Projeto da pecuária como ocupação definitiva do Rio Branco

"Os aldeamentos, como vimos, fracassaram, não só no Rio Branco como em toda a Amazônia. As razões são variadas, alguns delas já apontadas. Isso, porém, não foi motivo para acabar com a determinação de ocupar a região. Um novo projeto seria efetivado ao final do século XVIII.

Segundo Crócia, não havia no Rio Branco uma razão mercantil forte que pudesse sustentar e fixar uma colonização, a não ser o apresamento de índios. O resultado dessa conjuntura foi a instalação de um projeto pecuário, que passou a introduzir os primeiros rebanhos nos campos gerais, com a fundação das “Fazendas do Rei” em 1787. Esse projeto, como o dos aldeamentos, também teve como objetivo consolidar as fronteiras ao norte e reafirmar de forma mais intensiva a presença portuguesa na região. Para Ribeiro Sampaio, o projeto da pecuária barraria definitivamente a penetração de estrangeiros e a cobiça de outras nações européias, além de aproximar economicamente essa região do Rio Negro, pois dilataria o comércio interno e o externo, tendo como matéria-prima o resultado da produção de carne e couro proveniente da instalação das fazendas do Rei.

A proposta de Lobo D’almada, em 1787, também iria na mesma direção da de Ribeiro Sampaio:

“A introdução do gado vaccum nos férteis campos do Rio Branco deve produzir um artigo de comércio ao interior da Capitania que lhe traria muitas vantagens: primeiro, a de ter açougue na capital, e evitar-se o estrago que se faz nas tartarugas. As carnes secas com que se poderiam fornecer a diferentes povoações da capitania em que há trabalhos públicos. A sola que fabricada na capitânia sahiria a melhor preço aos seus habitantes, e seriam mais bem pagos e mais a tempo providos d’ella.”

Dessa forma a Coroa Portuguesa, fundou três fazendas estatais na região, no final do século XVIII. As chamadas fazendas Reais, nas terras do alto Rio Branco, foram divididas em três áreas. A oeste, entre o rio Uraricoera e o Rio Branco, fundou-se a do Rei – registrada com o nome de “São Bento”. Outra, chamada de São José, foi instalada perto do Forte São Joaquim. A última fazenda, a de “São Marcos”, criada no setor norte, ficou localizada entre o rio Uraricoera e o Tacutu.

O setor da pecuária, nos campos já naturais do Rio Branco, pareceri a ser um investimento duvidoso ante o extrativismo que podia ser praticado com maior segurança em outras regiões da Amazônia. Porém, fortes atrativos oferecidos aos estabelecimentos de criatórios iriam atrair colonos civis: a grande quantidade de campos, a mão de obra indígena e principalmente o gado solto, não exigindo mais que a sua captura e instalação em um pedaço de terra. Isso leva Freitas a afirmar, acertadamente, que o “pé de boi tornou-se a mola propulsora da ocupação do solo roraimense.”

Nadia Farage observou, que no Rio Branco, para que a atividade com o gado fosse bem sucedida, foi necessário, novamente, conquistar a simpatia dos índios, principalmente por serem a maioria naquele período. Isso não significa que a violência deixasse de ser empregada. Porém, a especificidade da ocupação dessa região fizera das populações indígenas, como já apontamos, um elemento importante nessa conquista, passando a ser requisitada desde a construção do Forte São Joaquim, junto com os projetos dos aldeamentos. Dessa forma o trabalho com a pecuária foi fortalecido, favorecendo em muito a relação interétnica e uma aproximação dos índios com a sociedade nacional na tentativa de forjar meios para a sua própria sobrevivência, como foi assinalado por Bartolomé: "Al o longo de todo el processo de dominacion, lãs etnias indígenas americanas han desarollado uma série de extratégias adptativas y tacticas de acción tendientes a no perder su identidad de tales."

Ao longo do século XIX, as fazendas particulares começaram a se multiplicar tanto nas terras das Fazendas Nacionais como fora delas. O que não previam seus idealizadores é que as fazendas de São Bento e São José fossem sendo ocupadas por posseiros no início do século XIX, ou sendo usurpadas por seus antigos administradores e arrendatários que se tornariam grandes e ricos fazendeiros às custas das Fazendas do Estado, principalmente depois da proclamação da República.

