A História como ciência


Há muito que a História está, no Brasil, confinada à prisão das escolas e universidades. Encontra-se, pois, afastada de sua principal finalidade: levar o ser humano a refletir sobre as formas de vida e de organização social em todos os tempos e espaços, procurando compreender e explicar suas causas e implicações. E uma vez que presente e passado estão indissociavelmente ligados na História, o ensino e o estudo da História tornam-se imprescindíveis para o perfeito entendimento dos tempos modernos.
(Vavy Pacheco Borges)

"Durante muito tempo a História era considerada como crônica, isto é, um relato de eventos relevantes. Essa relevância dependia muito do ponto de vista de quem escrevia história e, como era sempre alguém ligado à elite político-econômica, o campo de interesse era quase sempre os atos dos governantes
.

Segundo Vavy Pacheco Borges (2002) foi na França que esse modo de se fazer história começou a tomar novos rumos, quando um grupo de historiadores franceses, da década de 30, do século XX, dentre eles Marc Bloch e Lucien Febvre, desenvolveu trabalhos que foram publicados na revista Anaes de História Econômica e Social, tornando-se conhecidos por “escola francesa” ou “escola de Annales”.

M.Bloch e L. Febvre lutaram contra a concepção de uma história que fosse somente política, narrativa e factual e, a partir do desenvolvimento de outras ciências do homem, utilizando como inspiração suas técnicas e seus métodos, foram os responsáveis por umnovo impulso no conhecimento histórico. Em vez do estudo dos fatos singulares, os trabalhos desses historiadores procuraram chamar a atenção para a análise de estruturas sociais, vendo seu funcionamento e evolução. Eles aceitavam uma história total, que considerasse os grupos humanos sob todos os seus aspectos e, para tal, uma história que estivesse aberta às outras áreas do conhecimento humano. Essa afirmação encontra respaldo em José M. Amado Mendes (1993), quando esclarece que o grupo dos Annales, que teve como pedras de toque a interdisciplinaridade, a globalidade, a preferência pelo econômico e o social e o estudo das mentalidades, liderou entre os anos 30 e 50 do século XX.

Se a História sempre foi feita cristalizada em datas, feitos e heróis, desprezando-se a historicidade do indivíduo, é certo que nunca foi escrita sob a ótica do grupo social dominado, mas pela visão, pelos desejos e interesses da chamada classe dominante. Isso se dá porque qualquer sociedade sempre se estrutura em diferentes grupos ou classes, uma das quais detém o poder político, o poder econômico e o prestígio social. Se pensarmos em História como uma sucessão de fatos no tempo, deixaremos uma história desvinculada daquilo que somos hoje. Julgamos que há possibilidade de se buscar, por meio de documentos, conhecimentos que nos tragam uma carga informativa que ainda não nos foi contada e que trouxeram através do tempo os porquês de tudo o que somos e vivenciamos hoje, conforme afirma V. P. Borges (op.cit: 45):

História não é o passado, mas um olhar dirigido ao passado: a partir do que esse objeto ficou representado, o historiador elabora sua própria representação. A história se faz com documentos e fontes, com idéias e imaginação.

Marc Bloch (1965) destaca como característica da História a preferência pelo coletivo e a dimensão temporal que deve ser acrescida do espaço. Com isso, entendemos que o autor inclui o homem como objeto da História, concebendo-a como a própria ciência dos homens no tempo.

Edward Hallet Carr (1985) afirma que sociedade e indivíduo são inseparáveis, pois se complementam. O homem é produto da sociedade, mas age de maneiras distintas enquanto indivíduo e enquanto membro de uma sociedade. Segundo o autor, o historiador é um ser humano individual, que faz parte da história, sendo seu ponto de vista o que determina a visão do passado. Antes de começar escrever história, o historiador é um produto do passado, portanto, antes de estudar a história, devemos estudar o historiador. Os fatos, também, são determinados de acordo com a sociedade, a partir do momento em que os fatos da história são fatos sobre os indivíduos e que reflitam sobre a sociedade. É exatamente nesse ponto que o rebelde ou dissidente na história tem papel importante, pois desencadeiam mudanças, atualizando os fatos.

Para E. H. Carr (op.cit: 90), o diálogo entre presente e passado é na realidade, um
diálogo entre a sociedade de ontem e a sociedade de hoje e, portanto, história significa:

Tanto o exame conduzido pelo historiador quanto os fatos do passado que ele examina, é um processo social em que os indivíduos estão engajados como seres
sociais; a antítese imaginária entre a sociedade e o indivíduo nada mais é do que uma pista falsa atravessada no nosso caminho para confundir nosso pensamento.

Segundo V. P. Borges (op.cit.: 48), História é a história do homem, visto como um ser social, vivendo em sociedade. É a história das transformações humanas, desde o seu aparecimento na terra até os dias em que estamos vivendo. A autora afirma, ainda, evidentemente impulsionada pela teoria de Marx, que são os homens que fazem a história, mas o fazem dentro das condições reais que encontramos já estabelecidas, e não dentro das condições ideais que sonhamos. O conhecimento histórico serve para nos fazer entender, junto com outras formas de conhecimento, as condições de nossa realidade, tendo em vista o delineamento de nossa atuação na história.

