A morte e o morrer

Com o fenômeno da morte não se dão negociações. Não existem protelamentos, desculpas, reajustes, nem tão pouco os famosos precatórios públicos. Não há sequer a possibilidade de assumirmos o ônus da questão daqueles que por ventura mais amamos, ela é pessoal — intransferível.

No entanto, faz-se hora de traçarmos uma distinção interessante. Dentro de um processo quase simbiótico, que envolve nosso fenômeno, uma coisa ganha aspectos sinonímicos, ou seja, a morte e o morrer muitas vezes nos conduzem a um mesmo campo significativo. Esta equalização se faz por ambas terem a mesma raiz significativa, porém em amplitudes orbitais distintas. A morte é algo partícipe da vida, e possui vertentes enraizadas, de forma concreta, em toda a cultura humana. Para clarear o leitor podemos estar relacionando a morte com múltiplas áreas do conhecimento científico onde, de uma forma direta ou indireta, são realizados inúmeros estudos sobre a questão resultando em um montante considerado de dados. É claro que podemos lançar um pouco de óleo na pista inferindo que o mesmo não pode ser generalizado,
pois o fato se dá sob múltiplas circunstâncias.

Temos tentado entender a morte desde há muito tempo, seja com as ritualísticas primitivas ou com aspectos de uma complexa estruturação metafísica. O desdobramento se vê claramente na questão platônica do conhecido “mito da caverna”, bem como na composição das religiões. Na impossibilidade de vitória pensamos no fenômeno como sendo algo a ser compartilhado. Como afirma Espinosa (Espinosa Baruch, Ética . 5ª parte prop. XXIII) subsiste em nós algo de eterno. Esta é uma sensação que parece sempre nos ter feito companhia. Mesmo assim, estamos impossibilitados de evitar a
morte ou de trazer um fato concreto que nos lançasse mão do vazio, do nada, abrindo-nos uma possibilidade de superação, uma concepção atemporal uma antítese heideggeriana.

Tentar encontrar na própria morte o combustível de sustentação da lógica vital requer antes de tudo coragem de expor-se ao domínio da dilacerante idéia do fim, numa
atitude produtiva distante da comiseração niilista.

Ao lado de poucas verdades inabaláveis a morte repousa serena a nossa espera. Representada pela nossa capacidade simbólica, adquire plasticamente contornos múltiplos, mas possui, independente da sua forma, seus gélidos dedos atados ao nosso
eu.

Semelhante a idéia de Deus, a morte tem seu contorno apenas simbolicamente. Sua experiência, por ser humanamente terminal, é totalmente inédita e desconhecida. Não há qualquer um de nós, humanos, que nos possa passar a idéia da experiência da morte. Sua própria condição como ente vivo lhe censura a propriedade. Ficamos assim com a experiência da morte alheia, ou seja, temos a dor ou o relato da perda daqueles
que nos são próximos — uma suposição premonitória.

Devemos entender deste fato a importância dos aspectos fúnebres que enlaçam o fenômeno, pois não temos oportunidade de usufruir deste conhecimento senão indiretamente. Desta feita, a omissão litúrgica do nosso meio desloca consigo também a oportunidade de se vir a ter, por mais parcial que seja, uma lucidez sobre o nosso próprio destino. Se entendermos a Cultura como o substrato da atividade humana, poderíamos assim assinalar que a ausência do que fora por milênios uma “cultura da morte”, implicaria em uma ausência de algo que fora por milênios parte importante de
nossa construção.

A idéia da formatação de uma antropo-história da morte com que nos descreve Morin,em seu livro O Homem e a Morte, nada mais é que a idéia da constituição da
vida pelo seu antagonista. (MORIN: 1997) Não é um caso de morbidez, é somente a revelação da importância do papel do devir e daqueles que nos deixaram na constituição do nosso Eu e de tudo a que chamamos Universo Humano.

