A mulher medieval

“Num primeiro momento encontra-se a necessidade de situar quem era a mulher medieval, sua religião e a sua inserção no mundo medieval. Isso posto, se pode compreender de que maneira tal figura influenciou na criação de um modelo de identidade com reflexos na modernidade. A partir deste ponto se podem compreender os relatos acerca de Santa Rita de Cássia que têm chegado aos dias atuais. Na falta de documentos consistentes, já que são raríssimos os documentos que provam sua existência, há a preocupação com a criação do mito, do que foi sendo construído através dos séculos. Não se pode esquecer que Santa Rita foi reconhecida pela Igreja como santa aproximadamente quatro séculos após sua morte4. É, portanto, uma santa que surge na modernidade, no início do século 20, como uma resposta daquilo que o catolicismo romano esperava da mulher na sociedade daqueles dias. Disso decorre a importância de seu estudo. O conhecimento que se tem da existência deste modelo de personagem está associado a um conjunto de cenas registradas por um pintor anônimo daqueles dias em sua urna mortuária5. A iconografia tratou de dar vida a essas cenas de maneira que houvesse coerência entre elas.

A história da mulher medieval não pode ser descolada da história do homem medieval, já que para a mulher sua existência só foi possível a partir da existência masculina, transitando sempre à sombra dele, tendo seu lugar sempre na periferia, no cuidado da casa e de sua família, reconhecida socialmente como esposa, viúva ou virgem. Para Le Goff (1989), uma das maiores autoridades em história medieval a mulher na Idade Média foi vista como:

[...] um ser falso e tentador, o melhor aliado do demônio, uma eterna Eva mal resgatada por Maria, um ser escabroso para quem o vigia, um mal necessário para a existência e o funcionamento da família, para a procriação e para o controlo da sexualidade, que é o principal perigo para o homem cristão. (LE GOFF, 1989, p. 10).

Para este autor a mulher medieval é “[...] muito jovem, [...] casa com um homem que se aproxima dos trinta anos” (LE GOFF, 1989, p. 22). “[...] é um ventre, vitima de uma elevada fecundidade que a faz passar grávida metade de sua vida antes dos quarentas anos” (Ibid.) e se encontra:

[...] sujeita aos seus deveres de esposa, obrigada a ser fiel ao marido e a sua autoridade, só encontra compensações – limitadas – no amor pelos filhos, que na maioria dos casos, são entregues às amas, logo nos primeiros anos, e sucumbem vitimas da terrível mortalidade infantil. (Ibid.).

E ainda: “as mulheres continuam a ser uma engrenagem subordinada à reprodução familiar” (Id., p. 10). O homem, na Idade Média, passa a ser determinado pela medida de seu envolvimento religioso, tendo como parâmetro a teologia (Ibid.), vivendo na tensão entre corpo e alma, encontrando na religião a valorização de sua alma em desprezo de seu corpo. A ascensão social masculina proveniente de uma classe social inferior somente podia acontecer por meio de casamento com uma mulher que o pudesse projetar socialmente, cabendo a ela permanecer na sua insignificância.

A parte do corpo humano valorizada pela religião medieval era aquela representada pela extremidade superior; do pescoço para baixo deveria ficar sob controle rígido, pois ali estavam hospedadas as mais variadas perversões. A disciplina rigorosa acerca do uso do corpo na vida religiosa era uma forma de colocar a alma no “caminho da salvação” (SCHMITT, 2002, v. 1, p. 262).

Não basta dar lugar ao corpo, é preciso dominá-lo - isto implica na re-simbolização do corpo, dela decorrendo a importância do ritual para doutriná-lo – surgindo, assim, o mito. O corpo precisa ser dominado/subjugado. Portanto, a igreja reforçou a idéia paulina de Cristo como o cabeça da igreja6 – conseqüentemente a igreja sendo representante de Cristo na terra era quem normatizava e controlava o uso e destino do corpo humano.

