Midiação da Cultura Moderna



"Para a construção de uma teoria sobre as sociedades modernas, Thompson em Ideologia e cultura moderna postula a centralidade da

... midiação da cultura moderna – isto é, as maneiras como as formas simbólicas, nas sociedades modernas, tornaram-se crescentemente mediadas pelos mecanismos e instituições da comunicação de massa...
(1998, p. 104).

Nesse texto, o autor afirma que a produção e a reprodução das formas simbólicas encontram-se cada vez mais mediadas pelos meios de comunicação de massas. A discussão que apresenta para elaborar uma teoria social e política das sociedades modernas considera não apenas a importância das mídias, mas a toma como um elemento central.

No livro A mídia e a modernidade, Thompson revê o argumento da centralidade dos meios de comunicação por considerá-lo muito pretensioso, porém continua afirmando que o “desenvolvimento da mídia vem entrelaçado de modo fundamental com as principais transformações institucionais que modelaram o mundo moderno” (1999, p. 9), e se propõe
a traçar as principais mudanças que desembocaram no que ele denomina de “organização social do poder simbólico” (1999, p.12) e suas conseqüências para a sociedade. Como em seu trabalho anterior, Thompson questiona o fato de muito dos teóricos sociais não terem se atentado para a importância da mídia, seja pela suspeição quanto ao seu caráter efêmero e superficial, seja pela fidelidade ao legado das teorias clássicas da Sociologia, que desconsideram o papel do desenvolvimento dos meios de comunicação para a sociedade moderna. De acordo com Thompson, as teorias clássicas associam a dinâmica cultural típica da sociedade moderna ao processo de racionalização e secularização, que eliminaria os mitos e as superstições.

Para Thompson, no entanto, o desenvolvimento dos meios de comunicação criou “novas formas de ação e de interação no mundo social, novos tipos de relações sociais e novas maneiras de relacionamento do indivíduo com os outros e consigo mesmo” (1999, p.13) e novas formas de exercer o poder, pois, para além da interação face a face, desenvolveram-se mecanismos de interação mediada e quase-mediada, que transformaram a organização espacial e temporal da vida social, além de poderem ser experimentadas desarticuladas do compartilhamento local, apesar de poderem ser recebidos e entendidos na
perspectiva local, pois são interpretados por sujeitos que vivem em contextos específicos, fato que não pode ser desconsiderado.

Se, por um lado, o autor valoriza o poder da mídia ao afirmar que ela tem exercido
uma influência significativa na formação do pensamento político e social, por outro, evita os excessos ao evidenciar que não é possível estudar o desenvolvimento dos meios de comunicação e seus impactos desconsiderando os outros processos históricos e sociais mais amplos. Para Thompson (1999), as características do mundo moderno resultaram de transformações institucionais que se iniciaram no último período da Idade Média e início da era moderna, como mudanças econômicas (transformação do feudalismo em capitalismo) e mudanças políticas (redução e reagrupamento das numerosas unidades políticas em estados-nações, que passaram a concentrar o monopólio do uso legítimo da força em seu território). De acordo com Thompson (1999), sobre essas transformações há uma farta e vasta bibliografia, com base nos estudos de Marx e Weber, porém menos evidente têm sido as discussões em torno das mudanças do que ele denomina de domínio cultural, pois enquanto para Marx o modo capitalista levaria à desmistificação do mundo, em Weber, que apesar de ter conferido mais atenção ao desenvolvimento do domínio cultural, a racionalização e o desencantamento do mundo, que decorreriam das mudanças que se engendraram, são temas controvertidos e de difícil demonstração.

Thompson (1999) propõe, ao invés de focar as mudanças que se processaram quanto aos valores, crenças, atitudes, como é comum na bibliografia que explora a questão, colocar em evidência as transformações que se processaram na produção e circulação das formas simbólicas, a partir das quais uma mudança cultural sistemática foi implementada. Por exemplo, o sentimento de identidade nacional, que acompanha o desenvolvimento dos estados-nações, encontra-se articulado ao desenvolvimento da mídia que possibilitou a divulgação rápida e sistemática de idéias e símbolos nacionais.

