Primeiros olhares sobre o corpo humano



“O corpo humano foi e tem sido objeto de estudo desde os primórdios dos tempos. Na Grécia antiga, a mitologia grega indica que ApoIo, o deus do Sol, além de produzir doenças, poderia também curá-Ias - por isso, ele se tornou a principal divindade controladora das doenças. Em seguida, surgiu o semideus Esculápio (ou Asclépio), filho de ApoIo, como divindade específica da Medicina.

Segundo Martins, autores romanos do início da era cristã mencionam que a Medicina grega começou com Asclépio, que teria nascido na Tessália, no século XIII antes da era cristã. Este, junto com ApoIo, teria descoberto as plantas medicinais. É ainda plausível que tenha existido de fato um médico chamado Asclépio, posteriormente transformado em semideus por deformação da tradição.

Asclépio foi o filho do deus ApoIo com a mortal Coronis.Enquanto grávida, Coronis traiu ApoIo com um mortal e foi castigada com a morte pelo deus. Entretanto, ele salvou o filho, tirando-o de seu ventre. Asclépio foi levado por Apolo até Magnésia e confiado ao centauro Quíron, que conhecia todas as plantas medicinais e que o instruiu na arte da cura. "Curava a uns com as doces palavras da magia, a outros oferecia remédios eficazes, ou Ihes aplicava ervas em torno de seus membros, ou cortava o mal com o ferro, para devolver-Ihes a saúde.”

Esculápio, diz a lenda, adquiriu enorme conhecimento e se tornou capaz de ressuscitar os mortos, o que desgostou Plutão, o deus dos infernos, e este pediu a Zeus que o matasse. Zeus atendeu a seu pedido e matou-o com um raio. Para consolar ApoIo, Zeus transformou Esculápio numa das estrelas da constelação da Serpente.

Esculápio, na mitologia, tinha uma família que simbolizava vários aspectos da Medicina: a sua esposa Epione aliviava a dor, suas filhas eram Hygeia, a saúde e Panacéia, a que tudo cura. Seus filhos varões ter-se-iam tornado os primeiros médicos (Asclepíades).

Hygeia, em grego significa "saúde", de onde vem o termo higiene (que para nós se refere a asseio, limpeza). Entretanto, seu significado primitivo é muito diferente: representava tudo aquilo que se pode fazer para manter ou restaurar a saúde.

Segundo Porter, o culto a Esculápio espalhou-se e, por volta de 200 a.C., toda cidade-Estado grega tinha um templo erigido a esse deus, sendo os mais famosos deles o da ilha de Cós, considerada a suposta terra natal de Hipócrates, e o de Epidaurus, que tivemos a feliz oportunidade de visitar, em 1988, as ruínas deste local sagrado. Epidaurus fica próximo de Atenas. No dia em que visitamos o Templo, o ambiente estava envolto por uma bruma que criava um estado mágico sobre as ruínas do templo. Impressionante como até hoje o local tem um quê de sagrado, as vozes diminuíram de intensidade e lá nos quedamos, numa atitude natural de reverência.

O Teatro de Epidaurus fica próximo ao Templo de Esculápio (Figura 2). Fabuloso! A acústica é perfeita a 30 metros de distância. O riscar de um fósforo no palco é audível a quem se encontra no último degrau, neste Teatro de 16 mil lugares. Fizemos a experiência também com moedas caindo ao solo e as ouvíamos de qualquer lugar onde estivéssemos. Não conformados, sussurramos e ainda assim as palavras chegavam a quem estivesse nos lugares mais distantes daquele amplo semi-círculo. A geometria que os gregos conheciam e faziam uso era e é uma das maravilhas do universo.

Os templos dedicados a Esculápio se localizavam em lugares considerados saudáveis e aprazíveis, comumente rodeados por bosques com fontes de água natural e templos dedicados a Ártemis e a outras divindades associadas à cura.

O olhar de Hipócrates
Por volta do século VI a.C, houve um enfraquecimento das crenças mitológicas na Grécia. Foi quando surgiram os primeiros filósofos gregos: Tales de Mileto, Anaximandro, Anaxímenes, Heráclito, Pitágoras, entre outros. A proposta desses filósofos era um novo tipo de conhecimento, que se baseava no raciocínio humano e não mais na tradição religiosa.

Como não foram conservados os livros dos médicos anteriores a Hipócrates, o pouco que se sabe a respeito da Medicina naturalista pré-hipocrática é, por exemplo, o pensamento do médico Euryphon de Cnidos, que viveu em torno de 450 a.C. Ele atribuiu as doenças a distúrbios de alimentação: "Quando o ventre não se livra do alimento que foi ingerido, são produzidos resíduos que se elevam à região da cabeça e então produzem doenças. Quando, no entanto, o ventre é esvaziado e limpo, a digestão ocorre como deve".

