O cinema nos anos 1930: a intervenção do Estado varguista

“No decreto nº 21.240, de 04 de abril de 1932, estão assentados os objetivos do Governo para o cinema, bem como a concepção sobre sua utilidade. Apesar de longos, os “considerando” são valiosos por sua clareza e precisão:

Considerando que o cinema, sobre ser um meio de diversão, de que o público já não prescinde, oferece largas possibilidades de atuação em benefício da cultura popular, desde que convenientemente regulamentado;

Considerando que os favores fiscais solicitados pelos interessados na indústria e no comércio cinematográfico, uma vez concedidos mediante compensações de ordem educativa, virão incrementar, de fato, a feição cultural que o cinema deve ter;

Considerando que a redução dos direitos de importação dos filmes impressos virá permitir a reabertura de grande número de casas de exibição, com o que lograrão trabalho numerosos desempregados;

Considerando, também, que a importação do filme virgem, negativo e positivo, deve ser facilitada, porque é matéria prima indispensável ao surto da indústria cinematográfica no país;

Considerando que o filme documentário, seja de caráter cientifico, histórico, artístico, literário e industrial, representa, na atualidade, um instrumento de inigualável vantagem, para a instrução do público e propaganda do país, dentro e fora das fronteiras;

Considerando que os filmes educativos são material de ensino, visto permitirem assistência cultural, cora vantagens especiais de atuação direta sobre as grandes massas populares e, mesmo, sobre analfabetos;

Considerando que, a exemplo dos demais países, e no interesse da educação popular, a censura dos filmes cinematográficos deve ter cunho acentuadamente cultural; e, no sentido da própria unidade da nação, como vantagens para o público, importadores e exibidores, deve funcionar como um serviço único, centralizado na capital do país (...)

O Decreto 21.240/32 nacionaliza o serviço de censura dos filmes exibidos no Brasil. Até então, a censura era realizada pela polícia de cada localidade. Entre
outras providências, o decreto obrigava, em seu artigo 12, a inclusão de um filme educativo em cada exibição nas salas de cinema. Junto aos programas, deveriam ser incluídos shorts que fizessem divulgação de conhecimentos científicos, motivos artísticos, divulgação cultural ou que revelassem aspectos da natureza (artigo 7, § 3º).

A partir de então, passa a ser exigido um certificado do Ministério da Educação e Saúde Pública para exibição de filmes em todo o território nacional (artigo 2), que deverão ser aprovados pela Comissão de Cesura Cinematográfica, que se instalaria junto ao Museu Nacional, e após o pagamento da "Taxa cinematográfica para a educação popular" (artigo 3).

O mesmo decreto, em seu artigo 13, obriga a exibição de uma quantia fixa de produções nacionais nos programas das salas exibidoras, “tendo em vista a capacidade do mercado cinematográfico brasileiro, e a quantidade e a qualidade dos filmes de produção nacional”. A fiscalização do cumprimento do decreto era tarefa da polícia.

De acordo com o relatório da Associação Cinematográfica dos Produtores Brasileiros, o Decreto trouxe apenas o único resultado benéfico imediato para o
Cinema Brasileiro: a redução da tarifa para o filme virgem.

O decreto evitou o colapso e reanimou os abnegados propugnadores do Cinema Brasileiro, trazendo-lhes a esperança dos favores prometidos pelo Convênio a realizar-se dentro de seis meses.

O decreto agendava, para o prazo máximo de 180 dias, a realização de um Convênio Cinematográfico Educativo para instituição de um cine-jornal, de espetáculos infantis permanentes, de incentivos à produção para empresas brasileiras e de apoio ao cinema escolar. Além disso, instituía as diretrizes da censura cinematográfica, a ser implantada após o Convênio. Deveria ser verificado se o filme poderia ser exibido ao público integralmente, se poderia ser classificado como filme educativo e se deveria ser declarado impróprio para menores. Citando o artigo 8º do Decreto:

Será justificada a interdição do filme, no todo ou em parte, quando:

I. Contiver qualquer ofensa ao decoro público.
II. For capaz de provocar sugestão para os crimes ou maus costumes.
III. Contiver alusões que prejudiquem a cordialidade das relações com outros povos.
IV. Implicar insultos a coletividade ou a particulares, ou desrespeito a credos religiosos.
V. Ferir de qualquer forma a dignidade nacional ou contiver incitamentos contra a ordem pública, as forças armadas e o prestígio das autoridades e seus agentes.

