A (de)formação do homem Kafka: o Gigante e o Tribunal

Às vezes imagino um mapa-múndi aberto e você estendido transversalmente sobre ele. Para mim, então, é como se entrassem em consideração apenas as regiões que você não cobre ou que não estão ao seu alcance. De acordo com a imagem que tenho do seu tamanho, essas regiões não são muitas nem muito consoladoras."

A formação familiar de Franz Kafka é bastante conturbada. Do lado paterno os Kafka representam uma família de camponeses judeus que conseguiram vencer as dificuldades econômicas alcançando a respeitabilidade da classe média de Praga. Até 1848 os judeus do império deveriam viver em vilarejos no campo, só o primeiro filho poderia se casar, os alimentos eram escassos e as condições de vida nada favoráveis ao desenvolvimento de uma família. O avô de Kafka, Jacob só pode se casar pela alteração ocorrida na lei em 48. De pronto tomou em casamento a filha de um vizinho. Morando em uma choupana de um cômodo em Wossek, o açougueiro e a jovem senhora tiveram seis filhos alimentados por uma dieta a base de batatas. Apesar das condições desfavoráveis “de alguma forma, eles sobreviveram – os pais e todos os seis filhos – o que por si só, era um feito raro na época, uma prova de vigorosa dotação genética”. Sem dúvida os Kafka eram fisicamente fortes e isto era um orgulho para Hermann, o pai de Kafka e um dos sobreviventes de Wossek, que gostava de lembrar ao filho como sua vida havia sido sofrida e, apesar disso, ele tornou-se um vencedor diferentemente de Franz. Hermann foi convocado e serviu por dois anos o exército. Ao final deste período mudou-se para Praga onde iniciou negócios próprios como comerciante. Sua prosperidade foi impulsionada depois de seu casamento com Julie Löwy, a filha de um proeminente dono de cervejaria. Como afirma Pawel: “Não há nenhum registro de como se deu a aproximação entre ela e Hermann Kafka, mas, como a maioria dos casamentos nos círculos de ambos, o deles provavelmente não foi preparado no céu, mas antes arranjado como negócio comercial”. Hermann possuía o espírito empreendedor dos comerciantes aliado à força física dos camponeses. Na formação de seu filho esta é a marca que ele pretende perpetuar.

Pelo lado materno os antepassados de Julie incluíam: “um conjunto incomum de personagens notáveis, ou, pelo menos, pouco convencionais, profundamente religiosos, em sua maioria, e bem mais interessados nas questões metafísicas e nos valores espirituais que na acumulação de bens materiais – talmudistas, rabinos milagrosos, agitadores excêntricos, judeus convertidos ao cristianismo e visionários”.
Entre os antepassados de Julie, o bisavô de Kafka, Amschel, de quem o escritor herdou seu nome hebraico, era um rabino de grande fé, contudo, considerado louco. Sua mulher cometeu suicídio, sua filha Esther, avó de Kafka morreu aos vinte e nove anos deixando a frágil Julie com apenas três anos aos cuidados do pai Jacob Löwy. A figura de Amschel é central na construção do espírito de sua família, porém, como afirma Pawel: “Infelizmente, o odor da santidade é freqüentemente tóxico para aqueles que ficam muito perto de sua fonte”. A desintoxicação da família coube a Jacob Löwy, um judeu bem sucedido com suas cervejarias, tanto no início em Podebrady quanto posteriormente em Praga. Bastante germanizado ele distanciou a cultura religiosa de seus filhos dos ensinamentos do velho rabino Amschel. O casamento de Julie com Hermann direcionou a nova família Kafka para os anseios da classe média judaica e concretizaram o ideal de Jacob, quando: “desde o início, a vida nessa família, organizada por, em torno e para o bem do Amo e Senhor, concentrou-se não na casa, e sim na loja”. O fantasma do rabino milagroso rodeado por livros, contudo, sempre rondou os membros da família como uma contraproposta ao empreendedorismo de Jacob Löwy e Hermann Kafka.

O jovem Franz é o primeiro filho e o único homem da prole de Herrmann. Sua relação com o pai é descrita em uma carta pessoal com o cunho de desabafo, mas que nunca foi entregue ao seu poderoso destinatário. Como desabafo que é, a Carta ao Pai não deve ser assumida como um documento comprobatório da irresponsabilidade paternal de Herrmann, pois reflete muito mais o sentimento subjetivo do jovem e medroso Kafka do que a realidade vista de uma forma objetiva. Apesar desse caráter subjetivo a carta produzida por Kafka foi tomada como mais uma de suas produções literárias desde sua primeira edição, quando Brod rejeitou associá-la às demais correspondências do autor. Seu caráter pessoal e subjetivo não deve sobrepujar o talento do escritor, que em 1919, ano em que redige este texto, já havia chegado à maturidade de suas obras. Quando Kafka escreve a Carta ao Pai o tema de seus escritos já não é mais a questão do embate familiar entre pai e filho. Não podemos desvirtuar totalmente o texto, enquadrando-o apenas como uma ficção, mas, da mesma forma, não podemos tomá-lo como verdade absoluta. O maior valor do texto se encontra justamente em ser um meio termo entre a realidade objetiva da relação familiar no seio dos Kafka e a subjetiva advinda da descrição desta realidade por um escritor envolvido completamente com o amor e o ódio mais profundos pelos fatos relatados."

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Fonte:
MAURO ROCHA BAPTISTA: “FRANZ KAFKA E A ANGÚSTIA RELIGIOSA DO MUNDO MODERNO”. (Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião como requisito parcial à obtenção do título de mestre em Ciência da Religião. Orientador: Prof.Dr. Eduardo Gross). Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora, MG, 2005.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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