Estrutura ideológica do merchandising social

ESTRUTURA IDEOLÓGICA E SEMIFORMATIVA DO MERCHANDISING SOCIAL

"Como vimos, o merchandising social nasce como um derivativo do merchandising comercial. O termo merchandising é em si revelador da natureza de nosso objeto de estudo: merchandising (comercial) tem a ver com venda e/ou com oportunidade de
venda de mercadorias no interior das tramas das telenovelas. Dessa forma, ao adotarem o termo merchandising social para designar esse pretenso instrumento educativo, seus criadores e difusores assumem declaradamente que seu propósito é o de vender idéias e padrões de comportamento. Trata-se de uma relação de “compra e venda”, na qual a “compra” se realiza ou se efetiva na medida da adesão aos modelos de comportamento veiculados. O pressuposto é o de que é possível vender idéias da mesma forma como se vende qualquer mercadoria.

O sentido de “compra e venda” de idéias subjacente ao merchandising
social fica evidente quando observamos o critério utilizado para sua “avaliação”: esse dispositivo é considerado bem-sucedido quando promove mudanças de comportamento na população.

Frente ao exposto, podemos constatar a existência de dois diferentes papéis que caberão a dois diferentes sujeitos dessa relação de “compra e venda”, quais sejam: aquele
que veicula as idéias e modelos de comportamento e aquele que adere a tais modelos e idéias. Nesse sentido, cabe analisar qual a natureza da relação que se estabelece entre a emissora e o telespectador e se é possível considerá-la – como desejam seus idealizadores e difusores uma relação educativa.

Ponderando que o merchandising social visa a adesão a comportamentos
“socialmente desejáveis”, podemos nos perguntar: quem decide sobre a “desejabilidade” de um determinado padrão de comportamento? Ou ainda: se um determinado padrão de comportamento é considerado socialmente desejável, ele é desejável para quem? Parece estar implícita ao merchandising social a idéia de uma sociedade harmônica, na qual os interesses dos diferentes grupos ou classes sociais são necessariamente convergentes. As divergências e conflitos de interesse inerentes a uma sociedade de classes são, dessa forma, desconsiderados, ou, mais que isso, ocultados e mascarados sob um pretenso interesse universal: o merchandising social estaria difundindo modelos universalmente válidos e desejáveis e contribuindo, dessa forma, para um suposto bem-comum.

Resgatando a concepção de educação da Escola de Frankfurt poderíamos
questionar se uma relação efetivamente educativa pode se estabelecer sustentada em uma evidente relação de heteronomia. Isso remete a uma inversão presente na formação cultural, diria Adorno (1996), que se transformou em semiformação socializada no momento em que a cultura destacou unilateralmente o momento da adaptação, impedindo que os homens se educassem uns aos outros. Estamos falando de semiformação.

Afirmamos tratar-se de uma evidente relação de heteronomia na medida em
que não se objetiva o desenvolvimento da autonomia da razão do indivíduo, ou seja, a possibilidade de pensar por si mesmo, conforme Adorno (1995). Esse autor apontou justamente a necessidade de se desenvolver a “força para a reflexão”, para o “não deixar-se levar”, a necessidade de rompimento da identificação cega com o coletivo como elementos fundamentais de um processo educativo efetivamente emancipatório. Consideramos que a estratégia supostamente educativa do merchandising social contribui, ao contrário, para a manutenção do estado de menoridade do indivíduo. Esse processo aproxima-se muito mais do que Adorno (2000) chamou de adestramento. Conforme o autor, quando educação está associada ao adestramento de pessoas ou a se cultivar pessoas como se cultiva plantas, ela tem, obviamente, um forte elemento ideológico.