Segundo Thompson (1999), três mudanças teriam ocorrido quanto à reorganização do poder simbólico, duas das quais fartamente discutidas pela Sociologia e História. A primeira diz respeito à mudança do papel que as instituições religiosas mantiveram na Idade Média quanto ao monopólio e difusão de símbolos religiosos que. No início da formação dos estados europeus, a Igreja Católica continuou a exercer uma influência significativa por meio de alianças entre as elites religiosas e políticas, além do papado exercer um certo grau de arbitragem entre os governantes. Porém, com o fortalecimento dos estados, sua influência foi minimizada. Outro fator que concorreu para o abalo do
poder da Igreja Católica foi o advento do protestantismo, que dividiu a autoridade religiosa quanto ao poder político e à divulgação de estilos de vida e bens simbólicos e culturais.

A segunda mudança, que acompanhou essa primeira, foi a crescente expansão de sistemas de conhecimento e instrução secularizados, que se libertaram da tradição religiosa, para o qual concorreu o desenvolvimento das ciências, que gerou a formação de
sociedades literárias, mudanças no currículo universitário e nas escolas.

A terceira mudança, sob a qual reside o eixo argumentativo do Thompson (1999), foi a mudança da escrita para a impressão, com o conseqüente desenvolvimento da mídia. Tanto a Igreja quanto os estados tentaram de algum modo controlar os novos centros de poder simbólico, porém isso ocorreu sempre de forma limitada. Thompson observa que, desde o início do século XIX, três tendências podem ser observadas no desenvolvimento
das indústrias de mídia: “1) a transformação das instituições da mídia em interesses comerciais de grande escala; 2) a globalização da comunicação; 3) o desenvolvimento das formas de comunicação eletronicamente mediadas” (1999, p. 73).

Um aspecto relevante para esta tese apresentado por Thompson (1999) diz respeito ao impacto do desenvolvimento das mídias para os conteúdos simbólicos tradicionais. Segundo o autor, as novas mídias não destruíram aos conteúdos tradicionais, mas ampliaram a forma dos sujeitos as vivenciarem para além das experiências face a face, pois os sujeitos podem experimentar tradições de sua própria cultura ou de outras culturas por meio de relações mediadas e quase-mediadas. A tradição teria se libertado das limitações das interações face a face, teria de desritualizado, perdendo a ancoragem que existia nas práticas cotidianas. Porém Thompson (1999) argumenta que é possível que as tradições estejam sendo transformadas ou “desalojada” de sua relação com as práticas locais ao serem veiculadas pelas mídias, sofrendo novas ancoragens ao serem relacionadas a conteúdos simbólicos de outras tradições.

Para finalizar este tópico, irei apresentar uma reflexão sobre a importância da linguagem na sociedade com base em Habermas
. Para tanto, apresentarei alguns elementos da pragmática discursiva de Habermas e os conceitos de heteronomia e autonomia definidos por ele.

De acordo com Siebeneichler (2003) e Kyian (2005), Habermas, filiado à perspectiva filosófica de busca da emancipação humana e pautado na análise da sociedade atual por ele denominada de pós-metafísica, atribui à filosofia um papel crítico diante dos sistemas de conhecimento (ciência, senso comum, religião etc.), por meio de uma análise do uso da linguagem realizada nessas esferas. O papel da filosofia deixaria de ser a de juiz da razão, e passaria a ser o de mediadora entre a esfera do cotidiano e a da produção do conhecimento, por meio da análise racional de seus discursos (Siebeneichler, 2003). Para Costa (2002), o critério de verdade, de acordo com Habermas, deixa de ser buscado na relação entre enunciados e fato concreto, e passa a ser resgatado na ação comunicativa, na argumentação plausível que tende ao consenso discursivo entre os pares.

É possível assinalar diversas semelhanças entre as teorias de Thompson (1998) e de Habermas, pois ambos se filiam à tradição crítica do pensamento ocidental, entendem a sociedade como um palco de conflitos sociais, concebem os sujeitos como seres ativos, e a produção de conhecimento científico como uma das instituições, dentre outras, que produz conhecimento e que precisa dar provas argumentativas do que postula, possibilitando o debate entre os pares.