A idéia de eliminar resíduos impuros e limpar os intestinos tem influência egípcia, possivelmente pela observação, através de sua prática de embalsamamento, que após a morte os cadáveres começavam a apodrecer a partir dos intestinos. Daí talvez tenha se originado a doutrina de que a principal causa da doença é o apodrecimento dos alimentos no ventre. Esse apodrecimento produziria substâncias nocivas, capazes de se espalhar pelo corpo através do sangue e provocaria doenças. Estas poderiam ser evitadas através da limpeza dos intestinos ou de sangrias, quando se retiravam as substâncias nocivas junto com o sangue.

A saúde seria o resultado do equilíbrio e harmonia do corpo, ou seja, excessos e desarmonia produziriam as doenças. Os escritos dessa época não foram conservados, mas um autor grego posterior assim descreveu essa teoria:

“Alcmeon sustenta que aquilo que estabelece a saúde é o equilíbrio dos poderes: úmido e seco, frio e quente, amargo e doce, e os demais. Pelo contrário, a supremacia de um deles é a causa da doença, pois a supremacia de qualquer um é destrutiva."

Essa é também uma doutrina médica totalmente naturalista, ou seja, sem a intervenção de conceitos sobrenaturais, mágicos ou religiosos. Na China e na Índia havia teorias semelhantes que interpretavam a doença como quebra do equilíbrio de substâncias ou poderes.

Essas idéias são centrais no pensamento médico de Hipócrates, famoso médico grego da Antigüidade. É suposto que ele tenha vivido por volta do ano 400 a.C., mas não se sabe muito sobre ele. Há uma grande quantidade de escritos que sobreviveram até nossos dias, que são atribuídos a ele. Há uma coleção hipocrática, que é composta de muitos livros, de estilos diferentes, que não podem ter sido escritos por uma mesma pessoa, pois se contradizem e criticam uns aos outros. Estes escritos foram reunidos um século depois da época de Hipócrates, ocasião da criação da grande biblioteca de Alexandria. É possível que nenhum deles tenha sido escrito pelo verdadeiro Hipócrates.

A Medicina hipocrática é naturalista, ou seja, não leva em conta causas sobrenaturais.

Segundo as obras de Hipócrates, a idéia é a de que o organismo humano é composto por um certo número de líquidos ou "humores".

Martins nos apresenta o interessante significado da palavra humor:

“A palavra humor significava, antigamente, uma coisa úmida, ou seja, um líquido ou fluido. O termo latino humudu foi a origem do português húmido, que depois perdeu a letra h inicial. Do mesmo radical latino veio a palavra humore, significando suco, bebida, líquido corporal ou líquido de qualquer espécie. Muitos séculos depois, a palavra humor passou a indicar uma disposição de espírito, porque se supunha que os humores dentro do corpo humano determinavam a personalidade da pessoa. Uma pessoa bem-humorada seria, na verdade, uma pessoa que tem bons humores (bons líquidos) dentro dela ”.

Quando os humores corporais estão em seus devidos lugares no corpo, e nas quantidades corretas, existe a saúde. Porém, se um deles está em falta ou excesso em um local ou não tem as propriedades corretas, ocorre a doença.

Na obra hipocrática Sobre a natureza do homem aparece uma descrição bastante clara dessas idéias:

"O corpo do homem tem dentro dele sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra. Eles constituem a natureza desse corpo e por eles surge a dor ou a saúde. Ocorre a saúde mais perfeita quando esses elementos estão em proporções corretas um para com o outro em relação a composição, poder e quantidade, e quando eles estão perfeitamente misturados. Sente-se dor quando um desses elementos está em falta ou excesso, ou se isola no corpo sem se compor com todos os outros."

A concepção de quatro humores fundamentais possivelmente surgiu a partir da teoria dos quatro elementos de Empédocles. Este ensinava que tudo é constituído a partir dos quatro elementos básicos: terra, fogo, água e ar. Essa concepção seria depois aproveitada por vários outros autores, assumindo grande importância na Medicina.

A cura exigiria que os humores fossem "cozidos" e os excessos expelidos pela urina ou suor, pelos excrementos ou ainda, pelo catarro. O tratamento das doenças era feito principalmente através de dieta, exercícios físicos, banhos quentes, bem como remédios destinados a retirar os humores em excesso (laxativos ou vomitórios).

Havia também remédios dotados de propriedades opostas às dos humores causadores da doença. Assim, os remédios poderiam anular os efeitos desses humores no corpo. Porém, em outras obras, critica-se esse método de terapia.

