Política eugenista e o modelo isolacionista compulsório





"Nos primeiros anos da República, São Luís, assim como o resto do país, era um “grande hospital”, essa designação lhe foi atribuída em razão do grande número de acometidos por inúmeras doenças epidêmicas e endêmicas e, ao contrário do que o nome sugere, sem o mínimo de cuidados médicos, ambulatoriais e hospitalares (PALHANO, 1988).

Os primeiros registros das doenças endêmicas situam-se desde 1621, quando a cidade foi acometida pela epidemia da varíola, dizimando quase toda a população. A varíola perpetuou-se com vários surtos epidêmicos até o século XVIII, juntamente com o sarampo, que produziu um efeito devastador sobre a população, bem como a febre perniciosa, que atacou a cidade em 1756 em proporções epidêmicas.

Durante a segunda metade do século XIX São Luís enfrentou mais uma doença: a febre amarela. Segundo Palhano (1988, p. 163), a doença surgiu das “precárias condições de salubridade da capital: a água estagnada em várias ruas do centro, mistura de água doce com água salgada, lixo e esterco de animais em todos os lugares”.

Além da varíola, sarampo e febre amarela, São Luís também sofreria com epidemias de desinteria e de influenza catarral. Essas doenças, cujos primeiros surtos foram registrados em 1856 e 1858, respectivamente, afligiram a cidade periodicamente. No caso da desinteria, o maior número de mortes ocorreu entre a população escrava.

Contrariamente ao desejável, o governo da capital maranhense só tomou medidas e atentou-se para as necessidades sanitárias da população, com a instituição do regime republicano, que foi acompanhado de um discurso de ordem: modernidade e civilização. No entanto, na prática, os serviços sanitários destinaram-se a classes sociais abastadas, legando aos pobres inspetorias que decretavam preconceito às habitações dos pobres e possíveis demolições, fortifica-se a idéia modificar a estrutura urbana, que se torna mais caótica devido ao aumento demográfico, da pobreza, má distribuição de renda etc.. A desorganização urbana era percebida como causadora de doenças devendo ser modificadas
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Houve uma articulação com os movimentos existentes fora do Brasil e o nascimento da medicina social que com a proposta higiênica e social de modificação de costumes das classes populares acreditava poder combater os modos de agir e pensar frente a moral e a higiene. Dessa forma, a medicina tornava-se social, mais aplicada, mas também mais policiadora e mais normativa com a preocupação de intervir socialmente para o bem-estar geral, ditando normas, modos e maneiras de vida saudável. Começava-se a dar à medicina competência e legitimidade; era esperado que a ciência da cura tratasse a cidade doente.

Só a partir do século XX que o Brasil passou por uma verdadeira desinfecção urbana que, dentre outros resultados, buscava proteger a população das grandes endemias infecto-contagiosas que poderiam ameaçar a marcha industrial, ou o projeto civilizatório. Para tanto, “o governo republicano, [...] não mediu esforços para livrar-se do que considerava o foco dessas doenças, as habitações populares, buscando, de todas as formas, fazer desaparecer os cortiços, os casebres do espaço urbano [...]” (ALMEIDA, 2002, p. 237).

Nesse momento iniciava-se o empenho de agentes em diferentes instituições nacionais para ordenar e higienizar os espaços urbanos, a saúde pública passou a receber maior atenção. Apesar disto observava-se que as mesmas careciam de apoio popular, o que levou, por exemplo, à conhecida Revolta da Vacina no Rio de Janeiro em 1904. Mas, a existência de vários surtos epidêmicos como varíola, febre amarela, peste, malária facilitou o apoio da população à implantação de “medidas de cunho campanhista” que segundo Marcos Curi (2002) são orientadas por modelos de intervenção estatal na saúde pública através de uma espécie de estilo militarista de política médica.

Adotando-se uma terminologia militar e objetivando-se criar um ambiente próprio e galvanizador de energias e espaços para a resolução dos problemas da saúde pública, tomava-se de empréstimo a metáfora da ‘guerra’ nas ações então praticadas. Buscava-se um clima de euforia parafraseando-se o ideal do esforço de guerra, onde atitudes não habituais encontravam apoio social dado a anunciada situação de contingência
(CURI, 2002, p. 79).