O ser humano carece de sentido. Há uma inerente busca do sentido organizador em nossa espécie. Uma perseguição incansável à estrutura lógica interna que atribui às coisas uma sensação harmônica. Um certo sonho de reduzir-se ao fundamental, tal como os Pré-Socráticos: Tales de Mileto, Anaxímenes e Anaximandro na busca do
princípio básico de constituição e ordenação das coisas. (PADOVANI:1978)

É claro que a sensação não passa muitas vezes de um rudimentar esboço de uma inferência na questão causa-conseqüência, e é de se imaginar as incontáveis oportunidades em que esta hipótese vê-se fundamentada pela artificialidade. Neste ponto sucintamente podemos imputar ao desejo de fuga como fomentador-mor de tal ato. Mesmo assim, podemos genericamente declarar que temos uma necessidade primária de controle sobre tudo, e que esta premissa se vê desdobrada sob a faceta do
conhecimento. O conhecimento que nos sacia e que nos dá o sentido.

Todo este processo se iniciado não em complexas teorias ou processos
científicos, mas simplesmente com uma simples nomeação. A representação simbólica, seja sonora ou pictórica e principalmente lingüística é uma forma clara de conexão ao Universo Humano, e, por conseqüência, uma relação de domínio (BLANCHOT:2001).

Talvez, seja nesta lógica que desde as culturas mais ancestrais o homem vem lidando com o fenômeno da morte. Uma tentativa de transformar o desconhecido em
algo humano e vê-lo ressurgir posteriormente sob nossos pés — controlado.

A idéia de se ter o fato em questão como o fim pura e simplesmente é algo que
foge a uma chamada “lógica humana”. O fim, apenas é o Nada. Este, por não ser algo, possui em si uma quase incapacidade de definição. O nada desta forma se iguala ao Todo ou Uno. Pensar no Nada guarda maior, ou pelo menos a mesma, dificuldade de ater-se à idéia de Deus, visto que comumente é concedida a esta idéia a extensão de todos os superlativos. Uma quase sinonímia universal à idéia de Todo.

Seguindo uma analogia bem simplória, é até muito natural que a humanidade haja feito uma conexão entre os dois, ou seja, entre o Tudo e o Nada. Se observarmos essa analogia atentamente, veremos que se o Tudo e o Nada se correlacionam à morte como experiência limite tem em si uma tônica não terminal, mas sobretudo intermediária. Assim, faz-se clara a constatação antropológica das múltiplas culturas que estabelecem
morte, o morrer e o luto, como um grande rito de passagem. (ÁRIÈS:1977)

Poderíamos chamar o pensamento da morte como o formador mais legítimo do conceito de objeto filosófico. Se filosofar possui alguma premissa fundamental, a imaterialidade objetal pode, sem sombra de dúvida, ser elencada. Muitas das grandes questões filosóficas acabaram por se concretizar em disciplinas isoladas tendo como fomentador a concepção e formalização de sua materialidade e conseqüente empiria. Mesmo que exista a patologia médica e dentro dela uma distensão que a todo dia ganha ânimo e problematiza ainda mais a atividade clínica, há ainda o conceito imaterial e
intraduzível que nunca desagregará sua embalagem filosófica.

Outro fator que liga a morte à filosofia é a sua conexão ao pensamento. Como dissemos anteriormente, não podemos ter um discurso sobre a morte, mas sim sobre a mortalidade ou ser-mortal. Desta feita, é óbvio que a morte só existe em nossas mentes como pensamento e não como coisa em si. Mas o que seria então este pensamento? Pensar é uma atividade mental e desta forma se faz por natureza simbólica, ou seja,
constitui-se por uma representação. Nesta representação não necessidade que o mesmo esteja concretamente em questão, assim sendo, o pensante pode afastar-se voluntariamente deste mundo (realidade). Sem querer ser platônico, há uma distinção entre o real e o pensado. Isso pode ser corroborado por inúmeras menções, quase unânimes, que dentro de nós há todo um universo.