Para Habermas, os conflitos de interesses se manifestam no uso da linguagem. Ele não exclui outras formas de manifestação dos conflitos, porém seu interesse recai sobre o domínio da linguagem, já que a produção de conhecimento seja científico, senso comum
ou religioso se dá acima de tudo mediado pelas práticas discursivas.

No uso da linguagem, para Habermas (apud Siebeneichler, 2003; Kyian, 2005),
ocorreria uma tendência estimulada socialmente para que os grupos ou indivíduos ajam lingüisticamente de forma estratégica com o objetivo de convencer o outro, sem de fato se propor a uma relação dialógica diante do conflito, e, assim, evitar agir de forma comunicativa com o objetivo de construir o consenso.

A partir do discurso estratégico próprio de diversas instituições, privilegia-se a formação da identidade dos indivíduos de forma heterônoma, isto é, a partir de normas criadas por outrem, as quais os indivíduos ou aceitam sem contestação ou refutam, negando-se a se apropriar de seus conteúdos de forma crítica, com renúncia, em ambos os casos, ao uso crítico da razão. Se, em alguma medida, a transmissão das normas e valores sociais ocorre de forma heterônoma, ao estimular a formação para agir de forma heterônoma, dificulta-se a formação de sujeitos autônomos.

A formação de sujeitos autônomos só seria possível, segundo Habermas (2003) por meio do agir comunicativo, que implica no uso da razão e da fala argumentativa, que possibilitam a apropriação crítica e emancipatória de conteúdos em conflito, sem, no entanto, se apoiar ou fazer concessão para qualquer discurso autoritário e dogmático (Habermas, 2003).

Para Habermas (2003), a heteronomia, na ação, implica que o sujeito está orientado por normas criadas por outrem; a autonomia implica em ação orientada por “princípios de justiça” (p. 202).

À heteronomia, isto é, à dependência de normas existentes, opõe-se a exigência de que o agente, ao invés de validez social de uma norma, erija ao contrário a sua validade em princípio de determinação do seu agir. Com esse conceito de autonomia, o conceito da capacidade de agir responsavelmente também se desloca. A responsabilidade torna-se um caso especial da imputabilidade; esta significa a orientação do agir em função de um acordo representado de maneira universal e motivado racionalmente — age moralmente quem age com discernimento.
(Habermas, 2003, p. 196)

A partir da perspectiva pós-metafísica do pensamento ocidental, Habermas analisa a presença da religião na sociedade atual e afirma que nenhum discurso racional pode
substituir ou eliminar a religião, cujos discursos são apresentados como questão de fé. E que, a partir da tensão entre discurso argumentativo e discurso religioso, seria possível que os conteúdos salvívicos próprios da religião pudessem ser apropriados de forma crítica pela sociedade laica, pois contém uma potência emancipatória. O agir comunicativo possibilitaria a apropriação de alguns dos conteúdos religiosos, em conflito com a lógica racional, de forma crítica (Kyian, 2005).

A possibilidade de transformações e novas ancoragens de significados simbólicos religiosos tradicionais por meio de sua divulgação pelos meios de comunicação de massa, seja como possibilidade emancipatória ou como formas simbólicas ideológicas, seja contribuindo para a formação autônoma ou heterônoma das crianças, será aprofundada nos capítulos seguintes ao abordar a forma como os conteúdos simbólicos religiosos continuam presentes na sociedade e têm sido explorados pelas mídias, e como a Literatura Infantil tem servido de espaço de manutenção de diversos conteúdos simbólicos alijados do repertório adulto, mas que encontram na produção literária para crianças um novo espaço de permanência e transformação."

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Fonte:
CELIA MARIA ESCANFELLA: "LITERATURA INFANTO-JUVENIL BRASILEIRA E RELIGIÃO: UMA PROPOSTA DE INTERPRETAÇÃO IDEOLÓGICA DA SOCIALIZAÇÃO". (Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Psicologia Social, sob orientação da Profa. Dra. Fúlvia Maria de Barros Mott Rosemberg). São Paulo, 2006.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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