Durante a Idade Média os papéis masculinos e femininos passaram a ser construídos e determinados pela religião (LE GOFF, 1989, p. 25). E era a Igreja quem informava e cobrava o que era esperado de cada um. O desenho dos papéis masculino e feminino nesta época foi feito a partir dos fragmentos tomados de outros indivíduos (GOUREVITCH, 2002, v. 1, p. 622). Torna-se humano quando se interioriza a cultura, o sistema de valores, a visão de mundo que são próprios de uma sociedade ou de um grupo social – vigentes em seu tempo.

“A originalidade da personalidade [medieval] afirmava-se por sua negação” (Id., p. 623, grifo nosso). O caráter centrífugo (Ibid.), da personalidade medieval foi construído pelas individuações morfológicas7. Já o caráter centrípeto dos tempos modernos, foi construído por meio da individuação orgânica (Ibid.). A religião fornecia molduras nas quais os indivíduos se encaixavam (Id., p. 629), ou melhor, passavam a assumir papéis designados pelo contexto religioso. Patológicos ou não, os comportamentos individuais no mundo medieval, refletiam mais a cultura e o meio circundante do que elementos psíquicos – estes são as manifestações da humanidade.

“A noção do corpo é a soma de varias idéias, produto da própria história da humanidade” (SCHMITT, 2002, v. 1, p. 254). Para Agostinho “a alma é uma substância racional criada para reger um corpo” (apud SCHMITT, Ibid.). O que leva a refletir acerca da racionalização absorvida pelo pensamento religioso medieval: o que se salva do corpo é a alma, a não ser que esse corpo possa ser santificado, isto poderá ocorrer de várias maneiras – por meio de penitências, estigmas, cilícios, jejuns e outras formas de exercer o controle da carne.

A Igreja medieval, oficialmente afirmava que o corpo promovido ao status de “santo” permanecia intacto, “suas tumbas exalavam ‘odor de santidade’” (Id., p. 254). Não obstante, qualquer objeto pertencente ao sujeito também expressa a virtude de sua experiência religiosa. Todo santo reconhecido pela igreja “tem uma missão histórica a cumprir, missão essa que consiste em acolher e dominar certas exigências de sua época, sob o ponto de vista da eternidade, e através da sua vivência de Cristo” (Id., p. 227). E “[...] no fim da Idade Média, o culto dos santos se tinha integrado tão profundamente na vida social que tinha passado a ser um dos elementos essenciais, correndo o risco de se vulgarizar” (Id., 229).

O surgimento de um modelo de santidade medieval possibilitou “[...] antropomorfizar o universo e submeter o homem ao mundo da natureza” (VAUCHEZ, 1989, p. 212), absorvendo vários elementos simbólicos do paganismo, “destruindo os bosques sagrados e substituindo o culto das fontes e das nascentes pelo culto dos santos” (Ibid.). O corpo feminino continuava ainda subjugado pela religião. A igreja medieval não foi a criadora do culto aos santos (Ibid.), mas ele é a soma de vários elementos como: culto dos mártires9 e o ascetismo10 - a Igreja se apropriou destes elementos na confecção destes modelos, aperfeiçoando-os para o seu propósito:

A nova mentalidade, pelo contrário, põe a tônica na necessidade de um empenho pessoal do individuo [...] a santificação transforma-se numa aventura pessoal e numa necessidade interior, sentida de forma diferente de acordo com as pessoas e os lugares, mas que em todos os casos obedece a um impulso amoroso. (SCHMITT, 2002, v. 1, p. 218-219).

A Igreja medieval diante de sua ambivalência corpo-alma empreende uma reabilitação do corpo, subjugado agora pela alma, o prepara para estar diante de seu Deus, além, é claro, de servir de modelo para que outros aspirassem ao mesmo patamar. O reconhecimento da virtude cristã é algo que vai impactar a Igreja medieval, possibilitando inclusive a ascensão da mulher no papel social – à mulher medieval restava a resignação de viver na periferia de um relacionamento ou sublimar seu papel social via religião. Como o casamento não é acessível a todas as mulheres, a religião se torna a saída para aqueles que abraçavam a vida religiosa.

A mulher que se dedicava à vida religiosa via aumentar sua chance de vida e de ascensão, não só social como o resgate de seu lugar na criação de divina11. A ela não restava outro papel. Entre os elementos que visavam a reforçar o ideal de perfeição produzido pelos santos estão: penitência, privação, sofrimento, sujeição voluntária, pobreza e renúncia (SCHMITT, 2002, v. 1, p. 220).

