Gilles Deleuze: “A razão segundo Kant”


“Kant define a filosofia como «a ciência da relação entre todos os conhecimentos e os fins essenciais da razão humana»; ou como «o amor que o ser racional experimenta pelos fins supremos da razão humana». Os fins supremos da Razão formam o sistema da Cultura. Reconhecemos já nestas definições uma dupla luta: contra o empirismo, contra o racionalismo dogmático.

Para o empirismo, a razão não é, falando com propriedade, faculdade dos fins. Estes remetem para uma afetividade primordial, para uma «natureza» capaz de os estabelecer. A originalidade da razão consiste antes numa certa maneira de realizar fins comuns ao homem e ao animal. A razão é faculdade de ajustar meios indiretos, oblíquos; a cultura é manha, cálculo, rodeio. Decerto que os meios originais reagem sobre os fins e os transformam; porém, em última instância, os fins são sempre os da natureza.

Contra o empirismo, Kant afirma que há fins da cultura, fins inerentes à razão. Mais ainda, só os fins culturais podem ser considerados absolutamente derradeiros. «O fim último é um
fim de tal ordem que a natureza não pode bastar para o efetuar e realizar em conformidade com a idéia, pois tal fim é absoluto.»

Os argumentos de Kant a este respeito são de três espécies. Argumento de valor: se a razão apenas servisse para realizar fins da natureza, vemos mal como poderia ela ter um valor superior à simples animalidade (é evidente que deve possuir, na medida em que existe, uma
utilidade e um uso naturais; mas ela não existe senão em relação com uma utilidade mais elevada donde retira o seu valor). Argumento por absurdo: se a Natureza tivesse querido... (Se a natureza tivesse querido realizar os seus próprios fins num ser dotado de razão teria feito mal em confiar-se ao que há nele de racional, tendo sido preferível que se entregasse ao instinto, tanto pelos meios como pelo fim.) Argumento de conflito: se a razão não passasse de uma faculdade dos meios, não se percebe de que modo dois gêneros de fins poderiam opôr-se no homem, como espécie animal e como espécie moral (por exemplo, deixo de ser uma criança do ponto de vista da Natureza quando me torno capaz de ter filhos; mas sou ainda uma criança do ponto de vista da cultura, já que não possuo ofício, que me falta aprender tudo).

O racionalismo, por seu lado, reconhece sem dúvida que o ser dotado de razão persegue fins propriamente racionais. Mas, neste caso, o que a razão apreende como fim é ainda algo exterior e superior: um Ser, um Bem, um Valor, tomados como regra. da vontade. Por conseguinte, há menos diferença do que se poderia crer entre o racionalismo e o empirismo. Um fim é uma representação que determina a vontade. Enquanto a representação é a de alguma coisa exterior à vontade, importa pouco que ela seja sensível ou puramente racional; de qualquer maneira, ela só determina o querer pela satisfação ligada ao «objeto» que representa. Quer se considere uma representação sensível ou racional, «o sentimento de prazer pelo qual elas formam o princípio determinante da vontade... é de uma única e mesma espécie, não apenas na medida em que ele nunca pode ser conhecido senão empiricamente, mas também em virtude de afetar uma única e mesma força vital»

Contra o racionalismo, Kant põe em realce que não somente os fins supremos são fins da razão, como ainda a razão não estabelece outra coisa senão ela própria ao estabelecê-los. Nos fins da razão, é a razão que se toma a si mesma como fim. Há, pois, interesses da razão, mas, além disso, a razão é o único juiz dos seus próprios interesses. Os fins ou interesses da razão não são julgáveis nem pela experiência nem por outras instâncias que permaneçam exteriores ou superiores à razão. Kant recusa de antemão as decisões empíricas e os tribunais teológicos. «Todos os conceitos, inclusive todas as questões que a razão pura nos propõe, residem não na experiência, mas na razão... Foi a razão que engendrou sozinha estas idéias no seu seio; incumbe-lhe portanto a ela dar conta do respectivo valor ou inanidade.» Uma Crítica imanente, a razão como juiz da razão, tal é o princípio essencial do método dito transcendental. Este método propõe-se determinar: 1.° A
verdadeira natureza dos interesses ou dos fins da razão; 2.° Os meios de realizar estes interesses.”

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Fonte:
Gilles Deleuze: “A Filosofia Crítica de Kant”. Tradução de: Germiniano Franco. Edições 70. Lisboa – Portugal, 1994.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui no citado livro.

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