Em muitos pontos, os critérios estabelecidos no decreto aproximam-se da censura realizada pela Ação Católica em seus boletins. Nas atas das reuniões extraordinárias da Comissão de Censura Cinematográfica, podem ser acompanhadas as discussões acerca dos critérios de classificação dos filmes e
reconsiderações das avaliações realizadas.

O Convênio Cinematográfico realizou-se nos dias 03, 04 e 05 de janeiro de 1933, com a participação de educadores, jornalistas, cineastas, membros do governo, exibidores, representantes dos governos estaduais. O arquivo do Museu Nacional guarda os registros dessas discussões, que foram, depois de aprovadas, encaminhadas ao Ministério da Educação e Saúde Pública. Nessas sessões, podemos acompanhar as intervenções dos participantes, a grande maioria deles ligados a área de cinema e, em especial, ao grupo da Associação de Produtores.

No dia 11 de janeiro do mesmo ano, foi formada uma comissão encarregada de coordenar as propostas apresentadas durante os dias de reunião para encaminhá-las ao Governo Provisório. Reuniram-se no Salão de Conferência do Museu Nacional, sob presidência do diretor Edgard Roquette-Pinto, os senhores Benedicto Lopes, Francisco Venâncio Filho, Alberto Torres Filho, Adhemar Leite Ribeiro, Carlos Magalhães Lebeis e Adhemar de Almeida Gonzaga (Lourenço Filho e Moura Carijó faltaram e Teixeira de Freitas justificou a sua ausência). Dentre os pedidos encaminhados, destacam-se as solicitações de isenção para transporte de profissionais e material para filmagem de assuntos educativos, expedicionários e turísticos em território nacional, bem como a redução de direitos de importação para aquisição de material; a isenção de impostos federais, estaduais e municipais, por três anos, às empresas cinematográficas brasileira que instituírem “cine-jornais semanais, sonoros ou silenciosos, com motivos nacionais, ou que fabricarem filmes educativos”; controle dos espetáculos infantis, exibindo apenas películas consideradas próprias pela Comissão de Censura Cinematográfica, ou seja, sem exaltação à guerra, à violência, sem aventura de bandidos ou fitas demasiado extensas; “que o governo conceda favores especiais nos cinemas que incluírem nas suas projeções infantis filmes educativos nacionais”; redução da Taxa Cinematográfica para a Educação Popular para os filmes produzidos no Brasil.

Nas colocações da Comissão, podemos observar propostas contraditórias entre si. Uma das explicações advém da pluralidade de proponentes, refletida também na Comissão, que possui representantes tanto da Associação Cinematográfica de Produtores Brasileiros – aliás, Ademar Gonzaga – quanto do Sindicato Cinematográfico de Exibidores, no caso, seu diretor Adhemar Leite Ribeiro. O exemplo mais evidente está na proposta de número 23:

Que o Governo conceda isenção de direitos de importação para filmes virgens e para o material destinado a indústria do filme brasileiro, silencioso ou sonoro, bem como de impostos estaduais, municipais e federais a todos os estúdios nacionais, produtores e
distribuidores exclusivos de filmes brasileiros, pelo prazo de 3 anos;
(...)

Linhas antes, após reafirmar a obrigatoriedade de exibição de filmes realizados no país, diariamente, nos cinemas do território nacional, na proposta de número 16 é colocado.

Que o Governo conceda aos filmes negativos impressos, importados, os favores de que atualmente goza o filme virgem (...)

As propostas encaminhadas pela Comissão solicitam benefícios tanto para produtores brasileiros quanto para exibidores, que trabalham com o material estrangeiro. Ao contrário das propostas de inibição da importação, defendidas por toda a indústria brasileira, no caso do cinema, ela não se aplica. Ao mesmo tempo, como destaca Bernardet, é estabelecida uma quota para o filme nacional e não ao contrário, protegendo o cinema estrangeiro e não a produção local.