Consideramos, nesse sentido, que a busca pela adesão a modelos de
comportamento mais se aproxima do que Adorno (1996) chamou de semiformação de pessoas do que de uma relação genuinamente educativa. Em diametral oposição à capacidade de se estabelecer experiências verdadeiramente formativas, voltadas a uma educação que conduza à emancipação e ao restabelecimento político do indivíduo dentro da sociedade, o merchandising social, bem como a emissora, almejam, em verdade, a homogeneização. O merchandising social aparece como a voz da hegemonia que visa a homogeneização e a neutralização do que possa vir a ser heterogêneo.

Mesmo que Schiavo se refira a indivíduos, na verdade, em sua visão e em
sua concepção de pensamento estratificado em classes sociais, estamos falando do que Chauí (1981) denominará por “objetos sociais” e Adorno (1996) denominará por sujeitos semiformados. Isso porque, conforme Crochik (2006), para falarmos em indivíduo é necessário uma esfera interior que se contraponha à exterior, mesmo que essa interioridade seja originária desse exterior. Nesse sentido, o indivíduo é produto da cultura, mas é dotado de uma singularidade que o diferencia. A heteronomia ganha espaço quando o indivíduo já se identificou com a cultura a ponto de reproduzi-la sem reflexão, ou quando o indivíduo se opõe a ela, não se reconhecendo nela e colocando a própria cultura em risco. Tais discernimentos não só não são contemplados, mas são inviabilizados pela própria estrutura do merchandising social.

O comportamento de ajustamento buscado pelo merchandising social, por
sua essência padronizada e imiscuída em estereótipos e personalizações, se assemelha à compra dos produtos industriais, no que se refere ao seu caráter descartável e obsolescência – e porque não dizer, moda – de mercadoria padronizada. A projeção do telespectador nos padrões dominantes e estereotipados das personagens das telenovelas é falsa e estas, por sua vez, são declaradamente falseadoras da realidade conforme o próprio Schiavo (1995) admite:

A audiência das telenovelas se apropria de seus conteúdos, criando significados próprios. O imaginário ocupa o lugar do real e enquanto se assiste à novela, o sonho tem a chance de se tornar realidade. Realidade de
estar ali, diante do vídeo, num contexto histórico conhecido e numa geografia experimentada. Comportamentos latentes vêm à tona, revelando que cada um é capaz de muito mais do que aquilo que realmente faz.Um ator/atriz, representando um personagem, comprova a possibilidade de que pode ser feito e isto, para muitos, é o bastante. Os telespectadores não vêem os personagens como heróis, mas sim, como eles mesmos... amanhã, reproduzindo o que a publicidade denominou de “efeito orloff”. (...)Um sonho possível é capaz de mudar em alguns casos, muito mais do que uma realidade perversa, onde o trabalho e o sacrifício não levam além da mesmice do dia-a-dia. O universo da telenovela interfere homeopaticamente no cotidiano do telespectador, dando-lhe uma dose ficcional que, não sendo capaz de transformá-lo, também não o deixa como era. Expande a fronteira da realidade, sem fazer com que esta deixe de ser como é, mas abre novos caminhos intencionais do que poderia vir a ser. A telenovela é a linguagem do Brasil. Reflete suas contradições, enfatiza seus sucessos e fracassos. Ela é a cultura brasileira e, ao mesmo tempo, a ausência da cultura no Brasil. Trata de temas universais, com enfoque contemporâneo.Nacionaliza o regional, fantasia a realidade e realiza a fantasia. Enfim, (...) não se pode considerar alienante um programa que fala de sentimentos, como o amor e desejo de liberdade, comuns a todos os povos (SCHIAVO, 1995, p.58).

Porém, na visão ideológica do autor, esse falseamento produz alegria nas
pessoas, que encontram nas telenovelas um refúgio de suas vidas tão sacrificadas. É quando a ideologia pretende coincidir com a realidade. Mais ainda, o autor apresenta a telenovela como um espaço de ampliação das experiências dos telespectadores que, ao se projetarem na trama e nas personagens, “reproduzem”, nas palavras do autor, as experiências que lhes são alheias.

