As trocas culturais entre os índios e a cidade



"Segundo Cancline,31 os estudos que se voltam para o mundo indígena têm um universo delimitado: procuram sempre evidenciar a diferença entre grupos e deixam de fora o que se impõe de modo crescente, que são os processos de interação com a sociedade nacional e mesmo com a economia transnacional.

Existem poucos estudos que se preocupam em investigar os
procedimentos pelos quais as culturas tradicionais dos indígenas e mesmo dos camponeses unem -se sincreticamente a diversas modalidades de cultura urbana. Vejamos a citação de Cancline referindo-se a diferença cultural como recurso de dominação:

... Desde o começo da colonização, um recurso para
dominar os grupos aborígenes foi manter sua diferença; ainda que a estrutura da subordinação tenha mudado, permanece a necessidade, por diferentes razões, dos dominadores e das classes populares, de que a cultura destas seja diferente... A desindianização provoca nesses grupos “a ruptura da identidade étnica original”, mas continuam tendo consciência de ser diferente ao se assumir como depositários de um patrimônio cultural criado ao longo da história por essa mesma sociedade.

Cancline sublinha a idéia de que mesmo com o chamado direito de
igualdade entre os homens, propalado nas Constituições das sociedades contemporâneas, ainda se procura manter uma dominação por meio da diferença cultural, a qual gera um sentimento de marginalização por parte do indígena. Para fazer frente a esse sentimento o indígena, procura a manutenção de vínculos com os seus pares, até onde as circunstâncias das cidades os permitam.

Ressaltemos ainda, que as cidades se impõem aos índios com as suas
modernizações e os levam a absorver sincreticamente, modalidades dessa modernização.

Corroborando os argumentos de Canevacci, podemos afirmar que o
sincretismo é um recurso usado como não aceitação pacífica de imposição, que provoca uma reelaboração nas relações interculturais. Ao tentar apreender a origem dessa condição, Canevacci afirma:

O sincretismo ocorre porque os seres humanos não
aceitam automaticamente os novos elementos; eles selecionam e recombinam itens no contexto do contato cultural. O processo de globalização não é simplesmente aquele em que as culturas indígenas são modernizadas, mas também aqueles em que a modernidade se indigeniza.

Ainda para Canevacci, a compreensão do sincretismo é indispensável
para se entender o processo de mudança e continuidade, inovação, imitação, modernização ou globalização e para lidar com um mundo globalizado, relativista e pluralista, em que modernidade e tradição são sincretizadas. Para ele, o sincretismo na atualidade diz respeito aos trânsitos entre elementos culturais nativos e alheios, que levam a modificações, justaposições e reinterpretações. Ocorre também, como um processo de mixagem do compatível e de fixação do incompatível. O contexto sincrético do contato cultural, afirma Canevacci, deve ser caracterizado pela reinterpretação ativa da recombinação desnorteante e da revitalização móvel.

O sincretismo portanto, faz-se presente como novas formas de
conexões e trocas entre diversas culturas que encontram o caminho da hibridação.

É relevante afirmar que esse trabalho propôs-se a captar a compreensão
e estudar o imaginário dos índios Macuxi no contato com a cidade. Analisemos a compreensão de Melatti, na citação abaixo, sobre contato entre culturas:

Quando duas populações estão em presença uma da
outra, cada uma procura interpelar, julgar, os costumes e tradições da outra. Nem Sempre tal interpretação ou julgamento se faz de boa - fé. Desse modo, os civilizados brasileiros têm determin adas idéias a respeito aos índios e agem segundo essas idéias, Cada sociedade indígena, por sua vez, faz uma imagem da sociedade civilizada e atua segundo essa imagem.

