O Índio no Universo Colonial: Mão-de-Obra

Em vista dos objetivos da empresa colonizadora portuguesa e de suas necessidades, a utilização da mão-de-obra indígena tornou-se não apenas uma opção, ou uma solução, mas uma prática corrente e cotidiana. O aprisionamento indígena para utilização como mão-de-obra escrava acabou por tornar-se uma das principais atividades coloniais, pelo menos nos primeiros anos da colonização e antes da inserção em massa do elemento negro africano.

Expedições de aprisionamento, que adentravam os sertões na busca por mão-de-obra indígena, tornaram-se práticas freqüentes. Adotadas por grande parte dos colonos, as expedições foram intensas, em especial na região referente à província de São Paulo
, onde a ação dos bandeirantes foi notável.

A utilização de mão-de-obra indígena na colônia, assim como as políticas e alianças desenvolvidas com o intuito de propiciá-la, vem sendo bastante discutida pelo autor John Manuel Monteiro. Em um de seus trabalhos
9, Monteiro procura compreender os Guaranis dentro da realidade colonial de apresamento de indivíduos para suprir a já mencionada demanda de mão-de-obra. Na análise, o autor não exime os povos indígenas de sua participação no processo de aprisionamento de nativos, ressaltando ainda a disputa entre tribos inimigas, com posições próprias, dispostos a alcançar seus objetivos. A inimizade entre tribos e a própria inserção de muitos deles no mundo, que analisaremos adiante, são elementos importantes para uma melhor compreensão do período colonial.

Constatam-se ao longo dos anos coloniais, posturas nativas próprias. Em algumas situações, os índios, chegaram a aliar-se aos jesuítas, ou mesmo em outros momentos, ser radicalmente contrários estes; o mesmo ocorria com fazendeiros e
paulistas. Ou seja, estes povos traçavam redes de alianças conforme a demanda de seus interesses. Segundo Monteiro, os atritos entre chefes indígenas e jesuítas eram constantes e, ao mesmo tempo em que as lideranças indígenas exerciam um importante papel de resistência, estas mesmas lideranças foram de fundamental importância como colaboradoras dos jesuítas nos estabelecimentos das missões.

Pode parecer, neste momento, que os índios estivessem adotando uma postura
ambígua frente à colonização portuguesa. No entanto, se pensamos os índios como mais um ator dentro deste cenário que se constituía, com participação ativa no processo de construção do Novo Mundo, podemos enxergar por outro viés. As pesquisas mais recentes sobre este aspecto vêm trazendo a nu uma nova visão do índio inserido no universo colonial. Valoriza-se a interpretação de um índio que soube inserir-se neste sistema, dele fazendo parte, mas o mesmo e trazendo consigo seus próprios interesses. As relações constituídas entre índios e portugueses pressupunham, desta forma, interesses a serem defendidos de ambos os lados. Ainda que os índios possam ser percebidos como atores ativos nas relações construídas no universo social, há que se salientar que se tratava de um convívio entre desiguais. O índio pode até ser percebido por sua postura ativa, mas não se pode negar a existência dos conflitos em função da desigualdade inerente nos interesses envolvidos e no poder implementado.

Conforme já indicado anteriormente, as relações entre jesuítas e bandeirantes
são elementos marcantes para o referido período, apresentando um clima de tensão ainda mais constante. Os jesuítas investiam seus esforços no desenvolvimento das missões, no interior das quais pretendiam catequizar e colonizar estes povos concebidos como inferiores, ensinando-lhes a religião católica e os valores europeus. No entanto, ao mesmo tempo, outros interesses estavam em voga na colônia, os interesses dos fazendeiros, grupo que trabalhava na colonização e buscava enriquecer. Para estes pouco valia a importância da salvação das almas pela catequização, devendo os problemas envolvendo índios serem resolvidos unicamente com ênfase na valorização do trabalho.