Koch Grunberg, em passagem pelo Rio Branco em 1910, constatou naquele período que, das três Fazendas Nacionais, só a de São Marcos funcionava devidamente, e esta seria alvo de interesses particulares, pois nos últimos anos, numerosas fazendas particulares ali se fixaram, além de usarem suas próprias marcas no gado selvagem que por ventura iam encontrando. Segundo ainda o viajante, se a fazenda São Marcos possuísse de 18.000 a 20.000 cabeças de gado, somente 5.000 pertenceriam ao Estado; as demais estariam assinaladas com o marco do latifundiário Sebastião José Diniz, do Pará, cujos herdeiros estavam envolvidos há muitos anos em processos contra o Estado.

Nesse mesmo período, segundo relatórios oficiais da Província do Amazonas, havia realmente um vazio demográfico na região. Porém, em 1886, outro relatório já apontava a existência de 80 fazendas particulares, movimento que só tenderia a aumentar no início do século XX, apoiado por políticos da região que incentivavam o governo federal a arrendar as terras do Rio Branco, sem que a população indígena fosse levada em questão ou sequer fosse mencionada nos projetos.

A pecuária, levada adiante por colonos, teve como primeira conseqüência a disputa pela própria mão-de-obra indígena entre os primeiros fazendeiros. Mais do que isso, as terras indígenas passaram então a ser alvo de cobiça, não mais de portugueses, mas de brasileiros, dando posteriormente origem aos grandes latifúndios em Roraima; isso porque a expansão da pecuária, idealizada no final do século XVIII, teria seus primeiros frutos nas últimas décadas do século XIX e início do século XX, dando finalmente uma base econômica de sustentação para a região, ocupando cada vez mais as terras indígenas pela violência, escravidão, como também pelos mais variados expedientes jurídicos.

O processo de ocupação das terras indígenas já havia sido efetivado em quase sua totalidade tanto no Sul como no Nordeste do país, sendo que nessa trajetória foram se eliminando diversas etnias indígenas. Agora seria a vez de mudanças também na composição étnica e demográfica do extremo norte do país, além do recrutamento dos grupos indígenas do Rio Branco, pois uma frente de expansão iria se instalar ali para ficar. Estava sendo definido um modelo econômico para a região, com o impulso dado às condições de acesso à terra pela pecuária extensiva. Dessa forma a mão-de-obra indígena passava a se converter também numa questão de terra. Isso não significa dizer que o uso da mão-de-obra indígena na região tenha sido abandonado; ao contrário, nesse processo o trabalho, que já era de fundamental importância na região amazônica, passou também a ser para o caso de Roraima. Os dados comprovam tal análise: em 1863, o viajante Wallis G. observava que os fazendeiros da região já utilizavam a mão-de-obra indígena com muita regularidade em suas fazendas, no transporte e no comércio de gado para Manaus.

Em 1887, M. Coudreau, viajante francês em visita à região, enfatizava que a economia dependia exclusivamente da mão-de-obra indígena. A crônica do Padre Liebermann, que em fins do século XIX visitou o Rio Branco, faz menção explícita a trabalhadores Macuxi e Wapixana, trazidos do alto Rio Branco para a extração do caucho em sua foz.61 Já na primeira década do século XX, essa realidade não teria mudado. Theóphilo Leal, visitando a região e posteriormente publicando um artigo no Jornal do Comércio do Rio de janeiro, faz severas críticas, contra o uso excessivo da mão-de-obra indígena, que era então a única, e a forma como era explorada:

“ São os índios das tribos Macuxi e Wapixana os únicos trabalhadores rurais e braçais da região. Já nas culturas, já nas campeadas, já nas lutas contra as cachoeiras. São os índios dessas tribos, repito, que trazem o esforço e a sua coragem ao civilizado que os explora, os despreza, os maltrata, apesar de facilitarem-lhe alimentação, que não produz, e oferecem-lhes valor, que não possuem.”

Quase no mesmo período, outro relato é deixado por um índio Macuxí, de nome Pita, ao etnógrafo alemão Koch-Grunberg, a quem descreve sua péssima experiência de trabalho com os brancos na região. Conta ele ao etnógrafo que um fazendeiro de nome Campos, um dos mais antigos colonos do rio Uraricuera, havia persuadido a ele e a mais trinta e cinco Macuxí e Wapixana a irem para Manaus. Ali embarcaram em um vapor, que deveria devolvê-los ao Rio Branco. Porém o barco deu a volta e desceu o rio Amazonas e os índios se colocaram a admirar, não podendo fazer nada de imediato, como também passaram dois dias da viagem sem comer absolutamente nada. Durante seis anos tiveram que trabalhar com a saúde debilitada nas selvas de caucho do rio Purus. O saldo final dessa experiência foi a morte de vinte índios, das duas etnias, tendo como causa principal as mais variadas febres que se adquirem na região.