Aqui em Boa Vista não é diferente: o choque entre o índio Macuxi e o
não-índio reeditam o estranhamento apontado por Melatti. A nosso ver a inserção do índio na sociedade boavistense não pode ser encarada como se este tivesse uma cultura imobilizada, fechada em si mesmo. Concordamos com Cancline, quando se refere aos cruzamentos socioculturais, em que o tradicional e o moderno misturam-se. Ele afirma que: Não se trata apenas de estratégias das instituições e dos setores hegemônicos. É possível vê-las também na “reestruturação” econômica e simbólica com que os migrantes do campo adaptam seus saberes para viver na cidade.

Ao observar a citação anterior, nota-se que Cancline deixa bem claro
que o índio, em contato com a cidade, procura reestruturar seus saberes como forma de sobrevivência, procura adaptar -se à nova ordem vigente e envereda por um caminho de transformações que para o citado autor, leva ao híbrido, o qual já não é um resíduo marcado pela síntese, mas sim o anúncio de multiformes sincretismos, é o vírus que na radical alteridade descobre o anúncio de futuros possíveis e misturados.

Quando Cancline refere-se à modernização cultural nos países latinoamericanos,
principalmente no tocante às artes plásticas e à literatura, ele sugere que por precária que seja a existência desse campo em relação aos grandes centros culturais, funciona nesses países como palco de reelaboração e como estrutura reordenadora dos modelos externos. Ele afirma ainda que: Em vários casos, o modernismo cultural, em vez de ser desnacionalizador, deu o impulso e o repertório de símbolos para a construção da identidade nacional.

Ainda segundo Cancline, os modernistas latino-americanos foram
influenciados por duas correntes antagônicas: de um lado, a informação internacional, principalmente a francesa; de outro lado, um nativismo inspirado na busca de nossas raízes. Esses artistas procuravam reelaborações, desejosos de contribuir com a transformação social, cuja conseqüência foi a hibridez que caracteriza as culturas latino-americanas. Cancline cita:

Os países latino-americanos são atualmente resultado
da sedimentação, justaposição e entrecruzamento de tradições indígenas (sobretudo nas áreas mesoamericana e andina), do hispanismo colonial católico e das ações políticas educativas e comunicacionais modernas. Apesar das tentativas de dar à cultura de elite um perfil moderno, encarcerando o indígena e o colonial em setores populares, uma mestiçagem interclassista gerou formações híbridas em todos os estratos sociais.

Percebemos que as relações interculturais na América-latina fazem
parte de um conjunto que se interligam pelo contato europeu, desde a colonização até os dias atuais, as quais forjaram uma cultura sincrética. O Estado de Roraima não foge a esse padrão: impera uma cultura híbrida.

Sabemos que o sincretismo na atualidade já não pode ser considerado
da mesma forma do início da colonização: voltado mais às questões religiosas, característico nas Américas, onde as religiões africanas sobreviveram disfarçadamente. Hoje podemos vê-lo como uma paisagem misturada, muitas vezes surpreendente e sempre imprevisível.

Existem diversas maneiras de pensar e aplicar a palavra sincretismo; e
por sempre aparecer como um termo perturbador desde a Antiguidade, dificilmente essa palavra poderá ser dissecada. Mais uma vez, recorreremos às idéias de Canevacci, quando toma a palavra sincretismo como termo–chave para se compreender a transformação que está ocorrendo no processo de globalização e localização que envolve, transforma e arrasta os modos tradicionais de produção de cultura, consumo, comunicação . Essa palavra não somente abre as portas à compreensão de um contexto feito de arrancadas e confusas mutações, mas também pode permitir direcionar esta crescente desordem Comunicativas ao lado de correntes criativas, descentradas, abertas.

Portanto, podemos afirmar que o sincretismo na atualidade rejeita a
síntese, bem como reinterpreta o contexto do contato social e reelabora conhecimentos, os quais caminham em um território marcado pelas travessias entre correntes opostas e freqüentemente mescladas, com diversas temperaturas, salinidades, cores e sabores. Um território extraterritorial.