A Comissão de Censura Cinematográfica inicia suas atividades em maio de 1933. O grupo de censores era composto por um representante do Chefe de Polícia, um representante do Juizado de Menores, o diretor do Museu Nacional, um professor designado pelo Ministério da Educação e Saúde Pública e uma educadora indicada pela Associação Brasileira de Educação, além de membros designados pelo ministro da Educação e Saúde Pública para as funções de secretário-arquivista e três suplentes. Serão membros representantes da Comissão: Jonatas Serrano e João Rangel Coelho, representantes do Ministro da Educação; Carlos Magalhães Lébeis e Plácido Modesto de Melo, representantes do Juiz de Menores do Distrito Federal; Sìlvio Júlio de Albuquerque Lima, Eduardo Pacheco de Andrade e José Pinto de Montojas, representantes do Chefe de Polícia do Distrito Federal; Armanda Álvaro Alberto, representante da Associação Brasileira de Educação; Ademar Leite Ribeiro, representante da Associação Brasileira Cinematográfica; Antônio Camilo de Oliveira e Gastão Paranhos Rio Branco, representantes do Ministério das Relações Exteriores; Benedito Lopes e Clóvis Martins, Eduardo Pacheco de Andrade e Gastão Soares de Moura Filho, suplentes. A presidência coube ao diretor do Museu Nacional, Roquette Pinto, até 1935, sendo substituído por Alberto Betim Paes Leme.

A relação dos filmes examinados era publicada em Diário Oficial e divulgada para os veículos de imprensa da Capital. Instituída a Comissão de Censura Cinematográfica, foi realizada uma reunião no Museu Nacional da Associação junto a Ademar Leite Ribeiro a fim de estabelecer um projeto que possibilitasse o cumprimento do artigo referente à obrigatoriedade através de um “pacto” entre produtores e exibidores. O relatório da Associação Cinematográfica de Produtores Brasileiros narra as reuniões que levaram ao contrato firmado com o Sindicato de Exibidores Cinematográficos.

Pelo mecanismo das Instruções tinham os produtores que apresentar, do dia 26 de agosto de 1934 em diante, oito complementos por semana que satisfizessem, isto é, que fossem julgados pela Comissão de Censura de “boa qualidade”.

Essa obrigação resultava imperativa e sua não observância anularia tudo até então conseguido, de vez que, um dos dispositivos das Instruções determina que na ausência de filmes no mercado poderia ser suprido com a produção semanal de oito
complementos, com três cópias cada um seriam as mesmas suspensas. Cálculos exatos determinavam que o mercado só.

Desses encontros, foi criado a Distribuidora de Filmes Brasileiros, a D.F.B., departamento da Associação responsável pela distribuição de películas – inclusive as produzidas pelo governo a partir de 29 de março de 1935. Esse convênio durará até a implantação do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) que, segundo o decreto que o institui, fica responsável também pela distribuição das películas. O acordo firmado com o Sindicato de Exibidores Cinematográficos versava sobre os preços a serem adotados no aluguel dos complementos nacionais. A Associação comprometia-se em fornecer filmes nacionais aos exibidores vinculados ao Sindicato com preços estabelecidos em contrato, segundo a categoria da sala de exibição em questão. Não se sabe se, para o resto do país, foram firmados outros acordos para exibição dos complementos ou como ficou a inspeção sobre a projeção dessas películas, que cabia à polícia de cada localidade.

De toda forma, a negociação por espaços de projeção de películas e de financiamento dos filmes educativos passou, inicialmente, por um acordo com os exibidores, de modo a possibilitar sua execução. As reclamações correntes de que o cinema nacional não se desenvolvia por falta de espaço serão amparadas por uma legislação que obrigava a exibição do complemento nacional, porém estabelece uma quota aquém da possibilidade das mais de quarenta produtoras cinematográficas estabelecidas no país até 1936.

Na opinião de Cinearte, “os filmes brasileiros vieram numa percentagem modesta, medida mínima de apoio ao Cinema Nacional em relação às leis de proteção ao cinema em outros países menos aparelhados do que o nosso”. Ao mesmo tempo, louva o “reconhecimento oficial do cinema educativo”, esse “meio básico para a solução do problema brasileiro”, que irá contrabalançar a má influência do cinema de diversão – frisa a revista, na visão daqueles que acreditam nessa assertiva. Entre eles, pode-se incluir Canuto, Serrano e o próprio Behring, jpa falecido, então lembrado por Pedro Lima em sua coluna “Cine Diário” no jornal Diário da Noite, ao noticiar as primeiras sessões de cinema exclusivas para crianças.