No decorrer da doença, o organismo procuraria "cozinhar" o humor cru, através do calor natural, que poderia se intensificar (manifestando-se pela febre). A febre era, portanto, um sinal positivo de reação do organismo. Durante a doença, existiria uma luta entre o poder da doença e o poder do corpo. O processo terminaria por uma "crise", que poderia ser favoráve ou negativa. Para acompanhar a evolução da doença, era de grande importância examinar todo tipo de excremento ou secreção (vômito, fezes, urina, catarro, suor, etc.).

O olhar de Aristóteles
Aristóteles, filho de Nicômaco, médico de Amintas, rei da Macedônia, nasceu em Estagira, colônia grega da Trácia, no litoral setentrional do mar Egeu, em384 a.C. Ele deve ter adquirido certo conhecimento da Medicina da época e, embora não tenha se dedicado especificamente a esse estudo, sua obra filosófica teve grande influência nas teorias médicas posteriores.

Enquanto para Hipócrates, a Medicina era uma arte ou técnica, um conhecimento adquirido pela experiência, pela observação, por tentativa. E, embora houvesse uma vaga teoria por trás dos ensinamentos de Hipócrates, suas obras nunca deram muita ênfase à tentativa de explicar os sintomas das doenças através de causas internas, por exemplo. Para Aristóteles, no entanto, essa visão sobre o conhecimento do mundo foi alterada.. Ele defendeu a possibilidade de um conhecimento científico, racional, seguro, exato do mundo material, pelo estudo das causas dos fenômenos.

Segundo Roberto Martins, Aristóteles “diferenciou claramente o conhecimento, propriamente dito, da técnica, considerando esta última como inferior, por não ter uma base sólida”. Enquanto que a experiência prática, a observação, as generalizações, seriam o seu ponto de partida do conhecimento científico e não o seu final. Este seria um conhecimento baseado na intuição das verdadeiras causas dos fenômenos observados.

Aristóteles influenciou as pessoas com formação filosófica e fez com que o mero conhecimento prático ou empírico passasse a ser desprezado. O conhecimento tinha de ser sistemático e exato, formando uma estrutura demonstrativa semelhante à matemática. “O ponto centraI desse conhecimento era a etiologia - o conhecimento da causa (do grego aitia, que significa "causa")*. A própria Medicina deveria ser um sistema filosófico racional, para ser um conhecimento e não uma mera arte.

A Medicina de Hipócrates não satisfazia a esse ideal. Assim, um ramo da Medicina pós-hipocrática procurou fornecer uma base racional e sistemática, para o pensamento médico. Aristóteles forneceu uma base geral para a Medicina racionalista e aperfeiçoou a doutrina dos quatro elementos de Empédocles. Ele analisou a relação entre esses elementos e as qualidades básicas (quente-frio, úmido-seco) e estabeleceu associações entre essas qualidades e elementos com os humores e com alguns órgãos.

Os quatro elementos materiais básicos (fogo, ar, água e terra) representavam, no pensamento grego, aquilo que chamamos de "estados da matéria": água se referia a qualquer líquido (vinho, vinagre, óleo, etc.), assim como terra representava qualquer sólido. A água, ao se congelar, virava terra (gelo); ao ser aquecida, virava ar (vapor); e o fogo seria o estado de maior aquecimento do ar, que se tornava luminoso. Essas quatro possibilidades esgotavam tudo o que se conhecia e serviam para descrever todos os tipos de materiais da natureza.

Ainda segundo Aristóteles, podem existir as combinações de quente com úmido ou seco, e de frio com úmido ou seco. Cada uma dessas quatro combinações corresponde a um dos elementos básicos da matéria. O fogo é quente e seco; o ar é quente e úmido (pois, como já foi dito, o ar é equivalente ao vapor d'água); a água é fria e úmida; a terra é fria e seca.
As relações entre os quatro elementos e os quatro humores do corpo humano são: o sangue é quente e úmido, podendo ser associado ao ar; a fleuma é fria e úmida, podendo ser associada à água; a bílis negra é considerada fria e associada à terra, enquanto a bílis amarela é "ardente" e associada ao fogo.

A concepção geral de ciência de Aristóteles e seus princípios básicos sobre a natureza dos componentes orgânicos serviram de base para os médicos que, após ele, tentaram formular uma Medicina racionalista.

Vários médicos posteriores a Aristóteles enfatizaram a relação entre os quatro humores, os quatro elementos e as quatro qualidades básicas. Procuraram dar as causas das diversas doenças, atribuindo-as às perturbações desses humores; e recomendaram tratamentos baseados na teoria, de um modo muito mais sistemático do que havia sido feito pelos escritos hipocráticos.