Além das limitações das ações estatais sobre a população pobre no que tange aos serviços de abastecimento de água, esgoto e remoção do lixo, os tratamentos profiláticos cedidos às doenças eram ineficazes, pois atendiam certas priorizações de algumas enfermidades, levando em consideração o grau de interesse que representava para a elite. Desse modo, permaneciam precárias as condições sanitárias de São Luís, que sofria permanentes endemias, como a peste bubônica nos primeiros anos da República.

Em 1904 criou-se o Serviço Extraordinário de Higiene, com o objetivo de debelar a peste bubônica, a varíola, a “lepra”, a tuberculose e o beribéri. Aliás, não causa espanto tal prática, pois é como se processavam as práticas sanitárias no país desde a Primeira República, marcada pela hierarquização das doenças de acordo com os interesses envolvidos (acometimento de pessoas de camadas mais ricas). Ainda hoje é uma questão recorrente, dado o tratamento diferenciado dispensado para a doença com alta contaminação nas classes abastadas, como a AIDS, em detrimento de doenças que acometem preferencialmente os pobres, dado sua vulnerabilidade, como a tuberculose, disenteria infantil, entre outras (CAMARA, 2009).

As condições hospitalares e de tratamento ainda eram piores, dispondo do Hospital de Isolamento e Desinfectório para tratamento dos doentes da peste e outras doenças infectantes, sob a administração da Santa Casa de Misericórdia. O tratamento à base de isolamento era o único aceito durante a Primeira República, no entanto, medicações, condições de higiene e habitação nestes hospitais eram inexistentes.

A identificação dos doentes, bem como a obrigatoriedade das famílias de comunicar as autoridades competentes a existência de um “pestelento” era determinada por lei, conforme o Código de Postura da cidade (1902-1937). Estes exprimiam o quanto a defesa da saúde era importante, chamando atenção para os cuidados com o lixo das casas, o excremento dos animais nas ruas, prevenção de endemias e epidemias, cuidados com o enterro de cadáveres, como proceder com os infectados, configurando-se como excelentes aliados nos projetos de controle da população, baseado no isolamento.

Diante deste diagnóstico sobre saúde pública não é de se espantar o fato da hanseníase não ter chamado a atenção das autoridades competentes até meados da década de 20 do século XX, mesmo tendo registros sobre a doença em jornais de 1833.

A “lepra” convivia com a população ludovicense de forma endêmica e possuía focos apenas junto às camadas pobres da ilha, por isso a ausência de políticas em relação a esta doença.

Os leprosos eram condenados ao ostracismo social (no Hospital da Quinta Lira) pela polícia sanitária, sobretudo, pois esta tinha poderes para surpreender em suas casas os doentes que não havia informado ao serviço de higiene que haviam contraído o mal.

Relegados pela sociedade, o único amparo que os doentes recebiam era a assistência cedida pela Santa Casa de Misericórdia. A gafaria
11 localizada ao sul do Cemitério dos Gaviões encontrava-se em permanente estado de deploração sem as mínimas condições higiênicas e cuidado para com os doentes.

No Maranhão já havia instituições que cuidavam de doentes de lepra seguindo o modelo filantrópico. O primeiro leprosário da capital maranhense foi estabelecido em 1830, numa casa localizada na Rua do Passeio, centro da cidade, por trás do cemitério da Santa Casa de Misericórdia. Este estabelecimento funcionou até 1870 mantido pela Santa Casa que, após esta data, o transferiu para outro terreno que ficava também por detrás de outro cemitério, agora o Cemitério Municipal do Gavião descrito pelo leprólogo Sousa Araujo (apud ALMEIDA, 1933, p. 55) como: “Sórdido e tétrico [...] ali reinam a miséria, a indisciplina e o vício”. Foi iniciada ainda a construção de outro leprosário, em 1920, no sítio Sá Viana que não foi concluído, sendo a obra abandonada em 1927, ficando os doentes alojados no leprosário do Gavião ate 1937.

De acordo com o relatório do provedor da Santa Casa de Misericórdia
12, nem mesmo o isolamento dos enfermos, considerado um dos únicos meios conhecidos e eficazes de impedir a propagação do mal, estava assegurado.

O asylo está inteiramente aberto, pois a cerca de madeira, contraída muitas vezes reconstruída, cercava o edifício, desapareceu há muito, e nem convém levantá-la de novo, porque os mesmos leprosos a destruíram de prompto, para que nem mesmo fraco obstáculo embarace a própria liberdade de locomoção, e o accesso do asylo aos estranhos, que com elles mantêm relações freqüentes, senão diárias.