O cinema é visto como uma importante fonte de esclarecimento e persuasão da sociedade brasileira. Vargas destaca, em um discurso de 1934:

Ora, entre os mais úteis fatores de instrução, de que dispõe o Estado moderno, inscreve-se o cinema. Elemento de cultura, influindo diretamente dobre o raciocínio e a imaginação ele apura as qualidades de observação, aumenta os cabedais científicos e divulga o conhecimento das coisas (...). Para a massa de analfabetos, será essa a disciplina pedagógica mais perfeita, mais fácil e impressiva. Para os letrados, para os responsáveis pelo êxito da nossa administração, será uma admirável escola.

Para “temperar o caráter do cidadão”, o cinema é um instrumento que o Estado utiliza para cumprir o dever de adaptá-lo ao seu espaço, “influindo diretamente sobre o raciocínio e a imaginação”. Suas principais funções seriam aproximar os núcleos humanos espalhados pelo território, sendo “um livro de imagens luminosas na qual populações praieiras e rurais aprenderão a amar o Brasil”, no qual “a raça que assim se formar será digna do patrimônio invejável que recebeu”.

A partir da reorganização do Departamento Oficial de Propaganda, que desde julho de 1931 elaborava, entre outras atividades, a “Hora do Brasil”, fornecendo
informações oficiais para a imprensa, foi criado o Departamento de Propaganda e Difusão Cultural (DPDC), em 10 de julho de 1934.58 É importante destacar que, nesse contexto, os principais mercados cinematográficos, em todo mundo, estão discutindo o domínio avassalador da produção estrangeira (no caso, de Hollywood) e pensando em formas de contrapor, não apenas a influência, mas a manutenção do seu cinema nacional. Cinearte, é claro, não fica de fora dessa discussão. Em 25 de junho de 1928, o Editorial trazia as seguintes notícias:

Ainda recentemente, um Decreto (18 de fevereiro) francês opôs restrições à entrada dos filmes estrangeiros em território francês, subordinando a importação a certas condições tendentes todas a incrementar a indústria francesa do filme.

Os produtores americanos movimentaram-se, sendo necessário mesmo que Will Hays, o ditador do Cinema nos Estados Unidos, fosse à França estudar e debater o assunto.

Depois de vários debates, foram feitas modificações no corpo do regulamento que baixou para a execução do referido Decreto, modificações que se satisfazem em parte os alarmas do produtor americano, obrigam este, entretanto, a deslocar parte de suas atividades para a França, pois para importar sete filmes estrangeiros, terá ele que produzir em França um filme. (...) A Alemanha, com a política de proteção aos seus filmes, conseguiu melhorar muito a sua produção como produtora. (...)

Parecerá que isso nenhuma importância para nós oferece.

Entretanto, é bom que reflexionemos sobre o assunto.

O cinema educativo apresentou-se, em inúmeros casos, como uma das formas de combater essa influência. Se por um lado, configurava-se em um incentivo do governo à “cavação”, tinha como benefício a institucionalização de uma identidade nacional, reforçada pelas imagens postas na tela.

Para o caso do cinema, o intercâmbio de informações em nível internacional possibilitou que se constituíssem, no Brasil, práticas específicas para a área, em permanente diálogo com representações estatais estrangeiras. Note-se que pensar um “modelo comum da diferença”61 implica trabalhar as especificidades de cada espaço e de cada povo que se deseja mostrar como único, autêntico e diferente dos demais. É estabelecido um diálogo com um auditório conhecido – sobre o qual o conhecimento do contexto social, econômico, político e cultural é fundamental – e através de uma linguagem que se julga a mais apropriada e eficaz. Por este caminho, mesmo que esteja baseada em premissas e objetivos comuns, a política cultural ensejada por um governo tenderá a ser aplicada de maneira distinta, posto que são dadas a atuar em estruturas diferentes e a partir de substratos que dirão respeito apenas àquele meio."


---
Fonte:
Taís Campelo Lucas Cinearte: "O Cinema Brasileiro em Revista -1926-1942". (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em História do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Federal Fluminense como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em História. Orientador: Profª Drª Angela Maria de Castro Gomes). Niterói, 2005.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

Visite o site Domínio Público

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Excetuando ofensas pessoais ou apologias ao racismo, use esse espaço à vontade. Aqui não há censura!!!