A noção cartesiana de criação



“Ao se referir à idéia de Deus, Descartes afirma entender um ser:

soberano, eterno, infinito, imutável, onisciente, onipotente e criador universal de todas as coisas que estão fora dele”.

Em outro lugar, ele diz que tal idéia é a de:

uma substância infinita, eterna, imutável, independente, onisciente, onipotente e pela qual eu e todas as coisas que são (se é verdade que há coisas que existem) foram criadas e produzidas”.

A afirmação segundo a qual Deus é criador universal de todas as coisas que se encontram fora dele ou criador de todas as coisas que são precisa de atenção. O que significam as coisas que estão fora de Deus e todas as coisas que são?

Recordemos inicialmente que coisa em Descartes pode ser tanto aquilo que possui existência atual, como se referir também à realidade objetiva da idéia, ou ainda à existência possível das essências. Assim, o conceito de criação não se restringe ao mundo ou às coisas corpóreas, mas abrange as verdades eternas, uma vez que estas também podem ser designadas como coisas que são. Desse modo, a concepção de criação cartesiana é universal, ao contrário da concepção escolástica, pois para Descartes Deus é criador universal de tudo o que é, ou nos termos das cartas, Deus “é o autor tanto das essências quanto da existência das criaturas”.

Se de um lado os escolásticos e Descartes concordam em que a criação é uma produção mediante uma causalidade eficiente, por outro discordam, pois a escolástica afirma que a divina causalidade eficiente é responsável pela produção exclusiva das coisas existentes, ao passo que Descartes admite que ela é total; isto quer dizer que necessariamente todas as coisas (essências e existências) vêm a ser mediante uma causalidade eficiente. Nas Quartas Respostas, ele oferece as razões pelas quais defende a produção dos seres por meio dessa causalidade:

Quando se pergunta se alguma coisa pode se dar o ser a si mesma, quer-se saber apenas se a natureza ou essência de alguma coisa pode ser tal que não tenha necessidade de causa eficiente para ser ou existir”.

Assim, tudo o que é, na medida em que é, só não foi criado se pôde a si mesmo dar o ser ou a existência. O alcance da ação criadora é absoluto, isto é, requer a vontade divina, abrangendo desde os princípios até as naturezas eternas e imutáveis sobre as quais fala a Quinta Meditação. Mas tal afirmação significaria que essas coisas continuariam a envolver uma existência absolutamente necessária e eterna, já que criadas? Seria, portanto, tudo contingente? Deveria haver, em contrapartida, uma exceção à ação criadora, ou seja, algumas essências seriam criadas e outras, as naturezas verdadeiras e imutáveis, incriadas. A resposta cartesiana autoriza uma única exceção. Com efeito, Deus somente envolve uma natureza eterna e imutável que não pode não existir. E as próprias essências, conquanto imutáveis, não são absolutamente necessárias.

Portanto, mesmo as essências eternas e imutáveis são necessariamente criadas. Assim, não há nada que dispense o ato criador, exceto a essência do próprio Deus. Com efeito, nos Princípios, é afirmado o reconhecimento pela mente de que a idéia de Deus envolve uma “existência absolutamente necessária e eterna [...] de um ente sumamente perfeito”; idéia que “não é forjada por ela (a mente) nem exibe uma natureza quimérica, mas uma verdadeira e imutável natureza que não pode não existir”. Por existência absolutamente necessária só se pode entender aquela que não depende de outro quanto ao existir. Algo cabível apenas a Deus, pois é o único capaz de dar a si mesmo o ser.

Segundo a afirmação das Quartas Respostas, que vimos há pouco, Descartes estabelece uma espécie de critério capaz de determinar o criado e distingui-lo do incriado. Algo é criado se sua produção necessita de uma causalidade eficiente para ser ou existir. Aquilo que dispensa a causa eficiente pode ser declarado incriado, pois sua natureza é tal que não depende de nenhuma outra coisa como causa de seu ser ou existir. Descartes deixa entender que apenas Deus é incriado, posto que não é produzido por uma causa eficiente que o precedesse121. Afora Deus, tudo, absolutamente tudo, é criatura. Todas as coisas têm Deus como sua causa eficiente e total, ou seja, elas dependem absolutamente Dele. De fato, a dependência dos seres em relação a Deus se dá por criação, isto é, pela produção mediante uma causalidade eficiente. Descartes rejeita qualquer outro gênero de dependência que não a causa eficiente. Depender de Deus é ser criado. Isto vale, sobretudo, para as verdades eternas, pois ele afirma a Mersenne na carta de 15 de abril de 1630, que as verdades eternas “foram estabelecidas por Deus e dele dependem inteiramente, tanto quanto todo o resto das criaturas”.


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Fonte:
CARLOS EDUARDO PEREIRA OLIVEIRA: "DESCARTES A LIVRE CRIAÇÃO DAS VERDADES ETERNAS". (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Mestre em Filosofia sob a orientação do Prof. Dr. Homero Silveira Santiago). São Paulo, 2008.

Nota
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