr Calazans: "QUESTÕES METODOLÓGICAS E ONTOLÓGICAS NAS PRÁTICAS MATEMÁTICAS DE DESCARTES E NEWTON". (Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Filosofia. Curso de Mestrado em Filosofia do Setor de Educação, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná. Orientador: Prof. Dr. Eduardo Salles de Oliveira Barra). Curitiba, 2008.

Nota
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As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas.

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