O contexto social moderno e as transformações na vida das mulheres

"Desde o final século XIX e primeiras décadas do século XX, a educação feminina estava voltada para o matrimônio e a maternidade. “A mulher”, considerada de forma essencialista como uma entidade homogênea, referida a sua condição sociológica, precisava ser esposa dedicada, obediente, letrada e com noções de piano e bordado. As meninas brancas da elite recebiam educação em seus lares e em escolas femininas, geralmente religiosas. O objetivo era aprender a ler; ir além desse grau de formação poderia ameaçar o destino feminino: o futuro casamento. Ao sexo feminino eram conferidos os atributos de “pureza, doçura, moralidade cristã, maternidade, generosidade, espiritualidade e patriotismo, entre outros, que colocavam as mulheres como responsáveis por toda a beleza e bondade que deveriam impregnar a vida social”. A sexualidade da mulher branca estava orientada para gerar e vinculada ao matrimônio. As mulheres brancas das classes altas deveriam voltar-se para o cuidado com a casa, o marido e os filhos. Sua imagem era de “rainha do lar”. Como afirma Leila ALGRANTI (1999, p. 253), “a função primordial das mulheres da Colônia era serem boas mães e esposas”. A ordem familiar, nesse período, correspondia à ordem reprodutiva natural: pai, mãe e filhos e, portanto, a função essencial da mulher não poderia ser alterada.

No século XXI, é possível afirmar que as mulheres têm uma desafiante trajetória em busca de sua emancipação. Ainda persistem os vínculos com papéis familiares e domésticos; no entanto, muitas conquistas foram concretizadas e transformaram o modo de vida das mulheres e a sua relação com sociedade - ainda que se considerem as diferenças de classe e de raça. O acesso à educação universitária e ao mercado de trabalho, o direito ao voto, a pílula anticoncepcional e a legalização do divórcio podem ser citados como alguns exemplos que garantiram a conquista do espaço público feminino, freqüentado, até então, quase que exclusivamente pelos homens.

Boa parte dessas conquistas são atribuídas aos movimentos feministas. As correntes e interpretações desses movimentos são diversas. Convergem, porém, para uma mesma razão de existir: garantir e defender os direitos de igualdade entre os sexos masculino e feminino no contexto social. Revolucionárias e utópicas num passado recente, suas conquistas muitas vezes parecem insignificantes nos dias hoje.

Assim, pode-se afirmar que diversos ideais feministas foram alcançados, outros transformados, mas novas necessidades também foram descobertas. No entanto, segundo Flávia PIOVESAN, os direitos constitucionalmente garantidos às mulheres estão longe de fazer parte de suas rotinas:

No plano jurídico, à luz da Constituição Federal de 1988 (que incorporou a maioria significativa das reivindicações das mulheres) e dos instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos adotados pelo Brasil, resta assegurada a plena igualdade entre os gêneros, sendo vedada qualquer forma de discriminação. Porém, os dados da realidade brasileira invocam a distância entre os avanços normativos e as práticas sociais , que refletem a persistência de um padrão discriminatório em relação às mulheres.

Por outro lado, talvez pela significativa discriminação e pelos altos índices de violência contra as mulheres, pode-se observar um movimento e uma maior preocupação com as questões da mulher. Hoje, já existe uma entidade voltada à identificação concreta das situações de discriminação da mulher brasileira; da mesma forma, já é possível acompanhar dados estatísticos atualizados sobre a condição feminina. Órgãos governamentais são destinados a estabelecer “políticas públicas que contribuem para a melhoria da vida de todas as brasileiras” e a prestar atendimento a mulheres vítimas de violência.

Independente disso, os dados publicados nas pesquisas realizadas demonstram, por si só, a condição social lastimável em que se encontra a mulher brasileira em pleno século XXI. As mulheres já representam 51,2% de uma população nacional estimada em 174 milhões de indivíduos. Elas formam o maior grupo de eleitores e também estão mais presentes nas universidades do que os homens. Estão inseridas nas empresas, repartições públicas, política e religião. No entanto, ainda são minoria nas posições de poder. Em pesquisa sobre o tema divulgada pelo Fórum Econômico Mundial, o Brasil ocupou a 51ª posição – entre 58 países – no quesito “sobre a diferença no exercício de direitos entre homens e mulheres” e o penúltimo lugar em participação política das mulheres. Elas correspondem, na média, a 11,54% dos integrantes do poder Legislativo e a 5,71% do poder Executivo, embora representem 52,14% dos servidores da administração pública.

Nas demais atividades profissionais, os números também desanimam. O fato de as mulheres estarem inseridas no mercado de trabalho não é suficiente para demonstrar o seu desenvolvimento social, uma vez que as diferenças persistem também quanto à remuneração. Mulheres são promovidas a cargos de chefia nas grandes empresas em um tempo 35% maior do que seus colegas homens; e representam apenas 14% dos cargos de gerência e diretoria das indústrias de transformação. Na população feminina com 11 anos ou mais de estudo, o salário delas ainda é 43% menor que o salário deles para a mesma atividade. No campo religioso, “continuam ausentes dos espaços definidores das crenças e das políticas pastorais e organizacionais das instituições religiosas”. A elas fica a maior presença, apenas, nas práticas religiosas.