Um exemplo é o da melancolia, que se daria quando a bílis negra se acumulasse em torno do coração. Resfriados violentos seriam devidos ao acúmulo de uma fleuma muito fria. A paralisia seria causada pelo bloqueio das artérias pela fleuma fria.

Ao ser diagnosticada a doença, tornava-se possível estabelecer racionalmente o processo de sua cura. Se um humor estivesse em quantidade excessiva, ele deveria ser reduzido pela expulsão, com diuréticos, vomitórios, sangrias ou lavagens intestinais. Se o que estava desequilibrado não era a quantidade e sim a qualidade de um humor (por exemplo, se a fleuma estava "muito fria"), a terapia deveria consistir em alterar essa qualidade, pelo seu oposto. O que estivesse frio deveria ser aquecido, o que estivesse seco deveria se tornar úmido, etc. O "aquecimento" poderia ser produzido, por exemplo, por banhos quentes ou banhos de vapor, por alimentos "quentes" (com muito tempero) ou pelo vinho (que dá sensação de calor).
A teoria hipocrática buscava a causa da doença em algo associado à alimentação, ao clima, às características da região, ao modo de vida, à idade e ao sexo da pessoa. A hepatite, por exemplo, seria causada pela bílis negra e ocorreria no outono. O tifo ocorreria no verão, quando a bílis era agitada pelo calor. Se o inverno fosse seco e soprasse vento do norte, e a primavera fosse úmida e soprasse vento do sul, haveria necessariamente no verão febres agudas, doenças dos olhos e disenteria, especialmente entre as mulheres e nos que tivessem constituição úmida.

O olhar de Galeno
Cláudio Galeno, (Pérgamo, 129 d.C. Roma 199 ou 200) De certa forma, pode-se dizer que ele era romano, pois viveu nesse império mas sua formação se baseou na Medicina grega, e ele preferiu escrever suas obras em grego, não em latim. Por isso é considerado um continuador da tradição médica grega.

Galeno teve forte influência de Aristóteles, apesar de criticar várias de suas concepções. Ele defendeu que o verdadeiro médico devia ser também um filósofo; defendeu o conhecimento de física, astronomia, fisiologia, lógica e outras ciências, como base para a Medicina.

Sua obra é muito vasta, tendo-se fundamentado nas obras hipocráticas, desenvolvendo alguns de seus pontos.

A teoria dos temperamentos tem raízes nos escritos de Hipócrates. Essa teoria diz que cada pessoa já nasce com certa combinação ou "tempero" dos quatro humores básicos. Há pessoas em que os quatro humores estão perfeitamente equilibrados, mas normalmente haveria predominância de um ou de dois humores. A partir daí, surgiriam certos tipos físicos, havendo também repercussão na própria personalidade da pessoa. Os quatro temperamentos mais importantes seriam aqueles em que predominasse um único humor:

. temperamento sangüíneo: há predomínio do sangue;
. temperamento bilioso ou colérico: predomínio da bílis amarela (khole, em grego);
. temperamento melancólico: predomínio da bílis negra (melankhole, em grego);
. temperamento fleumático: predomínio do muco ou fleuma (phlegma, em grego).

Ao conhecermos essas propriedades, é possível compreender as situações de equilíbrio ou desequilíbrio, a saúde e a doença, dentro de um sistema filosófico racional.

Partindo dessa concepção, Galeno recomendava cuidados para a preservação da saúde ("higiene"). Os principais pontos a serem observados eram: ar e ambiente; comida e bebida; sono e vigília; movimento e repouso; excreções e paixões da alma.

Ao se observar moderação e equilíbrio em relação às características de cada um desses seis pontos, seria possível manter o equilíbrio interno e a saúde.

A obra de Galeno foi aceita com entusiasmo nos séculos seguintes, por mais de mil anos.

Galeno teve concepções tão coerentes que era difícil nega-las, pois muito bem fundamentadas. Sua obra continuou aceita por mais de mil anos.

E Martins aponta que “Essa aparente perfeição da Medicina de Galeno foi, justamente, o seu maior defeito”, pois quando tudo parece perfeito, não há a necessidade de mudanças, não se questionam as teorias mesmo que na prática elas já não sejam úteis.”

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Fonte:
SONIA REGINA COELHO: "Alguns olhares sobre o corpo humano". (Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do título de MESTRE em História da Ciência, sob a orientação do Professor Doutor Ubiratan D’Ambrosio. PUC-SP). São Paulo, 2006.

Nota
:
As imagens inseridas no texto não se incluem na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

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