Ainda de acordo com este relatório “os doentes entre homens e mulheres viviam na promiscuidade, espalhando a doença”. Isto revela que ainda em 1900 vigorava a teoria da hereditariedade da “lepra”, ou ainda que nesta fosse uma doença sexualmente transmissível.

Quanto à administração interna, vigorava a indisciplina, pois o responsável era um capataz também leproso que não dispunha de autoridade nem meios punitivos para tal comando. Não havia, portanto, meios para evitar a desordem em um local em que eram despejados doentes de todas as enfermidades de pele ou infecto contagiosas. Faltava à Santa Casa recursos para manutenção do local, para construção de uma infra-estrutura necessária para o isolamento, além do tratamento do doente.

Como se viu, nesta lógica de intervenção presente nas primeiras décadas do século XX, as medidas adotadas aos doentes de “lepra” não visavam nem o bem-estar, nem o tratamento deles, nem mesmo o seu “eficiente” isolamento, negando os interesses considerados de saúde pública. O asilo não tinha serviços adequados de
higiene, nem luz, nem ventilação. O doente não tinha menor conforto, não possuía água em abundância para os banhos, nem arborização que garantisse sombra e ventilação. Quanto ao tratamento, não existiam medicamentos suficientes e os que eram usados eram ineficientes e dolorosos, como o óleo de chaulmoogra, cujo uso interno e externo provocava efeitos colaterais como diarréia, vômito, náusea, danificando ainda mais o corpo doente e o sistema imunológico.

Outro problema diz respeito à condição social dos habitantes dos asilos e dos arredores: todos precisavam mendigar para obter alimentos e roupas. Os próprios habitantes miseráveis das redondezas entravam no asilo para tentar arranjar alguma comida quando a esmola não garantia.

Esses dados revelam o descaso do governo em relação às condições sociais de vida daqueles doentes e da miserabilidade que os circundava, determinantes das doenças coletivas. As políticas de saúde adotadas visavam tomar apenas as medidas de controle imediato das epidemias e permitir manter as endemias em níveis não comprometedores para que tivessem eficiência em debelar surto e conter índices de perdas, dentro do limite tolerável, contemplando as condições mínimas de saúde que assegurassem a manutenção da força de trabalho.

Antes da criação dos leprosários do Brasil, existiam discussões quanto a escolha do modelo de isolamento adotado. Sabiam que já era insustentável a endemia de “lepra” e seu ineficaz tratamento. Assim, alguns médicos advogam a idéia de que todos os doentes deveriam ser internados, não importando a forma clínica (infectante ou não), estágio da doença, as características do paciente, tais como sexo, faixa etária e condições sócio-econômicas. Estes médicos isolacionistas justificavam suas propostas de adoção de medidas segregacionistas como defesa da saúde coletiva. Na contramão, existiam os médicos humanitários que defendiam que o fundamental era tratar o doente e que não havia necessidade de retirá-lo do seu meio; isto porque a experiência internacional já demonstrara que, devido a hanseníase ser uma doença de longa incubação, no momento em que ocorresse o diagnóstico o doente já teria infectado as pessoas que fossem suscetíveis de contaminação. Esses médicos acreditavam ser a educação sanitária importante fator para o combate à hanseníase: para tanto, todos os homens, bem como seu núcleo familiar deveriam ser esclarecidos sobre a doença e ter acompanhamento médico, para que os prováveis infectados não viessem a se tornar transmissores, reiniciando o ciclo.

Apesar do modelo prolifático proposto pelos humanitários estar em perfeita concordância com a chamada “nova postura” defendida pelos mais renomados serviços de profilaxia da época, o modelo adotado, foi o isolamento que acabou prevalecendo a partir da década de 1930. Desta forma, percebemos que a adoção do isolamento compulsório no Brasil não foi fruto de unanimidade entre os especialistas da época e sim, conseqüência do fato do grupo médico que galgou o poder, após a revolução de 30, endossar a tese da necessidade de segregação do doente. Assim, pensada Oswaldo Cruz:

A hospitalização do leproso não é coisa exeqüível como medida prophylatica [...]. No hospital, o leproso fica entregue à sua própria
fatalidade, tratado como doente, improdutivo, tendo como preocupação exclusiva sua moléstia que infelicita e os governos ver-se-iam sobre carregados de colossal despreza. A sequestração do morphetico só é prática quando feita em colônia de leprosos. São instituições perfeitamente adequadas e onde o enfermo pode exercer toda a atividade que as suas forcas permitem. A colônia é uma pequena cidade com sua existência própria onde se encontram os elementos da vida necessários, onde cada qual pode exercer livremente sua profissão, onde não faltam elementos de distrações, onde o leproso não vive perseguido pela idéia única do mal que o tortura (O IMPARCIAL, 03 jul., 1903).

