Sua Majestade, o Indivíduo Consumidor


“Com os avanços tecnológicos acelerados por duas guerras mundiais, que também serviram para fortalecer os Estados Unidos – geograficamente isolados dos conflitos –, verificou-se a mudança do modelo ocidental de sociedade, que, se antes se sustentava na produção, passou então a fundar-se no consumo.

Nesse processo, há de se destacar a revolução promovida pela automação que, após a 2ª Guerra Mundial, numa proporção jamais observada, determinou a progressiva substituição dos homens por máquinas nas linhas de produção, quebrando a relação até então direta entre o incremento desta e a geração de

empregos. Doravante, os bens fabricados tornaram-se cada vez mais acessíveis, embora cada vez menos duráveis, o que, de certa forma, cumpre papel essencial na manutenção de um sistema arrimado no consumo, retroalimentando-o ao garantir e, juntamente com outros fatores, criar e ampliar necessidades, sejam elas reais ou imaginárias.

Diante da produção de excessos que se acumulavam, o capital tinha de se expandir e, a partir dessa necessidade, as empresas começaram a romper as fronteiras nacionais, fixando-se em países subdesenvolvidos, que lhes garantissem menos tributação, leis trabalhistas mais frouxas e mão-de-obra barata. A falência dos regimes socialistas essencialmente vinculados à antiga União Soviética, bem como o surgimento da rede mundial de computadores – a Internet – favoreceram esse movimento e, se antes o capital fixava-se nas localidades onde se encontravam arraigadas suas pesadas estruturas industriais, passou, então, a circular livremente por todo o mundo, tão rápido quanto se possa efetuar um comando no computador.

Está-se diante, portanto, do que se pode chamar de neocolonialismo, neoimperialismo ou, em termos mais consensuais, neoliberalismo, todos caracterizando o mesmo movimento político e econômico de dominação em que não mais se utilizam os ruidosos exércitos de antes, firmando-se agora no fluxo de empresas e capital, na exploração do trabalho e na supressão sub-reptícia de soberanias.

Em lúcida análise, Paulo Bonavides assim descreve esse fenômeno:

Ontem, precisamente há dois séculos, representava o velho Estado Liberal a vanguarda do progresso; hoje se fez, todavia, instrumento de reação e retrocesso. Tal se depreende de sua recentíssima reformulação por obra da escola dos chamados neoliberais. A pravidade neoliberal introduziu esse monstruoso paradoxo: há pouco, o Liberalismo semeava Constituições; ultimamente se compraz em decapitálas; outrora, seu tema de legitimidade era a soberania, tanto a soberania nacional como a soberania popular; doravante, é a anti-soberania, o antipovo, a antinação. A aliança neoliberal com a unipolaridade globalizadora da superpotência que ora domina o mundo pelo Congresso de Washington fez-se dissolvente das nacionalidades, da estatalidade soberana e das Constituições. O Neoliberalismo é a Internacional do Capitalismo em sua versão mais atroz e funesta de dominação universal. (BONAVIDES, 2004, p. 40).

Com vistas a atrair o capital, os Estados, mesmo os socialmente mais estruturados, viram-se obrigados a criar condições mais confortáveis para seu fluxo, o que implicou a redução de sua intervenção nas relações sociais e econômicas, viabilizando o fenômeno da globalização, por meio das políticas ditas neoliberais. Tais políticas, como o próprio nome indica, representam uma reedição do liberalismo que conduziu a história no período imediatamente posterior à Revolução Francesa, no que diz respeito à máxima redução da intervenção do Estado nas relações privadas, permitindo que essas voltem a regular-se pela lei do economicamente mais forte.

Desse modo, em maior ou menor grau, observa-se o afastamento dos aparatos estatais das relações que envolvem a circulação do capital e, com isso, o enfraquecimento de mecanismos que antes asseguravam a força de certos laços e classes sociais, as quais dependiam da intervenção estatal para se equilibrarem em relação às que detêm o poder econômico. Por outro lado, mas com objetivos idênticos, para que esse fluxo ocorra tranqüilamente, sem a perturbação dos que não possuem os requisitos necessários para a ele se integrarem, os Estados retomaram com toda força seu caráter policialesco.

É o Estado Gendarme, próprio do liberalismo e que agora se vê reeditado em roupagem despida de conteúdo filosófico, sobre cujas políticas penais ensina Fernando Galvão da Rocha:

O direito penal liberal, no sentido de Estado Gendarme, por outro lado fundamenta-se na concepção política que pretende limitar ao máximo a intervenção do Estado na vida política e econômica da sociedade. O livre jogo de forças deveria promover a acomodação natural dos conflitos sociais. No entanto, não é isso que acontece. O argumento da mínima repressão do Estado Policial pode apresentar-se como uma falácia sedutora, mas ainda assim uma falácia, que determina a prevalência da liberdade sobre a igualdade. Nesse sentido, Zaffaroni esclarece que o direito penal liberal, como instrumento do Estado Gendarme, é um conceito que surgiu com a contra-revolução francesa e possuía objetivos de restaurar o poder político da burguesia. Afinal, um Estado que garantisse uma liberdade abstrata a todos os indivíduos permitiria que os economicamente poderosos reconquistassem o poder político. A liberdade burguesa significa para as classes populares o direito de escolher entre o salário miserável ou passar fome. Nessa perspectiva, a liberdade não passa de ilusão, já que as contingências da vida coletiva subtraem da maioria dos indivíduos as oportunidades de participação social.