Para compreender os freqüentes conflitos entre jesuítas e bandeirantes, cabe apresentar com maior cuidado o trabalho de John Monteiro. Este historiador possui diversos trabalhos à questão indígena brasileira com atenção especial à região de São Paulo e aos conflitos muito freqüentes e que marcaram a construção da vila e futura cidade, entre jesuítas e colonos.

Para Monteiro, tais conflitos agravaram-se a partir da década de 1620, período no qual paulistas abandonam de vez o respeito ao índio catequizado e passam a atacar o interior das próprias missões. Motivos de caráter geográfico ou morais para justificar tais atos são insuficientes. A questão, na visão do autor citado, se converte com muito mais ênfase no fato de que o interior das missões reunia um considerável número de nativos, sendo, portanto, um motivo suficiente para a ambição paulista. Além disso, devemos lembrar que o índio aldeado já estava condicionado aos valores europeus que
se pretendia incorporar. O trabalho de amansamento das almas já realizado pelos jesuítas pouparia os esforços dos fazendeiros que pretendiam fazer uso do trabalho indígena.

No tocante à escravidão indígena, algumas hipóteses são levantadas acerca do destino de tão grande quantidade de cativos. Embora já se tenha proposto a possibilidade de venda para os fazendeiros do nordeste, esta hipótese vem perdendo espaço para a idéia de que estes negros da terra destinavam-se de fato para o desenvolvimento do planalto
. Para Monteiro, há a comprovação de que estes índios eram tratados como escravos, como mercadorias, sendo possível, através da verificação de documentação, constatar que índios são arrolados como bens em testamentos de fazendeiros.

Retomando a idéia de que o índio soube fazer alianças de acordo com seus interesses, a idéia do índio enquanto ator político, atuante no universo em que estava inserido, no recorte deste texto, o mundo colonial, vem sendo objeto de análise de alguns importantes trabalhos. Dentre estes, é merecedor apresentar o livro Metamorfoses Indígenas, de Maria Regina Celestino de Almeida
. O recente trabalho de Celestino, fruto de sua tese de doutoramento, foi publicado no ano de 2003 e tem como base a idéia de um índio participativo e atuante no mundo colonial em construção, tal qual se defende neste texto. Trabalhos, como o de Celestino, abrem os olhos para novas possibilidades de contemplação do índio no universo colonial, não o percebendo como um ator apático e sem vida, apenas uma marionete dos interesses dos colonizadores.

A visão do índio enquanto parte atuante no Brasil Colonia é compartilhada por Monteiro e Celestino. Ambos o percebem imerso em seus interesses, negociando com as partes envolvidas no processo de construção do mundo colonial. Desta maneira, pode-se compreender a opção de muitos nativos em colaborar com os Paulistas, servindo como um verdadeiro aliado na atividade de aprisionamento de outros índios.
As relações construídas eram de troca e aliança. Para os nativos era uma oportunidade para reforçar sua autonomia e tradição, garantindo que não seriam eles próprios escravizados e por fim, dariam seguimento às atividades guerreiras, elemento que fazia parte de sua cultura.

A mão-de-obra indígena foi vital para o desenvolvimento da colônia. No Rio de Janeiro, por exemplo, Celestino afirma que a mão-de-obra nativa foi importante em diversos setores tais como: trabalhos na minas, abertura de estradas nos sertões, defesa e fortificação da cidade, obras públicas em geral e, por fim, na já consagrada atividade de corte de madeiras.

Muitos autores, dentre os quais Monteiro
, a entrada de mão-de-obra africana no Brasil colônia e o aumento de sua demanda em algumas províncias surgem apenas quando se dá o esgotamento da mão-de-obra indígena. Já para outros autores, como Stuart Schwartz, a questão da mão de obra indígena continua a ser uma opção utilizada, apenas ganha outros horizontes.