Esse tipo de descimento já fora praticado diversas vezes no período colonial, quando os índios do Rio Branco eram vendidos como escravos para colonos da Amazônia. A fala do índio Pita deixa cada vez mais claro que a prática da escravidão teve sua continuidade nas primeiras décadas do século XX. Levar os índios para trabalhar rio abaixo foi uma prática constante. Era como se a população indígena estivesse ali para atender aos seus interesses, seja na exploração das drogas do sertão, na pecuária ou como carregadores de mercadorias para garimpeiros, como ocorreu no final da década de 1930 por meio de uma nova frente de contato, a mineração.

Outro testemunho que reafirma nossa suspeitas quanto à utilização da mão-de-obra indígena, vem de Alexandre Hamilton Rice, que esteve na região no final de 1924 e início de 1925. Observou que a região deveria ser rica em produtos agrícolas, porém era carente de frutas e legumes, causando danos irreversíveis à população local, que tinha a agricultura totalmente negligenciada. A explicação de Rice era de que toda a mão-de-obra, principalmente indígena, vinha sendo há um longo tempo monopolizada pelas fazendas de gado.

Segundo Nádia Farage e Paulo Santilli, o uso freqüente de mãode- obra indígena era um fato corriqueiro, e a prática colonialista de escravização permanecia intacta em Roraima após a Independência, modelo que era até elogiado pelos funcionários da então Guiana Inglesa, hoje República Cooperativa da Guiana. Nesse estudo, é mencionado um funcionário inglês que, em 1879, tecia elogios ao modelo de ocupação empregado pelos brasileiros nos campos gerais do Rio Branco, utilizando índios Macuxi e Wapixana na lida com o gado, num recrutamento forçado; acrescenta esse funcionário que os fazendeiros tinham muito cuidado para cooptá-los. Passava então o funcionário inglês a defender esse mesmo modelo para a colônia inglesa: “Há quantidades de índios vivendo no distrito, no momento ociosos, mas que podem, com cuidado e bondade, tornarem-se vaqueiros úteis desde que são, em alguma medida, tribos aparentadas daqueles índios que fazem o trabalho nas fazendas brasileiras.”

Dessa forma, não é difícil concluir que as fazendas de gado, ao menos em Roraima, não apresentavam grandes diferenças da grande lavoura existente no restante do país, pois as duas empregavam trabalhadores escravos como forma predominante de trabalho, sendo que esta se utilizava da mão-de-obra negra e aquela da mão-de-obra indígena, apenas aparentemente livre. E quando já não era possível explorar a mão-de-obra escrava dos negros, após a abolição da escravatura no país, em 1888, os índios continuavam sendo escravizados no extremo norte do país.

Enquanto os colonizadores ingleses aspiravam copiar o modelo dos primeiros fazendeiros, o Estado brasileiro, que continuava a ter suas fazendas particulares, levava em frente seu objetivo maior que era o de obter o difícil controle sobre toda a região do Rio Branco, principalmente porque sempre pairava o medo de perder esse território para os estrangeiros.

Em 1858, a lei Provincial que designou as fronteiras do Amazonas estabeleceu que a "freguesia de Nossa Senhora do Carmo" passaria a ser denominada Boa Vista, como sede administrativa da região. Com o advento da República, a freguesia de Nossa Senhora do Carmo foi elevada à categoria de município, em nove de julho de 1890, com o nome de Boa Vista do Rio Branco. Em 1892, já se encontrava relacionada entre os municípios do estado da Amazônia, recebendo, assim, a autonomia administrativa desejada pelos pecuaristas locais, que enxergavam nessa autonomia a possibilidade de ocupar legalmente as terras. O novo município teve como primeiro Prefeito o coronel João Capistrano da Silva Motta, grande proprietário de terras na região.

A partir da autonomia administrativa, o número de fazendas foi aumentando ao longo dos anos num processo ininterrupto, como também foram sendo legalizadas, pois foram criados diversos dispositivos legais que favoreceram a consolidação da ocupação fundiária. Dentre esses dispositivos, está à própria Constituição de 1891, e os Decretos Leis editados pelos estados, que passaram a regularizar as posses existentes antes da proclamação da República.”

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Fonte:
JACI GUILHERME VIEIRA: "MISSIONÁRIOS, FAZENDEIROS E ÍNDIOS EM RORAIMA: A DISPUTA PELA TERRA - 1777 a 1980". (Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco, como parte dos requisitos para a obtenção do título de doutor em História do Brasil, sob a orientação da Professora Dra. Ana Maria Barros dos Santos. Linha de pesquisa: Poder político e sociedade no Norte e Nordeste). Recife, 2003.

Nota
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