A estruturação do isolamento compulsório em São Luís e no resto do país baseou-se no “modelo campanhista”. Os serviços de profilaxia da “lepra” criados na década de 20 seguem bem este modelo de campanha, dentro de um estilo militarista da polícia médica.

A linguagem utilizada em relação à hanseníase trazia para o campo da saúde a terminologia militar adotando termos como arma, luta armada, defesa, ataque, etc. Nesse modelo imaginara-se a erradicação da doença como uma batalha a ser travada, na qual o inimigo a ser exterminado é o mal que ameaçava a coletividade. Assim, quando as ações de saúde necessitavam da adoção de medidas de força, em muitos casos a força policial atuava com os agentes de saúde. O bem-estar e a segurança do povo teriam que ser assegurado. Isto se configurava através da justificativa de defesa pelo Estado dos interesses apresentados como sendo gerais da nação através do controle coercitivo.

A luta contra o mal também justificaria o emprego do arbítrio. Para contornar o “entrave jurídico” à execução de determinadas ações sanitárias tornava-se necessária a elaboração de uma legislação especial que amparasse medidas de exceção; ou a compactuação com o poder judiciário para que estas fossem aplicadas à revelia do Direito. As campanhas movidas por Victor Godinho, em 1905 (em São Luís), e pelo Dr. Aquiles Lisboa, em 1936, previam: a notificação compulsória do doente; medidas repressivas contra os sonegadores de doentes; o estabelecimento de penalidades que viessem facilitar a vigilância sanitária (NASCIMENTO, 2004).

Nesse período e, sobretudo a partir de 1930 a lepra passou a ser considerada como uma grande inimiga da nação brasileira, cuja ameaça encontra-se reproduzida na fala de inúmeros agentes estatais, como pode observar no comentário de Abelardo Soares Caiuby
14 (1931, p. 4 apud CURI, 2002, p. 136): “A lepra, moléstia repugnante, que devora as carnes do indivíduo, tornando-o repellente, é tanto mais cruel, quanto, poupando a vida da sua victima, expõe ‘na execração pública, durante a sua longa vida”. Compartilhando de forma semelhante com esta ideia, o médico Achilles Lisboa, que teve um papel destacado na campanha contra lepra asseverou:

É a lepra o mais angustioso, o mais instante, o mais inadiável de todos os problemas nacionais. Apresenta-se-nos, de facto, o mal de Lazaro como a temerosa esfinge que nos estabelece o formidável dilema: ou me decifras ou me tolhes os passos, ou eu te devoro. E para nossa infelicidade, estamos quase a meia garganta do mostro, que desde muito nos vem minando a existência, enfraquecendo a raça e ameaçando-nos de irremediável desgraças o futuro
(LISBOA, 1936, p. 5).

Tomando como referencia tais discursos podemos entendê-lo a partir do que Foucault (1999) denominou de “tecnologia de poder”, as quais são divididas pelo autor entre as tecnologias de poder disciplinas e tecnologias de regulação. As primeiras estão dirigidas e se exercem sobre o corpo, enquanto que as segundas tem como objeto a regulação da população. Ambos, contudo, unificaram-se a partir do século XIX, as quais Foucault (1999) denominou de biopoder e que se caracterizam pelo poder de atuar sobre a vida.

Em relação à manifestação do biopoder, Foucault (1999, p. 289) destaca:

[...] a disciplina tenta reger a multiplicidade dos homens na medida em que essa multiplicidade pode e deve redundar em corpos individuais que devem ser vigiados, treinados, utilizados; eventualmente punidos. E, depois a nova tecnologia que se instala se dirige à multiplicidade dos homens, não na medida em que eles se resumem a corpos, mas na medida em que ela forma uma massa global, afetada por processos de conjunto que são próprios da vida, que são processos de nascimento, a morte, a produção, a doença, etc. Logo, depois de uma primeira tomada de poder sobre o corpo que se faz consoante o modo de individualização, mas que é também massificante [...] que se faz em direção não do homem-corpo, mas homem espécie.