Ao longo do tempo, tem-se pensado numa cultura indígena tradicional
cristalizada no tempo e no espaço. Segundo Gruzinski, nem sempre a ciência moderna elimina esse preconceito: ela despreza as interações entre os povos e principalmente, as repercussões da presença européia. Ora, como essa cultura poderia permanecer intacta, principalmente a partir do contato com o europeu? Quando Gruzinski procura analisar o pensamento mestiço, ele diz que o início da globalização ocorreu no século XVI com a expansão Ibérica, onde culturas e imaginários de povos sofreram influências de horizontes planetários. O autor toma como exemplo os índios de Nauas, que diante de massacres, guerras civis e epidemias, viram -se amputados de sua desenvolvida civilização e formaram uma sociedade fragmentada e insegura, em que eles observaram, adaptaram e assimilaram elementos da cultura européia renascentista e cristã. Mas o que criaram não foi puro mimetismo, nem cópia passiva de modelos trazidos por padres e funcionários da coroa. Foram obras mestiças, uma forma de resistência ao invasor e saudável reação de quem perdeu referências e valores.

No caso do Brasil, principalmente da Amazônia, o processo colonizador
não foi diferente do acima mencionado: os povos que habitavam esta região viram, com a invasão, suas estruturas políticas desestabilizarem -se. Antes mesmo da colonização efetiva, pelos portugueses, os nativos já haviam estabelecido uma afinidade com os estrangeiros, tiveram nas mãos mercadorias européias. Tal relação gerou a morte precoce de muitos, em decorrência do contato com micróbios desconhecidos do sistema imunológico dos mesmos.

Sabemos que desde o Renascimento, europeus desciam a floresta
amazônica e já na primeira metade do século XVII, começaram a freqüentar o coração da floresta Amazônica e a estabelecer laços comerciais com as elites indígenas dessa região, ao mesmo tempo que praticavam o apresamento de nativos para servirem de mão-de-obra escrava. O avanço desses europeus significou a dispersão e a extinção da maioria das populações que habitavam a região das várzeas amazônicas. À medida que essa população foi desaparecendo, recorreu-se aos descimentos de índios da terra firme, trazidos pelas tropas de resgate.

Foi por meio do processo acima mencionado que os missionários
criaram nas várzeas do baixo Amazonas, desprezando as diversidades culturais e lingüísticas, um novo grupo étnico, os Tapuias . Presas entre as ambições dos espanhóis e dos portugueses, as populações nativas são submetidas aos maus-tratos dos soldados e às empreitadas dos missionários, e são atraídas pelos pequenos vilarejos cheios de mercadorias européias e imagens cristãs.

É certo que essas relações modificaram os saberes e as crenças desses
povos indígenas. Vejamos o que diz Gruzinski, quando se refere à emergência de uma nova cultura, característica do México: a cultura mestiça ou mexicana, ele afirma que ela nasceu da interpenetração e da conjugação dos contrários. Essa cultura desenvolveu -se à custa de um sem-número de vicissitudes. Voltando-se para a realidade brasileira e exclusivamente para a Amazônia, veremos que a hibridação existente nesta região nasce nos mesmos moldes dessa mestiçagem mexicana, pelos reveses fomentados em decorrência do contato entre o europeu e o índio. Tal paradigma gera uma reelaboração de saberes, tanto do lado indígena quanto dos europeus. Para estes, viver em terras tão diferentes com uma natureza inóspita e com povos de culturas tão diversas, exigia um verdadeiro exercício de reelaboração."

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Fonte:
Azenate Alves de Souza Braz: "RELAÇÕES INTERCULTURAIS: A VIVÊNCIA DO ÍNDIO MACUXI EM BOA VISTA - anos 80/90". ( Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos registros necessários à obtenção do título de Mestre em História Social. Orientador: Prof. Dra. Maria Paula Nascimento Araújo). Rio de Janeiro, 2003.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

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