Não menos surpreendentes são as justificativas produzidas para a prática da segregação das mulheres das posições de poder. Entre elas, aparecem: a “responsabilidade com a família”; a “busca por custos mais baixos”; “a menor disponibilidade que elas possuem em relação aos homens, na média, para irem trabalhar em um outro país pela empresa quando necessário, em razão da família”; ou ainda “elas podem ter alternativas mais atraentes que os homens fora do mercado de trabalho, como ter filhos”.

No âmbito familiar, os números não são mais favoráveis, nem aliviam a condição feminina na sociedade. Os dados se diversificam e intensificam as diferenças de raça e classe social. As mulheres convivem com índices alarmantes de violência doméstica. A cada 15 minutos uma mulher é espancada no país – e, segundo a Fundação Perseu Abramo, 33% das brasileiras já foram agredidas. O agressor, na maioria dos casos, é o próprio parceiro.36 Elas têm uma sobrecarga com os afazeres domésticos, dedicando um período seis vezes maior do que o dedicado para a mesma atividade por seus companheiros (quatro horas e 28 minutos, contra minutos dele durante os dias da semana). A elas são atribuídas a atenção aos filhos e a responsabilidade pela família. Uma família, aliás, que já não se limita ao modelo único heterossexual, mas se constitui em pluralidade de modelos.

Os conflitos familiares muitas vezes passaram a ser resolvidos pelo divórcio e, nesses casos, “são os homens que geralmente abandonam os filhos” e deixam a responsabilidade da família para a mulher. Segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), a participação da mulher como “pessoa de referência” na composição das famílias teve um crescimento de 45,72% entre 1996 e 2003. Na sexualidade, permanece o interesse pelo controle, que se manifesta através da não liberdade de escolher o processo gestacional. Em situações de gravidez indesejada, a responsabilidade é atribuída exclusivamente à mulher. Ela é quem deve sujeitar-se à prática de abortos inseguros e arriscar sua vida. Hoje, no Brasil, são aproximadamente três milhões de mulheres que já se submeteram a alguma prática de aborto não natural.

Com base nos dados acima, as perspectivas femininas não podem ser vistas com um olhar dos mais otimistas. Persistir na conquista do seu espaço público sem discriminação de gênero requer um acúmulo de responsabilidades. Dessa forma, o estabelecimento de um quadro que expresse a situação das mulheres nas sociedades atuais inclui paradoxos que giram em torno de questões de gênero, classe social e raça, e também de outras questões como profissão, casamento, maternidade, convivência doméstica. A definição de mulher moderna é bem adequada à metáfora de “mulher-elástico” criada por Maria Helena FERNANDES (2006), que, ironicamente, atribui à mulher a necessidade de

corresponder às inúmeras demandas próprias de sua época, a mulher-elástico precisa não só ser ideal, mas também ter o corpo ideal. Além de mãe dedicada, compreensiva e bem humorada, deve conservar-se sempre jovem. Amante ardente e bem disposta, precisa ter uma diversidade de investimentos. Com igual obstinação, realiza os exercícios físicos indispensáveis à manutenção do corpo perfeito e mantém vivos seus interesses culturais nos destinos da humanidade (...) a mulher-elástico é medianamente culta. Bem informada, é capaz de falar sobre qualquer assunto, mesmo que deixe transparecer certa mediocridade em muitos deles. Além de magra, realizada e bem-sucedida profissionalmente, é bonita, bemcuidada e economicamente independente.

As mulheres precisam dar conta da identidade social que lhes é destinada. Seu maior desafio persiste sendo o de consolidar o pleno exercício de seus direitos civis e transformar, segundo Victória Lee ERICKSON (1996, p.57), as “diferenças entre a masculinidade e a feminilidade que são mantidas pelas forças sociais que promovem e sustentam atos de violência”. As conquistas foram significativas; no entanto, nem todos os resultados esperados foram atingidos. É esse universo de conflitos e expectativas - necessidade de êxito profissional, independência, autonomia e sucesso financeiro conciliado com o acúmulo de responsabilidades, com o trabalho doméstico, com o cuidado da família e a educação dos filhos - que angustia e inquieta as mulheres brasileiras.

É de se supor que o sentimento de impotência diante dos desafios que lhe são
impostos faz com que as mulheres vislumbrem alternativas de identidade que lhes proporcionem menos sofrimento e tristeza. A vida religiosa em clausura pode ser uma delas. As mulheres que optam por esse estilo de vida são oriundas da sociedade que lhes destina o papel de “cuidadoras”, ao mesmo tempo em que as desafia a superar as desigualdades de gênero. De certa forma, pode-se considerar que tais mulheres são avessas a todos esses contra-sensos. No entanto, elas escolhem a dedicação exclusiva à oração e ao silêncio, restringem o seu espaço físico e abdicam do direito de ir e vir, dispor da sua sexualidade, da sua autonomia e dos seus bens, mas afirmam encontrar a sua vocação. Sem dúvida uma opção pouco habitual. É sobre elas que versa o presente trabalho. No próximo tópico nos dedicaremos à compreensão do contexto e da concepção da clausura.”


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Fonte:
MIRIAM VERRI GARCIA: "LIBERDADE EM CLAUSURA: TRAJETÓRIAS PESSOAIS E RELIGIOSAS DE MONJAS CARMELITAS DESCALÇAS". (Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Ciências da Religião, sob a orientação da Profa. Doutora Maria José F. Rosado Nunes). São Paulo, 2006.

Nota
:
A imagem (Revista "A Cigarra", edição de 1934) inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
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