Considera-se que o isolamento do doente de lepra foi uma evidencia da maneira como se articulavam saber sobre o corpo do doente, seus males e como submetê-los a técnicas de controle. Para combater a doença, um conjunto de profissionais desenvolveram estratégias no esforço de demarcarem uma identidade para o doente e um projeto político que teve no isolamento e no expurgo dos leprosos dos centros urbanos seu resultado final. Nessa estratégia, um investimento específico na estética do corpo do contaminado pela lepra foi fundamental. Criaram-se identidades virtualizadas (GOFFMAN, 1978) para quem era atingido pela doença. O denominado leproso era identificado por sua “degenerescência”, um perigo para coletividade, uma ameaça social, despido de capacidades sociais.

Com a Revolução de 1930, verificam-se grandes alterações no cenário municipal, estadual e federal. A problemática social, resultante do crescimento urbano e aumento do operariado, acentuou-se com a piora das condições de saúde, higiene e habitação, contribuindo para que medidas ainda mais radicais fossem tomadas
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Dentre as medidas radicais, as modificações políticas do governo Vargas implementaram ideias eugênicas e pregavam a formação de uma “raça forte”. Em 1931 foi fundada a Comissão Brasileira de Eugenia, cujo objetivo era influenciar a então assembléia constituinte com idéias eugênicas.

Os discursos médicos passaram a incorporar diferentes temáticas até então objeto de outras ciências, buscando associar o físico e o hereditário. As leis aprovadas para a profilaxia da hanseníase configuraram-se como uma espécie de “guerra santa” a ser movida “contra o mal”, em benefício da raça. Em São Luís, essa preocupação parece num texto da década de 1930, quando se diz que “A nenhuma outra das endemias nacionais mais do que a ‘lepra’, que, além de nos desmoralizar, o país no presente nos ameaça de lidar com a raça, a nacionalidade no futuro e exige por isso rigorosas medidas prophylacticas e eugênicas [...]” (LISBOA, 1937, p. 7)
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Vê-se uma verdadeira guerra contra a “lepra” no intuito de eliminá-la, para São Luís galgar os atributos de civilização e modernidade. O isolamento dos leprosos apresenta-se, então, como um dispositivo possível para responder à demanda de afastar indivíduos considerados perigosos naquele momento. É nesse sentido que se compreende os inúmeros investimentos em técnicas de controle social: polícia sanitária, hospital de isolamento, campanhas, isolamento dos filhos de portadores em preventórios.

Foucault (2002) oferece uma descrição sobre os leprosários e o significado da exclusão destes indivíduos do seio da sociedade, nos ajudando a pensar o isolamento em São Luís

A exclusão da “lepra” era uma prática social que comportava primeiro uma divisão rigorosa, um distanciamento [...] entre um indivíduo (ou grupo de indivíduos) e outro. Era de um lado, a rejeição desses indivíduos num mundo exterior, confuso, fora dos muros da cidade, fora dos limites da comunidade. Constituição, por conseguinte, de duas massas estranhas uma a outra. Enfim, [...], essa exclusão do leproso implicava a desqualificação - talvez não exatamente moral, mas em todo caso, jurídica e política – dos indivíduos assim excluídos e expulsos. Em suma, eram de fato práticas de exclusão, práticas de rejeição, práticas de marginalização
(FOUCAULT, 2000, p. 246).

Como justificou Foucault (2000), o horror à “lepra” induzia não apenas questões de saúde, mas povoava um imaginário sobre a natureza moral dos doentes, resultando em medidas sociais de exclusão e marginalização da condição mínima de cidadania. Tais indivíduos não mereciam galgar a condição de direito, a não ser manter distante da sociedade dos sãos / cidadãos. É bom lembrar que, além da função eugênica de construção de uma raça forte a eliminação de “lepra” também implicava maior progresso e riqueza ao país:

[...] ora, nenhuma mal, pela sua natureza própria, infundi tanto horror quanto a “lepra”, cuja carga de disseminação basta por si só para dificultar senão abolir o comércio, as relações sociais, enfim, dos povos não contaminados com os que sejam em tão alto grau (LISBOA, 1936, p. 7).

