O riso medieval sob a perspectiva de Bakhtin

A carnavalização do riso medieval sob a perspectiva de Bakhtin

"Por intermédio de sua obra, A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais, o teórico russo Mikhail Bakhtin discorreu acerca da natureza do riso medieval. Para tanto, atentou para o fato de que na sociedade da Idade Média havia uma divisão bastante acentuada entre o sério e o cômico. Pode-se dizer que as autoridades, os religiosos e os senhores feudais defendiam a seriedade como atributo da cultura oficial. O cômico, por sua vez, opunha-se à cultura oficial e este valor subversivo o transformou em uma característica essencial da cultura popular.

Convém lembrar, como relata Bakhtin (1996), que, por um lado, a festa oficial, às vezes mesmo contra as suas intenções, tendia a consagrar a estabilidade, a imutabilidade e a perenidade das regras que regiam o mundo: hierarquias, valores, normas e tabus religiosos, políticos e morais correntes. Nesse sentido, como aponta o autor, a festa era o triunfo da verdade pré-fabricada, vitoriosa, dominante, que assumia a aparência de uma verdade eterna, imutável e peremptória. Por isso, “o tom da festa oficial só pode ser o da seriedade sem falha, e o princípio cômico lhe era estranho. Assim, a festa oficial traía a verdadeira natureza da festa humana e desfigurava-a.” (ibid., p.8). Por outro lado, o carnaval, contrário da festa oficial, era, como descreve Bakhtin, “o triunfo de uma espécie de liberação temporária da verdade dominante e do regime vigente, de abolição provisória de todas as relações hierárquicas, privilégios, regras e tabus.” (ibid., p.8). Assim, enquanto a festa oficial era a consagração da desigualdade, no carnaval todos são iguais e nele reina uma forma especial de contato livre e familiar entre os indivíduos normalmente separados na vida cotidiana pelas barreiras intransponíveis da sua condição, sua fortuna, seu emprego, idade e situação familiar.

Bakhtin (1996) destaca ainda que a própria Igreja, a princípio, em determinadas festas religiosas, permitia que o sagrado fosse dessacralizado. Entretanto, posteriormente, tais festas, como relata o autor - a festa do asno, a dos loucos e a do riso pascal - deixaram de ser permitidas dentro dos ambientes sagrados das igrejas, ocorrendo apenas em seu entorno. Isso ocorreu pelo fato de serem consideradas degradações grotescas do mundo oficial de tal sorte que havia nelas inversões paródicas dos cultos religiosos, instaurando, segundo Bakhtin, “uma lógica original das coisas ao avesso, ao contrário, que mostra o segundo mundo da cultura popular, como um mundo ao revés”. (ibid., p. 9)

Pode-se dizer que as pessoas, mascaradas ou fantasiadas, desfrutavam de total liberdade nessas festas e ali embriaguez, licenciosidades, tudo era permitido ao povo que, por sua vez, tomava as ruas e extravasava livremente sua primitiva alegria. Assim, por meio do riso e da visão carnavalesca do mundo, a seriedade é destruída e a consciência, o pensamento e a imaginação humana ficam assim disponíveis para o desenvolvimento de novas possibilidades: “daí, que uma certa carnavalização da consciência precede e prepara sempre as grandes transformações, mesmo no domínio científico.” (ibid., p.43).

Com isso, segundo postula Bakhtin, pode-se dizer que o riso é uma das principais formas pelas quais se exprime a verdade sobre o mundo, sobre a história, sobre o homem, assumindo "um profundo valor de concepção do mundo.” (ibid., p.57).

No entanto, para que a comicidade consiga desmascarar, desestruturar os grupos dominantes e revelar a verdade, é preciso que haja um contexto cômico, ou seja, o homem tem de estar inserido no grupo ou ambiente em que ocorre a situação risível para que compreenda a crítica social implícita. (cf. Bergson, 2004, p.6). Esse autor ainda acrescenta que o riso “é um ponto de vista particular e universal sobre o mundo” percebendo esse mundo “de forma diferente, embora não menos importante (talvez mais) do que o sério. " ( p.57).

A esse respeito, Bakthin dizia que o verdadeiro riso não recusa o sério, ao contrário, purifica-o e completa-o: “O riso impede que o sério se fixe e isole da integridade inacabada da existência cotidiana." (1996, p.105). Logo, o intuito do cômico na literatura é de instruir e capacitar o leitor para perceber a falsidade e os defeitos do homem, funcionando como um instrumento de combate contra o autoritarismo, intolerância e a falsa moral da sociedade. Sob esse aspecto, Pinto (1970, p.194) refere-se ao humor como a arte de descobrir a verdade, “utilizando do homem sua capacidade de inventar. O humor é essencialmente criativo. O humor é uma forma não linear de se descer ao fundo das coisas, de buscar e entender sua essência e revelá-la de maneira não convencional.”

Seguindo essa linha de raciocínio, pode-se dizer que na Idade Média uma das funções do bufão era a de exprimir a verdade por meio do riso. Tal personagem tinha o “privilégio de dizer bem alto o que todo mundo pensa baixo, o que é muito útil ao rei para fazer que enxerguem a realidade àqueles que ainda não compreenderam ou que fingem acreditar que a política é guiada pelos grandes princípios e pelos ideais morais e religiosos." (Minois, 2003, p.289).

Essa visão de mundo específica, marcada pelo riso, pela subversão dos valores oficiais, pelo caráter renovador e contestador da ordem vigente, materializados que são - por meio de uma linguagem caricaturesca e dúbia – confirma nossas impressões de que as crônicas de José Simão leva-nos a Bakhtin, tendo em vista os constantes rebaixamentos a que são submetidas as notícias e os seus atores, nesse caso específico, as mulheres. Conforme já havíamos assinalado no segundo capítulo, item 2.5, quando pontuamos alguns aspectos da crônica de José Simão, comprova-se, a partir da análise do corpus, que os textos do autor dessacralizam o sério, carnavalizam a notícia. Trata-se do riso alegre, de bem com a vida e, portanto, do riso carnavalesco, grotesco da acepção bakhtiniana.”

---
Fonte:
Márcia de Oliveira Jesus: "A mulher nas crônicas de José Simão: um estudo da construção dos estados de violência". (Dissertação apresentada à Banca Examinadora como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC, sob a orientação da Profª. Drª. Ana Rosa Ferreira Dias). São Paulo, 2008.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Excetuando ofensas pessoais ou apologias ao racismo, use esse espaço à vontade. Aqui não há censura!!!