As mulheres, na segunda metade da Idade Média, sentindo-se “excluídas do ministério da palavra no seio da Igreja, apoderaram-se dele, alegando uma eleição divina” (Ibid.). Várias mulheres conseguiram se projetar12 sem terem, no entanto, o reconhecimento oficial do prelado religioso, vivendo na periferia da esfera religiosa, com aprovação popular e toleradas pelas autoridades religiosas, não alcançando, portanto, o reconhecimento oficial da igreja, ou seja, não foram canonizadas (SCHMITT, 2002, v. 1, p. 221).

Já “[...] o corpo (do indivíduo reconhecido como santo), depois da morte, readquire uma misteriosa integridade, sinal da eleição divina” (Id., p. 223). O fato de corpos serem encontrados preservados e com cheiro agradável após a sua morte atribui ao indivíduo morto o reconhecimento de Deus pelo seu empenho religioso em deter o poder da carne (corpo) sobre sua alma. Decorre daí que:

[...] a posse de um corpo santo – e, se possível, de vários – era uma necessidade vital para as coletividades, leigas ou eclesiásticas. Os próprios santos tinham consciência disso e, muitas vezes, escolhiam para morrer ou o local onde tinham nascido ou o local onde pensavam que seus restos pudessem exercer uma influencia benéfica. (Id., p. 223-224).

A preservação da identidade feminina era uma forma de fazer significativa sua existência. Atualmente o deparar com o culto aos santos se dá porque as gerações posteriores “[...] reconheceram que os seus antecessores tinham posto nesta (sua) devoção o melhor de si mesmos, aplicando nela os seus sucessivos conceitos de perfeição humana. (Id., p. 230). O ideal de santidade passou por várias transformações durante a vigência da Idade Média. Vale ressaltar que a religião se aproveita disto para reforçar modelos comportamentais e para subjugar uma massa que nunca poderia ascender socialmente, entre eles os pobres, os marginais, as mulheres e as crianças.

A influência do neoplatonismo nos pais da Igreja julgava a “união carnal, pelo seu caráter irracional, rebaixando o homem à condição de animal” (DELUMEAU, 2003, v. 1, p. 31). Isto influenciou a forma como o casamento, o corpo, os papéis masculinos e femininos foram visto pela Igreja medieval. Na Idade Média, mais precisamente nos mosteiros e conventos, surgiu o pensamento que norteou todo esse período histórico. O corpo deveria ser odiado e negado, pois trazia estampado em si a evidência do pecado e a necessidade de se retirar do mundo para um local de contemplação, como negação da finitude presente no corpo e no mundo, como conseqüência do pecado original (Id., p. 34). O corpo feminino foi rechaçado pelo pensamento antifeminista da cultura eclesiástica medieval (Id., p. 50-51).

A Reforma Protestante rompeu com este esquema neoplatônico que via o corpo e a alma dentro de um “esquema dualista” (Id., p. 51). Alma e corpo não são mais adversários, devem caminhar juntos, pois o corpo atual é uma representação do corpo por vir, glorificado. A piedade passou a ser um incentivador e controlador de impulsos humanos, surgindo a representação dos sete pecados capitais. Como ajudar a mulher a vencer estes desafios? Proibindo-a de encará-los ou ajudando-a a vencer seus próprios demônios: sua luta interna. A religião com seu formalismo produziu um indivíduo que deveria se sujeitar mais ao seu discurso e prática como forma de dominação e sujeição.”

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Fonte:
ANDRÉ RENATO DE BARROS NAVARRO: "A IMAGEM DO IMPOSSÍVEL: ANALISE DE UM FENÔMENO RELIGIOSO EM CÁSSIA – MG". (Dissertação de Mestrado stricto sensu apresentada à Universidade Presbiteriana Mackenzie, como um dos requisitos para obtenção do grau de mestre no curso de pósgraduação em Ciências da Religião. Orientador: Profª. Drª. Márcia Mello Costa De Liberal). São Paulo, 2007.

Nota
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