Criam-se as condições de possibilidades para legitimar as instituições de reclusão articuladas com o saber científico da medicina social moderna pautada nos princípios da clínica, do predomínio dos aspectos biológicos e do indivíduo com o corpo doente.

São estratégias de relações de força, sustentando tipos de saberes e sendo por eles sustentados. Na mesma busca para legitimar o isolamento e outorgar a sequestração “morfética” em asilos-colônias, afastados das áreas urbanas, “medida profilaticamente correta”, que se encontrou para alijar da sociedade os indesejáveis leprosos, encontra-se o discurso de Oswaldo Cruz. O médico descreve a questão da “lepra” do Brasil da seguinte forma:

Incompletos e insuficientes são nossos conhecimentos acerca da transmissão da “lepra”. Importa isto em dizer que nos falta base científica para constituir a prophylaxia da moléstia. Não é essa a razão bastante, entretanto, para que fiquemos à moda dos mulçumanos: braços cruzados diante do flagelo que, aos poucos, se expande e alastra. O que é positivo é que a moléstia se transmite. O como, não sabemos. Mas o leproso é, ao menos, um depositório de vírus. Isto está provado. Daí a necessidade de isolá-lo da comunidade
[...] (O IMPARCIAL, 03 jul., 1903).

Uma outra figura que ocupa papel de destaque nos debates nacionais acerca do problema da lepra foi o médico maranhense Achilles Lisboa – nos diversos artigos por ele publicados faz uma série de observações sobre como se comportar para evitar o contágio. “O criminoso hábito do comercio com esses infelizes (leprosos) e a caridade perniciosa de lhes acudir às necessidades dando-lhes dinheiro, muito tem contribuído para o alastramento da lepra nesta capital (S. Luiz)” (LISBOA, 1936, p. 8). O referido agente é um exemplo notável do poder social que detinha os médicos, não somente pelo fato de que propunha um programa de ação contra a lepra, como também pelo trânsito que detinha na política.

Os artigos de Lisboa
17 são bem representativos das dimensões e significados que a lepra recebeu no Brasil e dos tipos de recursos investidos – científicos, políticos, simbólicos – que buscavam garantir seu lugar como um problema sanitário, colocando também em prático um projeto pedagógico de instrução popular. Para isso, solicitava em seu Catecismo de Defesa Contra a Lepra (1936) que seus mandamentos fossem amplamente divulgados.

Prohibição rigorosa, immediata, pela policia ou pela própria autoridade sanitária, de se misturarem à população os doentes de lepra
declaradamente contagiantes; vedando-se-lhe sobretudo a entrada nas igrejas, nas repartições públicas, nos bondes, nos cafés, nas casas comerciais, nos mercados, em toda parte, afinal, onde haja aglomeração de pessoas sã e se exponham gêneros comestíveis, deverá ser severamente estabelecida (LISBOA, 1936, p. 14).

Em seu “Catecismo Contra a Lepra” Lisboa destaca doze mandamentos da profilaxia anti-leprosa em forma de questionário. O primeiro fala sobre as causas da doença, os seguintes falam: do perigo do contato próximo com o doente; o tempo de incubação; da possibilidade de se conhecer o doente; dos sinais que poderiam levar à suspeita da doença; dos primeiros sintomas que poderia levar ao reconhecimento do contágio; do que uma pessoa deveria fazer se suspeitasse estar com a doença; das possibilidades de cura; e por último da possibilidade de um doente continuar trabalhando após o diagnóstico.

Ainda analisando o “Catecismo Contra a Lepra”, percebe-se que Aquilles Lisboa, como Governador do Estado (anos 1935 e 1936) e médico, tentava influenciar a população com seus ideais eugenista e segregacionista, selecionando grandes “grupos de risco
18” da sociedade que deveriam ser extirpadas. Isto fica evidente no quesito de seu catecismo que fala sobre como evitar a “lepra”, pois evitá-la significava não ter vida desregrada; uma boa alimentação; casas limpas e arejadas; não viver em aglomerações; não compartilhar da intemperança.