Schiavo entende por “expansão das fronteiras da realidade” o que Adorno & Horkheimer
(2000) denominarão por “impotência” diante da manipulação subjetiva provocada pela indústria cultural que “continuamente priva seus consumidores do que continuamente lhes promete” (ADORNO & HORKHEIMER, 2000, p.187).

Nesse sentido, as telenovelas são mencionadas como verdadeiros espaços de
entretenimento, capazes de livrar as pessoas da pressão do real que as sufoca, “da realidade perversa”, “do trabalho sujo”. Mas o seu caráter falseador da realidade, não é mencionado por Schiavo (1995), como violência, conforme observaram Adorno & Horkheimer, violência, à medida em que são o modelo do opressor mecanismo econômico que mantém tudo sobre pressão, no trabalho e no lazer, este por sua vez semelhante àquele.

Conforme visto em Schiavo, os padrões difundidos são adaptativos e
reprodutores de comportamentos socialmente desejáveis e que muitas vezes são convergentes com a manutenção do status quo. Assim, o merchandising social acaba sendo o porta-voz do dono (emissora) na propagação da ideologia da autodeterminação do indivíduo, característica da dominação observada no estágio atual do capitalismo.

Um processo verdadeiramente educativo deveria, necessariamente, ter
atuação marcante nos empecilhos à formação que fosse voltada à verdadeira emancipação dos indivíduos e não apenas postulá-los como existentes, o que a conotação de serem cristalizados e irrevogáveis na sociedade atual. Como se se dissesse “o mundo é assim mesmo, tais problemas são inerentes à condição humana”.

E no estágio atual do capitalismo, conforme verificou Adorno (1996), a
auto-determinação está profundamente comprometida pelo falseamento da consciência e pelo recrudescimento objetivo da sociedade na subjetividade do sujeito.

Conforme observado em Schiavo (1995, 2002, 2006) e Trindade (1999), bem mais do que um instrumento mera e pretensamente educativo, o merchandising social tem se tornado crucial para auto-propaganda da emissora. Fontenelle (2002) diz que a marca é
um dos elementos mais importantes do atual momento do desenvolvimento capitalista porque é nela que se concentram as características que se quer atribuir, por meio da propaganda, determinado produto.

Nesse contexto, o merchandising social em si tornou-se uma marca, cuja função é agregar mais valor à marca da emissora (Rede Globo). Tanto quanto o seu “irmão”
comercial, o merchandising social, em essência, surge, no limite, para gerar mais lucros, ou seja, manter a audiência hegemônica da Rede Globo. Diferentemente do merchandising comercial, cujas inserções podem ser encomendadas pelo cliente por meio do Levantamento de Oportunidades (LEVOP) ou sugeridas pela produção da telenovela que analisa “oportunidades” de produtos (clientes) – ou ainda as duas situações simultâneas, o merchandising social leva em conta aspectos bastante heterônomos no que diz respeito à educação, a saber: estratificação da audiência por classes sociais (A, B, C, D e E) e pesquisas que identifiquem a aceitação dos temas por classes sociais.

Um dos principais objetivos declarados do merchandising social, segundo Schiavo, seria o da promoção de mudanças sociais. Contudo, esse instrumento se refere sempre a ações individuais, mesmo quando o seu defensor faz referências a ações sociais. O
foco é via de regra a mudança de comportamento do indivíduo.

Por isso, podemos afirmar que esse mecanismo pretensamente educativo
não estimula verdadeiras ações sociais. Para tanto, seria preciso colocar em discussão a gênese histórica e propostas efetivas para combater a desigualdade sócio-econômica do Brasil, entre as maiores do mundo, que constitui elemento causador fundamental justamente dos problemas que se pretende “enfrentar” pela via do merchandising social (violência doméstica e urbana, desrespeito aos direitos das crianças e adolescentes, idosos e pessoas com necessidades especiais, criminalidade, drogas, preconceito, assédio sexual, “falta de consciência ecológica”, etc.).