E continua:

A segurança jurídica que a doutrina do Estado de Direito liberal oferece, na verdade, atende aos interesses individuais de estabilização do mercado. A política que permite uma economia totalmente livre da intervenção estatal também permite que o mercado faça do homem simples meio para a obtenção de lucros. O homem, para desenvolver plenamente suas potencialidades, necessita ser considerado pela sociedade como um fim em si, e não objeto de troca. Afirma Zaffaroni que o Estado Gendarme é próprio das sociedades que não fornecem meios para o desenvolvimento das potencialidades do homem. Possuindo forma indefinida e conteúdo racionalizável de acordo com as exigências do momento, o Estado Gendarme é, em essência, autoritário e constitui verdadeira negação ao Estado de Direito. Sob essa ideologia, o direito penal não tutela bens jurídicos necessários à sua auto-realização, mas apenas os interesses que servem para sustentar a dominação dos grupos mais poderosos. Atuando livremente na economia, os grupos dominantes possuem poder para eleger os bens jurídicos a serem tutelados, o que impede a atuação de um Estado Social de Direito. (ROCHA, 2002, ps. 76/77).

O enfraquecimento do Estado faz-se acompanhado do arrefecimento e da crise de diversas instituições que antes o arrimavam, representando a argamassa responsável pela coesão social, podendo-se citar, como exemplo, a família e a Igreja. Naturalmente, tais transformações não poderiam deixar de trazer reflexos para o plano subjetivo, já que, assim como o Estado e a sociedade, o indivíduo também se fundava a partir das instituições em questão. Assim, no âmbito individual, instaurou-se a crise do Simbólico, marcada pelo declínio da Lei e, logo, o declínio do Outro.

Segundo Luiz Alfredo Garcia-Roza:

Esse Outro não é uma instância mas a ordem simbólica constituída pela linguagem e composta de elementos significantes formadores do inconsciente.[...]. (GARCIA-ROZA, 2005, p. 211).

E, mais à frente, assinala:

O simbólico, por sua vez, é a Ordem, a Lei, o que distingue o homem do animal e funda o Inconsciente. A Ordem Simbólica é a ordem humana, é transindividual na medida em que precede o sujeito e é a condição de sua constituição como sujeito humano. [...]. (GARCIA-ROZA, 2005, ps. 213/214).

Ou seja, o Outro – a Ordem Simbólica, a Lei –, que, segundo Freud, antes era a responsável máxima pela opressão do sujeito – representando uma censura desmedida a alimentar um supereu sádico –, encolheu. Em movimento concomitante e inversamente proporcional, está-se diante da emersão de um indivíduo à mercê de suas pulsões narcísicas mais primitivas, as quais demandam pronta satisfação, porque já não se vêem limitadas pelas barreiras antes introjetadas.

O declínio da Lei determinou ainda o enfraquecimento do outro, enquanto semelhante que antes também marcava sobremaneira os limites do sujeito. É a vitória do gozo sobre o desejo, já que aquele toma tudo como objeto, enquanto este depende do outro também como ser desejante para tentar realizar-se. Assiste-se, portanto, a uma verdadeira ruptura do pacto social, determinante do retorno de impulsos delinqüenciais recalcados quando do ingresso na ordem coletiva, como já há muito observava Hélio Pellegrino, tendo em vista a realidade brasileira:

A ruptura com o pacto social, em virtude de sociopatia grave – como é o caso brasileiro –, pode representar a ruptura, ao nível do inconsciente, com o pacto edípico. Não nos esqueçamos que o pai é o primeiro e principal representante, junto à criança, da Lei da Cultura. Se ocorre, por retroação, uma ruptura, fica destruída, no mundo interno, o significante paterno, o Nome-do-pai, e em conseqüência o lugar da lei. Um tal desastre psíquico vai implicar o rompimento da barreira que impedia – em nome da Lei – a emergência dos impulsos delinqüenciais pré-edípicos. Assistimos a uma verdadeira volta do recalcado. Tudo aquilo que ficou reprimido – ou suprimido – em nome do pacto com o pai, vem à tona, sob forma de conduta delinqüente e anti-social. (PELLEGRINO, 1983).

Em síntese, observa-se que o Outro perdeu em muito sua força opressora, deixando de representar o limite máximo para os impulsos narcísicos do sujeito. Conforme se verifica, a deterioração de determinados pilares simbólicos determinou o fechamento do sujeito sobre si mesmo, exclusivamente ao redor de seus interesses. E, vale consignar, numa sociedade de consumo, tais interesses não encontram obstáculos, vez que a possibilidade de escolhas é infinita, não importando a legitimidade dos meios adotados para o alcance do objeto. Afinal de contas, enquanto na sociedade de produção os marginalizados eram aqueles que não produziam, na de consumo a sujeira fica a cargo dos que não consomem (BAUMAN, 1998).