Ora, só vivia-se bem, tendo lazer e boa alimentação, vida comedida e boa moradia quem era rico. Partindo desse princípio, os pobres eram grupos de risco, com vida desregrada e vivendo em aglomerações, em cortiços e tinham atividades como a prostituição para ganhar a vida. Assim, os focos de infecção foram elaborados em uma ótica eugênica, identificando pobres, prostitutas, moradores de cortiços, alcoólatras e criminosos. A incidência da “lepra” foi, imediatamente, associada à zona do baixo meretrício em São Luís, pois neste local, encontravam-se todos os grupos de riscos possíveis para a “lepra” e as demais doenças infecto-contagiosas.

Percebemos, mais uma vez, as associações entre a doença e a moral, não apenas a moral religiosa, mas a moral estabelecida socialmente pelos grupos detentores dos discursos formadores de consciência.

De acordo com exposição apresentada para o presidente Getúlio Vargas pelo interventor federal do Maranhão, o capitão Antônio Martins de Almeida, através do Decreto nº. 474/1933 foi reorganizado o Departamento de Saúde e Assistência e extinta a Diretoria de Higiene e Saúde Pública, permanecendo os respectivos serviços. Uma das dependências deste departamento era o Serviço de Assistência Pública, que compreendia, além de outras coisas, o Dispensário, o Serviço de Profilaxia da Lepra e o Hospital do Isolamento
, revelando uma intensa campanha de limpeza social.

Durante o ano de 1934, o Serviço de Saúde Pública, através do Serviço de Higiene e Profilaxia de Doenças Transmissíveis, visitou várias habitações populares, a fim de verificar as condições de tais locais, dando-lhes, ou não, a concessão de poderem ser habitados, muitos deles, no entanto, foram demolidos. Além disso, houve a instituição do exame médico obrigatório nas escolas, nas repartições públicas, nos hotéis, nas oficinas, enfim, em todos os lugares de aglomerações obrigatórias, evitando o aumento dos casos da doença através do diagnóstico precoce.

Havia, também, o policiamento do desembarque na cidade e a limitação da liberdade dos “leprosos” impedidos de andarem por todos os lugares públicos. Isto era posto em prática pelas autoridades estaduais, com o objetivo de salvar a cidade ameaçada, declarando quem estava ou não estava apto a conviver em sociedade.

De acordo com um levantamento feito durante uma inspetoria feita por Antônio M. de Almeida em 1934, o número moderado dos casos de “lepra” foi de 3.000 (três mil) pessoas no Estado do Maranhão, sendo que, na capital, existiam quase 20% (vinte por cento) deste total de casos registrados e, destes, somente 80 (oitenta) pessoas recebiam assistência pública, em um depósito situado atrás do cemitério municipal (a gafaria – Hospital Quintas do Lira), cujas condições sociais, econômicas, sanitárias e médicas eram precárias.

Com essas informações, pode-se concluir que havia muito mais doentes na capital porque muitos se negavam a declararem-se doentes e a cumprir com a consulta médica obrigatória, pois entendiam que, se declarando doentes, estavam assinando um óbito social e sujeitando-se a toda uma política estigmatizada e segregacionista. O temor possibilitava à população doente esconder-se do serviço de saúde.

Outro aspecto perceptível era que, apesar de todo discurso de eliminar o mal, as próprias condições do local de isolamento dos doentes eram precárias, possibilitando fugas e o livre convívio com os sãos. O descaso e a desumanidade do governo acabavam contradizendo o isolamento, considerada a melhor medida profilática praticada em relação à “lepra”.

Dados da Inspetoria de Demografia, Educação, Propaganda Sanitária e Fiscalização do Exercício da Medicina mostram o número insuficiente de profissionais de saúde para cuidar da população de São Luís, conforme tabela 1 a seguir:

O controle sobre os leprosos foi se aperfeiçoando na medida em que aumentava os conhecimentos sobre a doença, além disso, havia vigilância permanente do Departamento de Profilaxia da Lepra20 e o Serviço Oficial cuidando para uniformização das políticas médicas e sanitárias de combate à lepra. Assim, verifica-se a utilização permanente de leis e decretos para regular o combate a doença, seu tratamento e as medidas de controle sobre o portador, além de vultosos investimentos para a construção de um lugar adequado ao isolamento compulsório e para a formação de quatros técnicos-profissionais.