O enfrentamento desses problemas implica organização, discussão,
articulação de vários interesses, consideração das diferenças e consideração detida da esfera política. Ao contrário, seus temas são dissociados da esfera política de ação, o que por si só já seria suficiente para classificá-lo como distante de uma verdadeira educação formativa proposta por Adorno; o merchandising social, justamente por ser vinculado à educação e desvinculado da estrutura sócio-política que está no amálgama dos problemas mencionados, é ele próprio semiformação, nos termos elaborados por Adorno & Horkheimer (1985), Adorno 1996), Zuin (2002), Maia (2002), Maar (2003) e Crochík (2006).

Já no resumo inicial de sua tese de livre-docência, Schiavo (1995) diz:

Com base em premissas quanto à função social dos meios de comunicação
de massa, a insuficiência programática do sistema educativo formal e aos problemas de saúde sexual e reprodutiva prevalentes no Brasil,identificaram-se as telenovelas como suporte efetivo para mensagens educativas no campo da sexualidade dirigidas a grandes audiências. Não se trata de difundir informações fragmentadas, mas de gerar oportunidades em larga escala- para que os indivíduos se apropriem de conhecimentos que poderão ser utilizados em seu próprio benefício (SCHIAVO, 1995, p.1).

Este excerto também pode ser considerado o resumo ideológico do autor e
da emissora. Adorno & Horkheimer (2000) não deixam dúvidas de que a função social dos meios de comunicação de massa é a manutenção do status quo. “Cada setor se harmoniza em si e todos entre si” (p.169), além é óbvio, de obter lucros:

Toda a civilização de massa em sistema de economia concentrada é idêntica,
e o seu esqueleto, a armadura conceptual daquela, começa a delinear-se. Os dirigentes não estão mais interessados em escondê-la: a sua autoridade se reforça quanto mais brutalmente é reconhecida. Filme e rádio não têm mais necessidade de serem empacotados como arte. A verdade, cujo nome real é negócio, serve-lhes de ideologia (ADORNO & HORKHEIMER, 2000, p.170).

Tanto “a insuficiência programática do sistema educativo formal” quanto os
“problemas de saúde sexual e reprodutiva prevalentes no Brasil” são, em primeiro lugar, decorrentes da estrutura sócio-econômica desigual do país, ou seja, têm caráter eminentemente político. Ora, cogitar que as telenovelas sejam capazes de suprir tais déficits com a adesão de comportamentos escolhidos é ideologia: 1) por se julgar que educação e sexualidade sejam produtos para consumo imediato; 2) pela tentativa de vincular o produto mais rentável da Rede Globo (as telenovelas) à educação; 3) pelo julgamento que se faz do público-alvo, segmentado por classes sociais e supostamente ignorante no que diz respeito à sexualidade e à educação.

Trata-se, sim, da difusão de informações fragmentadas, e nem poderiam ser muito diferentes, na medida em que a fragmentação também ocorre com o próprio conteúdo
das telenovelas conforme já visto. Os seus “fragmentos” obedecem à lógica do começo, meio e final feliz, tanto quanto os das telenovelas e são oferecidos para consumo rápido, sem reflexão, por adesão ou, como diria Adorno (2000), como se cultiva plantas ou coisas sem consciência autônoma. Por esta razão, talvez o maior ônus inerente à defesa do instrumento supostamente educativo de Schiavo, conforme observou Maia (2002), seja o comprometimento da autonomia do indivíduo em decidir sobre sua própria vida e perceber a sua individualidade na sociedade administrada, o que requer resistência do sujeito ao irracional que lhe é imposto.”


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Fonte:
NABIL SLEIMAN ALMEIDA ALI: “ANÁLISE DO DISCURSO IDEOLÓGICO DO MERCHANDISING SOCIAL”. (Dissertação de Mestrado apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento . Área de Concentração: Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano. Orientadora: Maria Luísa Sandoval Schimidt). São Paulo, 2008.

Nota
:
A imagem (Revista "A Realidade", junho de 1967) inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

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