E, se o mal-estar do sujeito moderno situava-se justamente no excesso de segurança decorrente da rigidez da ordem imposta e da estabilidade das relações – conforme disse Freud –, a quebra de vínculos antes indiscutíveis, a infinitude de livres escolhas e a falta de segurança são, segundo Bauman, a principal causa do mal-estar que acomete o indivíduo contemporâneo. Daí a poética frase do sociólogo, conforme o qual “se obscuros e monótonos dias assombraram os que procuravam segurança, noites insones são a desgraça dos livres” (BAUMAN, 1998, p. 10).

Nós vivemos hoje num mundo muito mais difícil: confrontamos um espectro de escolhas de vida mais amplo do que antes, nossas vidas estão menos firmemente embasadas no trabalho e nos relacionamentos, nossa existência cotidiana é experimentada como uma série de encontros portadores de riscos, sejam reais ou sob a forma de medos e apreensões. Sentimo-nos tanto materialmente inseguros como ontologicamente precários. (YOUNG, 2002, p. 12).

A precariedade ontológica a que acima se refere equivale ao que Kundera definiu como uma insustentável leveza do ser, ao constatar que a ausência total de faro faz com que o ser humano se torne mais leve do que o ar, com que ele voe, se distancie da terra, do ser terrestre, faz com que ele se torne semi-real, que seus movimentos sejam tão livres quanto insignificantes. (KUNDERA, 1983, p. 11).

Referindo-se à sociedade globalizada, em elogio à obra Você quer o que deseja?, de Jorge Forbes, o jurista Miguel Reale Júnior afirma:

A sociedade globalizada, paradoxalmente, conduziu o homem a ser o único responsável por si mesmo. A solidão ronda, e as escolhas, sob o impacto da publicidade e das informações em tempo integral, na busca sôfrega do sucesso, pesam cada vez mais nas costas de cada um. A frustração com o que se alcança faz permanente a insatisfação e revela o sentimento da incapacidade de se apontar diretrizes para a própria vida. (REALE JÚNIOR apud FORBES, 2005, contracapa).

Acompanhando o raciocínio desenvolvido por Freud ao final da obra O Mal-Estar na Civilização, cabe questionar até que ponto podem sociedade e indivíduo manter-se distanciados da Lei. Ao que se verifica, o horizonte que se nos aponta pela tirania de Narciso, em cores hobbesianas, não se mostra mais promissor que aquele para o qual nos conduzia a ditadura do Outro, bem representado no âmbito subjetivo por um despótico supereu.

Repete-se, portanto, a indagação feita por Freud, a qual, provavelmente, sempre se fará atual:

A questão fatídica para a espécie humana parece-me ser saber se, e até que ponto, seu desenvolvimento cultural conseguirá dominar a perturbação de sua vida comunal causada pelo instinto humano de agressão e autodestruição. Talvez, precisamente com relação a isso, a época atual mereça um interesse especial. Os homens adquiriram sobre as forças da natureza um tal controle, que, com sua ajuda, não teriam dificuldades em se exterminarem uns aos outros, até o último homem. Sabem disso, e é daí que provém grande parte de sua atual inquietação, de sua infelicidade e de sua ansiedade. Agora só nos resta esperar que o outro dos dois “poderes Celestes”, o eterno Eros, desdobre suas forças para se afirmar na luta com seu não menos imortal adversário. Mas quem pode prever com que sucesso e com que resultado? (FREUD, 1930 [1929]/1997, ps. 111/112).

Ainda que fundadas sobre novos modelos e valores, é hora de serem afastados antigos preconceitos para se repensar a importância de instituições como o Estado, a família e também a religião, o que implica refletir sobre a importância da Lei na preservação da civilização e do próprio indivíduo. Do contrário, corre-se o risco de ver perpetuada a barbárie quotidiana que se descortina nas esquinas, arruína as nações mais pobres e serve de espetáculo aos privilegiados, os quais assistem e consomem, pela TV, a fome, a miséria e a violência, numa catarse diária, enquanto seus muros, grades e fronteiras resistirem.

Apontados diversos aspectos sociais concernentes à passagem da sociedade de seu modelo de produção para o de consumo, cabe agora aprofundar o estudo dessa transição e de suas conseqüências na construção da subjetividade dos que estão imersos nesta nova realidade social.


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Fonte:
Domingos Barroso da Costa: "A CRISE DO SUPEREU E O CARÁTER CRIMINÓGENO DA SOCIEDADE DE CONSUMO". (Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Psicologia. Orientadora: Jacqueline de Oliveira Moreira). Belo Horizonte, 2008.

Nota
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A imagem (fonte: Revista Veja, 1970) inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

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