Portanto, toda e qualquer concepção ou prática divergente da instituída pelo D.P.L. passava a ser considerada “ilegal”, a lei dispunha que, em relação à “lepra”, tanto a doença quanto o doente seria exclusividade do Serviço Oficial. O médico, por exemplo, não tinha permissão para atender, diagnosticar e tratar de uma doença como a “lepra” sem notificar o Estado, pois não bastava ser apenas médico, mas sim, um médico do Serviço Oficial. Desse modo, o D.P.L. assegurava o controle do conhecimento sobre a hanseníase, restringindo-o a um grupo fechado.

Ainda sobre o controle do Serviço Oficial, percebe-se a criação de uma legislação criminal à parte, que preconizava a interrupção do comércio de sãos com os leprosos, bem como a proibição da caridade de lhes acudir às necessidades dando-lhes dinheiro. Estas proibições foram embasadas no pensamento médico da existência de uma forma granular de bactéria, na qual era suficientemente resistente para suportar as condições ambientais fora do corpo do doente e propagar-se através de objetos, roupas, dinheiro e habitações, contaminando as pessoas que tivessem contato com o agente mórbido granular.

Paralelamente à legislação e ao quadro técnico-profissional da saúde, o Serviço Oficial contou com a ajuda da imprensa, que noticiava as atividades governamentais sobre a “lepra” e, também, a existência desta ameaça social provada pelo alastramento da doença. Além disso, tentava-se informar sobre a doença através de cartilhas educativas, cuja finalidade era catequizar a população, contribuindo para que os doentes se conscientizassem e tomassem a iniciativa de procurar o Serviço de Saúde e incentivando à prática da denúncia na população, construindo o medo sobre o doente e visando obter um maior controle sobre a doença.

Crime, sim, e nefando, é contribuir conscientemente para propagá-la aos seus semelhantes, como acontecerá em toda a casa em que haja um leproso, que se não se submeta ao tratamento devido nem às prescrições prophylacticas indispensáveis
(LISBOA, 1936, p. 7)

Diante do exposto, percebe-se a montagem de todo um mecanismo de controle criado para combater o mal. Apesar disso, faltava uma colônia de leprosos, que seria uma das pilastras indiscutíveis para a concretização da profilaxia segregacionista da doença. Esta colônia, porém, já pensada e registrada desde 1901 pela Santa Casa de Misericórdia. Esta decisão tornou-se inadiável, pois o número de doentes aumentava e a urbanização intensa forçava o governo a deslocar os doentes encontrados no fundo do Cemitério dos Gaviões. Além disso,
modelo profilático só seria executado se pudesse ser assegurado o real isolamento dos doentes. Algo impossível, quando constatadas as ruínas do prédio onde funcionava o dispensário, as condições dos casebres, a insalubridade, as necessidades materiais dos doentes. Isto tudo promovia um perigo imediato à população sã, de acordo com o modelo profilático de isolamento compulsório vigente.

Conforme exposto pelo Presidente do Estado em 1932, Antônio M. de Almeida, percebeu, claramente, o terror da população diante do estado deplorável do depósito humano em pleno centro da cidade.

Assim, o governo estadual, observando a necessidade de criar um local apropriado para o portador de um mal tão perigoso, determinou que os doentes de “lepra” deveriam ser removidos para um lugar mais afastado do centro urbano de São Luís.

O governo numa prova de grande zelo pela solução do caso profilaxia da “lepra”, neste Estado, não tem medido esforços para realizar a conclusão das obras da Colônia de Leprosos na Ponta do Bonfim, iniciada em 1932, na administração Serôa da Motta
(ALMEIDA, 1935, p. 67).

Este isolamento encerraria o modelo disciplinar caracterizado pela obediência às regras e normas do complexo asilar. A escolha da Ponta do Bonfim foi devido ao seu isolamento geográfico e a facilidade de controle das fugas, pois só era possível o transporte daquela e para aquela região por meio de barcos. Nestes termos, o portador isolado, vigiado, não se tornaria mais uma ameaça social à população sã."

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Fonte:
JACKLADY DUTRA NASCIMENTO: "A PERSPECTIVA DOS ADOECIDOS: um olhar antropológico para compreender a hanseníase". (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais como requisito para obtenção do grau de Mestre em Ciências Sociais. Orientadora: Profª Dra. Sandra Nascimento Sousa). São Luís, 2010.

Nota:
A imagem (Hospital Amaury de Medeiros, antigo Oswaldo Cruz, em Recife, especializado em infectuosas - Revista da Cidade, edição de 1929) inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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