Se ampliarmos esta concepção de mundo interno e externo, poderíamos até saltar para uma analogia interessantíssima. Esta idéia inicia-se com a percepção da imobilidade do morto, ou sendo mais claro, a morte guarda em si a não interação com o mundo exterior — a imobilidade corpórea, física ou sendo genérico, a não-ação. Desta forma, se o ato de pensar é algo interno por excelência, há um quase antagonismo pensamento-ação. É claro que nesta altura o leitor inclina sua cabeça aos ombros, pois de uma forma legítima o pensar tem sua atividade e sua mecânica neural, mas, sendo objetivos, das atividades conhecidas poderíamos sem nenhuma restrição destacar o pensamento como a atividade mais passiva que realizamos. Retomando a idéia primeira, a ligação “filosofia pensamento morte” é algo que necessita ser considerada delicadamente. Talvez seja deste terreno que partam tantas alusões ao trabalho do
filósofo e a temática da morte. Platão, Sêneca e Montaigne, para citar alguns, possuíam em seu corpo teórico um cuidado especial à temática (PADOVANI:1978).

Filosofar não é mais que preparar-se para a morte. É por isso que o estudo e a contemplação transportam de alguma forma nossa alma para fora de nós e a mantêm ocupada, separada do corpo. É uma espécie de experiência educadora; ou melhor, é fato que toda a sabedoria e todas as considerações do mundo se resolvem por fim neste
ponto: ensinar-nos a não ter medo de morrer. (MONTAIGNE:1972). Se o pensar já é parecido com a morte, o que se deve dizer do pensar sobre a morte? Certamente um efeito duplicado, pois a "interrupção das atividades habituais" é dobrada: primeiro, porque qualquer pensamento é já interruptivo; segundo, porque o fenômeno pensado parece estar banalizado — não faz parte das atividades habituais da maioria das pessoas. Esse pensamento de efeito duplicado induz a uma interrupção tão radical das atividades habituais que pode resultar numa concepção psicopatológica, onde há um bloqueio do mundo externo para realização do “trabalho pensante”. Esta atitude possui em si uma falácia genética, onde o pensamento precede o externo. Sem dúvida nenhuma necessitamos todos do universo externo para alimentarmos nosso ser, e a quebra deste elo certamente acenderá o estopim do autoconsumo e da alienação.

A morte, como vimos anteriormente, está plasmada na Filosofia de uma forma complexa, seja na própria concretização de suas bases (pensamento) ou em elementos como a derrocada de Sócrates e a estruturação da concepção platônica. Contudo, existe
muito mais neste enlace do que a princípio poderíamos supor.

Filosofar é também um exercício. Um exercício de separação entre o EU e a idéia, ou seja, algo análogo a separar o corpo da alma, sendo ela destituída da armadilha teológica e metafísica. Ela então seria, pura e simplesmente, o representante de seu
antagônico da filosofia clássica grega — fisis.

Este significativo exercício pode ser considerado como a própria porta da imortalidade. Um processo de trabalho incessante com o tema faz com que seus desdobramentos sejam imputados em seu antagônico — a vida, e com ela uma crescente
sensação de imortalidade (PATOCKA: 1981).

Como sempre, é destacada em nosso percurso a questão do medo, que provém além da sensação do Nada, da incapacidade concreta de lidar consigo próprio. Desta feita, o trabalho de inferência na temática garante a protuberante conquista da uma sensação de superação e consecutiva imortalidade. Deste aspecto, emerge o que seria
uma nova ótica, uma mescla díspar rumo ao eterno.

Esta própria concepção, assumidamente platônica, é a libertação do Eu
degenerativo da imobilidade. Pode-se, quiçá, tentar equilibrar esta possibilidade à estrutura de fuga que se instaura na mente daquele que a sublima por completo. Por fim, atendo-se ao produto racional que se faz destas duas concepções a diferença é visivelmente marcante. Ao encarar a problemática tem-se um substrato intrínseco, e seja desta ou daquela essência, sua qualidade primeira é a evidência de um maior tônus na capacidade de reconhecimento de si. De forma muito resumida, temos como resultado a práxis da máxima filosófica socrática mais pura: “Conhece a ti mesmo”
(PLATÃO:1920).”

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Fonte:
EDGARD BELLE: "A DISCURSIVIDADE CONTEMPORÂNEA SOBRE A MORTE”. (Dissertação apresentada à Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Letras. Orientador: Prof. Dr. José João Cury). São Paulo, 2007.

Nota
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Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

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