A História como mito


“A história cairia em ruínas sem a chave de abóbada de toda a sua arquitetura: a articulação entre o ato que propõe e a sociedade que reflete; o corte, constantemente questionado, entre um presente e um passado; o duplo estatuto de um objeto, que é um "efeito do real" no texto e o não-dito implicado pelo fechamento do discurso. Se ela deixa seu lugar – o limite que propõe e que recebe – ela se decompõe para ser apenas uma ficção (a narração daquilo que aconteceu) ou uma reflexão epistemológica (a elucidação de suas regras de trabalho). Ela, porém, não é nem a lenda à qual foi reduzida por uma vulgarização, nem a criteriologia que faria dela a única análise crítica de seus procedimentos. Ela está entre estas duas coisas, no limite que separa as suas reduções, como Charles Chaplin se definia, no final de "The Pilgrin", através da corrida sobre a fronteira mexicana, entre dois países que o perseguiam e dos quais seus ziguezagues desenhavam ao mesmo tempo a diferença e a costura.

Também ele lançado, seja para o presente, seja para o passado, o historiador faz a experiência de uma práxis que é inextricavelmente a sua e a do outro (uma outra época ou a sociedade que o determina hoje). Ele trabalha a própria ambigüidade que designa o nome de sua disciplina, Historie e Geschichte: ambigüidade, afinal, rica de sentido. Com efeito, a ciência histórica não pode desligar, inteiramente, a sua prática daquilo que escolheu como o objeto, e tem como tarefa indefinida tornar precisos os modos sucessivos dessa articulação.

Sem dúvida, essa é a razão pela qual a história tomou o lugar dos mitos "primitivos" ou das teologias antigas desde que a civilização ocidental deixou de ser religiosa e que, de maneira política, social ou científica, ela se definiu por uma práxis que envolve, igualmente, suas relações consigo mesma e com outras sociedades. O relato dessa relação de exclusão e de atração, de dominação ou de comunicação com o outro (posto preenchido alternadamente por uma vizinhança ou por um futuro) permite à nossa sociedade contar-se, ela própria, graças à história. Ele funciona como o faziam ou fazem ainda, em civilizações estrangeiras, os relatos de lutas cosmogônicas, confrontando um presente a uma origem.

Essa localização do mito não aparece apenas com o movimento que leva as ciências "exatas" ou "humanas" em direção à história (que permite aos cientistas se situarem num conjunto social),58 ou com a importância da vulgarização histórica (que torna pensável a relação de uma ordem com a sua mudança, ou que a exorciza, na base de: "Foi sempre assim"), ou ainda com as mil ressurgências da genial identificação, estabelecida por Michelet, entre a história e a autobiografia de uma nação, de um povo ou de um partido. A história tornou-se nosso mito por razões mais fundamentais, do que as resumidas em algumas das análises precedentes.”


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Fonte:
Michel de Certeau: "A Escrita da Historia". Tradução de: Maria de Lourdes Menezes. Forense-Universitária. Rio de janeiro, 1982, p. 50-51.

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