Schwartz afirma que de fato houve a utilização de trabalho indígena no período colonial, dando ênfase à região do nordeste, em especial a Bahia. Para este autor, os índios eram utilizados não apenas como escravos, como muitas vezes se consolida no senso comum, mas também como mão-de-obra livre, assalariada ou camponesa. Mesmo
que não se possa nunca deixar de perceber o caráter violento da exploração indígena, em muitas situações são vistos como homens livres dentro da sociedade colonial. Salienta-se ainda mais uma vez que a utilização da mão-de-obra indígena era economicamente favorável e vantajosa ao universo colonial.

Ainda para Schwartz, a necessidade da entrada de mão-de-obra africana se deu pelo esgotamento da mão-de-obra indígena no litoral, em especial para a região dos engenhos da Bahia. O autor afirma que a grande mortandade de índios, em função da
sua pouca resistência às epidemias trazidas pelos europeus foi decisiva para ocorrer uma baixa populacional tão significativa que justificava a entrada dos africanos.

Porém, para compreender as relações que levaram ao quadro de utilização do
índio como mão-de-obra na construção da colônia, não basta discorrer sobre as relações entre índios, padres e paulistas. Necessita-se ir além e buscar envolver a posição da Coroa frente a esta questão. Percebe-se a existência de esforços governamentais para conter as enormes proporções que a escravidão indígena poderia vir a tomar, e que de fato tomou. O resultado dos esforços governamentais, no entanto, se traduz em um conjunto de leis e decretos que, embora visando de certa maneira legislar acerca da situação dos indígenas, se apresentam vagos, sem encadeamento ou progressão. Beatriz Perrone-Moisés, autora de uma análise sobre a legislação indígena no período colonial, é bastante enfática ao afirmar que a política da Coroa no referido período foi contraditória e oscilante.

A questão indígena era uma preocupação presente no cotidiano colonial. O desencadeamento de debates, com poucos consensos, esteve presente no referido período, e o resultado, segundo a autora citada, não passou de uma política incoerente realizada pela Coroa que procurava conciliar projetos incompatíveis, como, por exemplo, os dos colonos e dos jesuítas. A busca em garantir tais interesses estava centrada no fato de que ambos eram igualmente importantes para os interesses particulares da metrópole. Se por um lado a Coroa desejava conter a escravidão dos gentios, por outro regulamentava a possibilidade da existência desta mão-de-obra barata para investir no desenvolvimento da colônia.

A ambigüidade ajudava a fortificar um dos mais importantes embates travados no período colonial, sem apresentar, no entanto, resultados plausíveis. A ambivalência dos projetos destinados aos índios refletiu-se nas leis, existindo apenas um único consenso centrado na legitimidade da escravidão. Esta já nem era ponto de discussão, era certeza, a dúvida residia apenas em quais índios deveriam ou não ser escravizados.

Com relação à utilização da mão-de-obra indígena, a Coroa acabou por optar pela posição que lhe foi mais confortável. Primeiramente fez vista grossa a favor dos colonos, e por outro lado, legitimou a Guerra Justa como uma brecha na lei para que os objetivos fossem alcançados. Para tanto, partia-se da concepção de barbárie em que vivia o índio, em especial no que dizia respeito ao canibalismo nativo, aos olhos portugueses uma causa mais do que justa para o cativeiro
.

Os reflexos das contradições ficaram explícitos no claro distanciamento entre a
prática e a teoria da Coroa Lusa ao tratar da questão indígena. Outro motivo que corroborou para esta situação de contradições consolidadas foi o fato de não ter existido uma legislação específica para a colônia, ficando esta submetida basicamente às mesmas leis que regiam a metrópole, não sendo respeitadas as infinitas especificidades existentes entre estes dois mundos.”


---
Fonte:
MARINA MONTEIRO MACHADO: "A TRAJETÓRIA DA DESTRUIÇÃO: Índios e Terras no Império do Brasil". (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal Fluminense como requisito parcial para o título de Mestre. Orientadora: Profª Drª Márcia Maria Menendes Motta). Niterói, 2006.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

Visite o site: Domínio Público

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Excetuando ofensas pessoais ou apologias ao racismo, use esse espaço à vontade. Aqui não há censura!!!