O que leva uma pessoa a se deixar filmar

"Para estudar esta questão do “por que se deixar filmar” é importante voltar-se para o conceito de imagem lacaniano de que o eu seria o outro. Para Lacan, a primeira identidade do sujeito é com a imagem e esta imagem é o outro: “o eu, escreveu ele, constrói-se à imagem do semelhante e primeiramente da imagem que me é devolvida pelo espelho – este sou eu.”

É o que Lacan chamou de Estádio do Espelho. Na verdade este termo teria sido inventado por Henri Wallon, mas foi Lacan que o apresentou desta outra forma: o ser humano é completamente prematuro no nascimento. A criança quando nasce não tem ego, pois este é uma construção. Aos seis meses de vida, um bebê não perceberia um espelho colocado à sua frente; com sete meses ele percebe algo, mas não sente o reflexo como uma duplicação; conforme vai crescendo, o bebê aumenta sua percepção do espelho, passa a haver uma interação com esta “outra criança”, que mais à frente o bebê vai perceber que é ele mesmo. Aí começa a constituição do ego.

Surge a primeira instância psíquica de Lacan, que é a construção do imaginário (o eu é o outro). A dimensão do simbólico é o mundo, no sentido da linguagem. Quando nos constituímos como sujeito estamos dentro do universo da linguagem. Para Lacan, o inconsciente se estrutura como linguagem, ou seja, tudo está em mim e fora de mim.

Partindo desses pensamentos é possível identificar um aspecto que justifica o aceitar ser filmado: as pessoas se sentem felizes pelo simples fato de ter alguém prestando atenção nelas. Isso acontece por um princípio básico para a psicanálise que é o da alteridade.

Para Eduardo Coutinho, não há impulso mais poderoso no ser humano do que ser escutado e reconhecido (…).Querendo ou não, para o bem e para o mal, estamos sempre à mercê do julgamento dos outros. As justificativas que o “mundo social” nos dá e as que nós criamos são instáveis, precárias. Não podemos ser reconhecidos de uma vez por todas: desemprego, crise e insucesso bastam para colocar sob suspeição os méritos do reconhecido. Nesse sentido, é brutal o poder de reconhecimento e legitimação de uma instituição como a mídia, em que basta aparecer para existir. (LINS, p.160/161)

O olhar produz reconhecimento e contribui para a construção da identidade. Passa-se do “Qualquer Um” (“ser genérico, sem singularidade”) para o “Um Qualquer”, aquele que conseguiu se diferenciar da massa. Ao ser ouvido por um documentário ou por um programa de televisão, é revelado “no indivíduo, mesmo o mais insignificante, aquele campo de singularidades do qual ele retira um nome próprio ao empreender operações sobre si mesmo e seu entorno” (GUIMARAES, 2005, p. 11).

Outro fator que pode ser levado em consideração é o da saturação da mídia. Conforme já discutido anteriormente, no trecho sobre a “onipresença” das câmeras, é possível perceber que a mídia influencia enormemente a vida das pessoas e está sendo absorvida a cada dia mais pelo público. Tudo é espetacularizado e participar deste “show” é o sonho de muitos.

Para o documentarista Frederick Wiseman, outro aspecto ainda é que, apesar dele considerar que todo indivíduo é um ator, acredita que a maioria não é boa o suficiente para representar outros papéis que não o de si mesmos. Não é porque está sendo filmada que uma pessoa vai mudar sua maneira de ser. Se não quer ser filmada, tudo bem, mas se aceita, agirá da mesma maneira que agiria normalmente. Até porque as pessoas quase sempre pensam que o que estão fazendo é certo e apropriado (por que fazer algo errado?). É isto que dá um bom material para o documentarista.

Mesmo quando uma pessoa não está muito confortável com a idéia de ser filmada, ela ainda assim age da maneira que considera mais apropriada, não para a situação da filmagem, mas para aquela situação maior em que se encontra. E é justamente isso o que um documentarista quer: que as pessoas ajam do modo que acham mais correto. Para Wiseman é um privilégio estar presente quando pessoas representam seus próprios papéis diante de situações complexas.

Ele acredita ter uma única obrigação para com as pessoas que filma nos seus documentários: a de fazer o melhor possível ao mostrar a realidade que encontrou. Ele tenta revelar, com exatidão, a experiência que teve durante as filmagens.

Esta é uma questão muito importante, tanto para o documentarista quanto para um jornalista que realiza uma matéria ou entrevista ou para um editor/ diretor de reality-show: preservar a fala do personagem e colocá-la no contexto em que foi dita.

