“A feitiçaria foi comum no universo dos colonos da América portuguesa e estava ligada às necessidades do dia-a-dia, sendo usada nas resoluções de problemas concretos: perdas de propriedades, questões amorosas, doenças e inimizades. Ela se tornou uma necessidade na formação social escravista, pois dava armas aos escravos para moverem uma luta surda contra a escravidão, como também legitimava a repressão e a violência exercidas sobre o cativo. Os escravos podiam ser legitimamente castigados porque eram feiticeiros e, por meio dos castigos e ameaças físicas, os senhores procuravam se precaver do potencial mágico deles.
Por outro lado, os cativos procuraram através dos feitiços se resguardar dos maus- tratos e se voltar contra a propriedade, por exemplo, provocando a morte de outros escravos, contestando desse modo o sistema escravista. Além disso, acusações mútuas de feitiçaria, como no caso de Suçu, refletiam às vezes tensões entre os próprios escravos, servindo como válvula de escape perante eventuais castigos. A feitiçaria e a magia ainda foram utilizadas também como forma de solidariedade, já que, diante dos castigos e enfermidades adquiridas, o feiticeiro ou curandeiro do grupo era chamado.
A feitiçaria exercida por Suçu parece ter sido maléfica, e o que a une à temática abordada, além da possibilidade de práticas curativas, como veremos, é a significativa presença do cirurgião. De um lado acusação de feitiçaria, de outro a presença de cirurgião reconhecido oficialmente pelas autoridades - dois universos que se imbricam, o primeiro causando o mal, o segundo tentando saná-lo. O cirurgião era representante de uma prática de cura oficial, reconhecido publicamente, enquanto o feiticeiro, devido à perseguição, não era legitimado, integrado à esfera do público. A prática de Suçu só foi tornada pública porque vozes romperam o cotidiano das lavras, tornando aparente o mundo do privado.
No centro da América do Sul, procurar um cirurgião para a cura dos escravos enfermos pode não ter sido uma prática comum, mas existiram casos. A ameaça de perder escravos neste espaço de fronteira era constante – além da formação de quilombos, mutilações e suicídios, acrescentava -se a fuga para o domínio espanhol. As fugas de um domínio para outro realizadas por escravos e livres, compuseram, entre outras características , um quadro específico no centro da América do Sul.
Tanto os cirurgiões como os feiticeiros utilizavam produtos da fauna e da flora, ora para provocar malefícios, ora para preservar o corpo. Doença-feitiço-veneno se confundiam no pensamento colonial, e as práticas adotadas para lidar com os três casos eram as mesmas.
Quando encontrados em poder de negros ou índios, livres ou escravos, em algumas situações como durante as visitas, os produtos da fauna e da flora deixavam de ser elementos comuns do cotidiano e passavam a integrar o universo da feitiçaria, como ocorreu com Maria Eugênia de Jesus. Preta forra, pertencente à irmandade de Nossa Senhora do Rosário na Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá, foi acusada de difamação e, em seguida, de feitiçaria. Por esta última acusação, foi cogitado o seu desterro para o Forte de Coimbra, na fronteira. Os fortes militares tiveram múltiplas finalidades neste espaço de fronteira. Planejados por engenheiros militares e construídos por brancos pobres, negros e índios escravos ou forros, eram pontos de defesa, rotas de escoamento de produtos contrabandeados e também receptáculos de indivíduos tidos como “malfeitores” nas vilas.
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A feitiçaria praticada pelos indígenas estabelecidos nas vilas também era ameaçadora. Entre os Bakairi, a feitiçaria era e ainda é temida. Omeodo, o senhor do veneno, lança flechas envenenadas sobre suas vítimas ou trabalha indiretamente colocando algodão ou talas de taquaras envenenadas nas paredes das casas. Além disso, podem-se usar fios de cabelos; por isso é importante escolher bem o “cabeleireiro”. Stein, em fins do século passado, registrou alguns dados sobre o preparo de feitiços:
O cabelo ou o sangue entra na cuia dos venenos que é fechada, e imediatamente adoece o dono ...Na falta de cabelo ou sangue, o feiticeiro molha com veneno um pequeno ramo de pindaíba ou um fiozinho de algodão, escondendo-o numa frincha da casa ou debaixo do pedestal de argila em que repousa a panela, lança-o secretamentepois voa muito longe- atrás do perseguido...
Provocar malefícios por meio de feitiços enterrados ou colocados próximo às casas das vítimas era procedimento comum na América portuguesa. Por isso, no ritual de contrafeitiço, era necessário realizar a prospecção do terreno. No Grão Pará, a índia Sabina, acusada na Visitação do Santo Ofício, foi chamada ao palácio pelo governador João de Abreu Castelo Branco para tratá-lo, pois já havia tempo que estava doente. Com a ponta de uma faca, esburacou a parede de taipa de pilão rebocada com cal e encontrou um embrulho contendo ossinhos, feitiço que fora feito para o governador anterior.
A prática da feitiçaria era cotidiana e elementos da fauna e da flora, bonecos, fios de cabelos, unhas, sangue e objetos pessoais, quando encontrados em poder de livres pobres, negros ou ameríndios, como já foi dito, poderiam assumir a conotação de malefício. Tinha-se a idéia de que a parte valia pelo todo e a imagem para a coisa. Os dentes, a saliva, o suor, as unhas, os cabelos representavam a pessoa, e por meio deles, era possível agir diretamente sobre ela, seduzindo ou enfeitiçando. Tudo que estava também em contato imediato com a pessoa - vestes, marcas de seus passos, do seu corpo, objetos – era assimilado ao corpo. Na medicina oficial, essa relação também persistia, inclusive nos tratados médicos impressos antes de meados dos setecentos. O cirurgião Luis Gomes Ferreira, autor do Erário Mineral, discorreu sobre certos métodos de cura baseados nessas relações. Para cicatrização de feridas, comentava sobre a eficácia de determinados pós medicinais postos sobre panos embebidos no sangue derramado ou colocados sobre o instrumento causador da ferida. Portanto, havia fluidez entre os saberes e práticas de cura oficiais ou não.
A fluidez desses domínios pode ser percebida também na feitiçaria curativa e na benzedura. Entre os anos de 1785-1787, foram denunciadas no Cuiabá 28 pessoas, homens e mulheres que de alguma forma operavam com o sobrenatural. Com a finalidade de normatizar a vida cotidiana, as devassas deveriam ter sido realizadas em toda a colônia. Por ora, foram encontrados informações sobre elas apenas em três regiões: Minas Gerais, Mato Grosso e Ilhéus. Nas Minas Gerais, elas foram periódicas, abrangentes e extensas, tendo ocorrido desde os primeiros anos da década de 20 do século XVIII, finalizando com a entrada do novo século. Na região de Ilhéus, as devassas ocorreram em princípios do século XIX. A do Cuiabá, a única localizada até o momento, ocorreu em 1785-1787."
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Fonte:
NAUK MARIA DE JESUS: "SAÚDE E DOENÇA: PRÁTICAS DE CURA NO CENTRO DA AMÉRICA DO SUL - 1727/1808". (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História para obtenção do título de Mestre
Nota:
A imagem (synaptique.uncreated.net) inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público
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