Em busca de sua própria razão de ser, a trajetória do homem na terra é indeterminada. A finalidade do conhecimento histórico é estudar e analisar o que, realmente, aconteceu e acontece com os homens, o que com eles se passou e se passa, sem se buscar uma filosofia de vida.

O homem é um ser finito, temporal e histórico e tem consciência de sua historicidade. Ele vive em um determinado período de tempo, em um espaço físico concreto e, nesse tempo e nesse lugar, age em relação à natureza e aos outros homens, sendo esse proceder, o seu caráter histórico, pois tudo o que se relaciona com o homem tem sua história, incluindo a língua.

A história vista como o estudo do passado, parece-nos ser um ponto pacífico, mas a história também é aceita como o estudo do passado em função de um presente. No entanto, só podemos conhecer algo do passado por meio do que desse ficou registrado e documentado para a posteridade.

V. P. Borges afirma que a maior parte da documentação utilizada, em História, é escrita e que, antigamente, a idéia de um documento histórico era a de papéis velhos, referentes a pessoas consideradas importantes, as quais eram vistas como os condutores da história. Atualmente, tem-se consciência de que, entre outros exemplos, uma caderneta de despesas de uma dona-de-casa, um programa de teatro, e até mesmo um cardápio de restaurante são documentos significativos e reveladores de seu momento. Quanto às fontes ou documentos, diz V.P.Borges (op cit: 61): não são um espelho fiel da realidade, mas são sempre a representação de parte ou momentos particulares do objeto em questão.

A história não é, apenas, levantamento de dados ou fatos, ela os relaciona entre si, procurando descobrir e sistematizar as relações existentes entre eles. Como toda forma de conhecimento, a História procura desvendar, revelar, sistematizar relações desconhecidas e não claras. Mas é preciso que se desfaça a ilusão de que escrever História seja estabelecer certezas. Escrever História é reduzir o campo das incertezas, é estabelecer um feixe de probabilidades. Não é dizer tudo sobre determinado objeto do passado, mas explicar o que lhe é fundamental.

A função da História, segundo V.P.Borges é de fornecer à sociedade uma explicação sobre ela mesma. A História se coloca, hoje em dia, cada vez mais próxima das outras áreas do conhecimento que estudam o homem, procurando explicar a dimensão que o homem teve e tem em sociedade. Apesar da propensão de se considerar a História como uma ciência, a falta de unanimidade deixa a questão em aberto, mesmo tendo a História objeto e métodos próprios.

Segundo J. M. A. Mendes, a História não faz parte das ciências exatas ou da natureza, é uma ciência social, pois estuda as sociedades; é, também, uma ciência humana, visto que não estuda qualquer sociedade, mas sociedades humanas e, em alguns casos, personalidades e indivíduos por meio de biografias. Para J. Le Goff (apud J. M. A. Mendes op cit: 15), a melhor prova de que a História é e deve ser uma ciência é o fato de precisar de técnicas, de métodos e de ser ensinada.

J.M.A. Mendes postula que a História é uma ciência que tem como objeto a
sociedade/homem, e pela sua natureza se distingue das ciências naturais, pois se enquadra no grupo das chamadas ciências humanas e sociais que, a exemplo da psicologia em final do século passado, se tem constituído como ciência autônoma, tal como a lingüística, economia e a demografia.

Estaria a história preocupada com os fatos ou com os acontecimentos? Segundo Jean Glénisson (1977) caracteriza-se o acontecimento por ser único, irrepetível e o fato, pelo olhar que o historiador dá aos acontecimentos, ou seja, o olhar do historiador é que faz do acontecimento um fato e que, por sua vez, faz do fato um objeto da História. O objeto que a História assume não faz dela ciência, o que a caracteriza como tal é o percurso do historiador, pois é o historiador que tem o comportamento científico perante os fatos. E. H.Carr (op.cit:65) afirma que a História se constitui de um processo contínuo de interação entre o historiador e os seus fatos, ou seja, um diálogo interminável entre o presente e o passado, entendendo este como a chave para a compreensão do presente.

Em síntese, entendemos a História como a ciência que estuda as transformações pelas quais passaram as sociedades humanas, sendo essas transformações perceptíveis no e através do tempo e, também, como uma forma de conhecimento, que procura desvendar, revelar e sistematizar as relações materializadas no documento, propiciando sua compreensão de vida humana à sociedade.

Neste sentido, o Regimento de Tomé de Souza, considerado um grande evento na história do Brasil, transformado em fato e carregado de marcas histórico-lingüísticas, permite-nos apreender aspectos da sociedade e do homem no século XVI, por meio de um olhar histórico que dialoga com o lingüístico."

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Fonte:
ELIANA APARECIDA JORGE PIRES: "MARCAS HISTÓRICO-LINGÜÍSTICAS PRESENTES NO REGIMENTO DE TOMÉ DE SOUZA, ESCRITO NO SÉCULO XVI, NA CORTE DE DOM JOÃO III -1521-1557". (Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do título de MESTRE em Língua Portuguesa, sob a orientação Do Professor Doutor Jarbas Vargas Nascimento). São Paulo, 2006.

Nota
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