Para um documentarista, por exemplo, ele filma por um período de tempo no qual entra em contato com pessoas e realidades diferentes da sua, acaba o trabalho e vai embora com o equipamento. Já o documentado tem que continuar sua vida. E às vezes, durante a filmagem, este último fala coisas que podem ser interpretadas de diversas maneiras, e que podem trazer repercussões positivas ou negativas. Duas pessoas diferentes podem olhar a mesma situação exibida no mesmo documentário e chegar a conclusões diferentes, baseadas nas suas experiências e valores.

A questão da polissemia é bastante seria porque, mesmo que o personagem, além de ter dado a autorização para a filmagem, assista à cena “duvidosa” e aceite sua exibição, ele não sabe o que as outras pessoas vão pensar. Esta é uma grande questão: o que terá mais importância, a integridade artística do filme ou a lealdade do personagem.

Na maioria dos casos de filmagem, o contato do documentarista com os personagens se dá somente naquele momento. Aquela seqüência representará a única vez que as pessoas filmadas o verão. Isto é um facilitador para o trabalho de edição, já que se vê cada personagem como um veículo transmissor de uma idéia, não como uma pessoa com a qual se tem uma relação. Certamente, não por causa disso, pode-se deixar de se preocupar com aquela pessoa, pois o que ela fala pode repercutir para quem assiste e atingir sua vida fora do filme/ programa.

Uma situação bastante polêmica foi a vivida pelo médico Rogério nesta quinta edição do “Big Brother Brasil”. Ele aceitou participar do programa, cumpriu todas as etapas para chegar à efetiva entrada na casa e, dentro dela, expressou sua opinião, fosse ela verdadeira ou “inventada” por ele para gerar polêmica. Rogério se mostrou extremamente radical e preconceituoso, principalmente em relação aos homossexuais. Isto começou a acontecer depois da declaração pública de outro participante do programa, Jean Wyllis, ao justificar sua indicação para o primeiro paredão, creditando a situação ao fato de ser gay. A partir daí, Rogério aumentou as brincadeiras, insinuações etc, tudo “reforçado” pela edição do programa.

A exibição de tal material gerou uma reação instantânea no público que acompanhava o programa, que começou a protestar, criticar o comportamento de Rogério, e até mesmo organizar grupos que ameaçavam agredi-lo fisicamente quando este saísse do programa.

Em um caso não tão sério, no BBB2, o diretor do programa Boninho deu uma entrevista falando sobre o que mostrar no reality-show:

Playboy: Você pretende detonar alguém na edição, como no caso do videoclipe da Stella enfiando várias vezes o dedo no nariz (…) Boninho: Mas se a Stella tinha mesmo a mania do nariz e era impossível não brincar com aquilo(…) Se a pessoa tiver uma mania semelhante e entrar na casa do BBB, vou detonar, sim. O cara sabe que, se está lá dentro, é para isso mesmo.” (BARROS, apud ANDACHT, 2004: 09)

Esta entrevista, citada no artigo de Fernando Andacht, dá uma noção do “tratamento” do programa, seus princípios, sua “ética e estética”. Boninho afirma que o programa só exibe o que o próprio personagem faz, sem acrescentar ou poupar nada. A equipe de edição do programa, inclusive, diz que muito do que Rogério falava não era colocado na edição, por que realmente poderia comprometê-lo fora da casa, como gritos de “Heil, Hitler” acompanhado do gestual correspondente, comentários sobre desvio de medicamentos controlados no hospital onde ele trabalhava etc.

Andacht chama este tratamento de “efeito Arcimboldo”, que significa “exorbitar a identidade normal, essa que foi apresentada no começo como ‘o perfil do participante’, para que o contraste com a criatura na qual ele se transformará seja mais notório ainda.” (ANDACHT, 2004, 11)

É importante ressaltar que um reality-show como o “Big Brother” tem uma grande preocupação comercial, ou seja, ter um elevado índice de audiência para alavancar contratos de merchandising duradouros e lucrativos. Portanto, quanto mais polêmica, maior o interesse do público, maior a audiência, e maior o lucro. Em um documentário,

o fato de a equipe não ser conhecida, não pertencer a canal algum de televisão, de o filme levar no mínimo um ano para ficar pronto e de os personagens não saberem muito bem o que é um documentário, tudo faz com que um outro tipo de contato seja estabelecido. Se não evita, pelo menos reduz o desejo excessivo de aparecer e diminui as chances de esse contato gerar a lógica do pior. (LINS, 160)

O documentarista tem, em princípio, um cuidado maior com seus personagens e com seus desejos de encontrar a eternidade na efemeridade, até por ter mais tempo de finalização e menos contato com a rotina diária destes."


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Fonte:
Maria Cecilia Talavera Bastos: "O homem como personagem – a estetização da existência". (Dissertação de Mestrado Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da PUC-Rio como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Comunicação Social. Orientador: Prof. Miguel Serpa Pereira). Rio de Janeiro, 2005.

Nota
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As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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