O que é o caboclo?



O pai gostava de plantar bastante trigo porque era um alimento que sempre tinha... (observou-se que o túmulo é envolto por trigos) (Paulo, 22- 10-2006).
Que a gente se acha caboclo mesmo, na vivência, é no assentamento que isso começou. Uma vida nova. Eu, na verdade... eu penso que eu comecei tudo de novo, outra sociedade...(Silvio, 14-10-2006).

Esta escrita pretende, inicialmente, apresentar, por meio de seus registros, um corpo
caboclo. Um corpo caboclo plagiado por um imaginário instituído que tenta legitimar a “verdade” de um modo de vida que se manifesta no heterogêneo. Um corpo caboclo que se mostra inquieto em relação à ordem do discurso de invasor, ocioso, pedinte.

As pesquisas em torno do campesinato mostram uma literatura arcaica
sobre os modos de vida no campo, e essa situação não é diferente no que se refere ao caboclo. No entanto, o caboclo, aqui considerado, manifesta-se como ser agente do campo. Assim, ele não é e não está pronto dentro de uma identidade engessada, pois resiste a esse aprisionamento. O corpo caboclo, e aqui campesino, plagiado pelo já dito apresenta-se nos discursos acadêmicos como um corpo dócil, domesticado numa estrutura homogênea. Para Cândido (2003, pp. 288-289):

Casar é na verdade necessário não apenas dentro das condições de trabalho, como das de vida sexual que prevalecem no meio rural. Sem companheira, o lavrador pobre não tem satisfação do sexo, nem auxílio na lavoura, nem alimentação regular.

Mas, existe um “outro” corpo caboclo
que se manifesta numa potência intempestiva, com a qual tenta romper com os dogmas e doutrinas criados sobre o seu dia-a-dia e os modos de manifestar as suas práticas, sua vida. Esse outro corpo, resistente, luta para rachar os modelos, os “perfis” e as verdades instituídas. Segundo Deleuze; Guattari ( 2004, p. 44).

Adoro inventar povoações, tribos, as origens de uma raça... Retorno de minhas tribos. Sou, até o dia de hoje, o filho adotivo de quinze tribos, nem mais nem menos. E estas são minhas tribos adotivas, porque eu amo cada uma mais e melhor do que se eu tivesse nascido nelas.

O registro de um estudo sobre o caboclo num assentamento de reforma agrária não tem o objetivo de afirmar as suas relações de parentescos ou religiosas, nem investigar suas relações amorosas, sexuais, por exemplo. Mas possui o propósito de abrir-se a outras estratégias, as estratégias nômades, abrir-se aos afetos. Esse abrir pretende considerar o outro corpo numa nova estética que se
movimenta como multidão na qual existem infinitas expressões.

O corpo caboclo que é campesino sofre o mal-dito através da divisão dos lugares e dos papéis para mulheres, homens, crianças no habitar. Para Guattari (1987. p. 30): “Todos os pólos do agenciamento, a criança, o irmão, a mãe, vão então se cristalizar no campo da representação”
No entanto, a família apresenta-se como categoria centralizadora nesse cenário coletivo. A constituição da moradia e do trabalho na “roça” é construída, e essa expressão aqui não se pretende negar.

A proposta desta análise é perceber uma arquitetura que impõe um território instituído no corpo do caboclo, veiculando a imagem de preguiçoso, “sujo”, entre outros adjetivos. Guattari (1987, p. 30) afirma: “Toda a realidade, então, passa a ser tomada no campo dos valores binários, o bem/o mal, (...), o rico/ o pobre, o útil/ o
inútil, etc.” . O imaginário social tenta mutilar a existência do corpo caboclo através de um discurso que deseja moldar os modos de viver coletivos, sufocando suas manifestações.

O caboclo sofre, na sociedade capitalista, graças às imposições da revolução industrial, o estatuto do atrasado, do ocioso e do vagabundo, carregando as marcas, em seu corpo, de que o seu modo de viver é um modo de reprodução alienante. O fato é que o caboclo enquanto ser manifesta e acolhe o viver de modo a não
centralizar e a não se encarcerar frente à categoria trabalho.

Meu pai nunca pensava: tem que trabalhar, tem que trabalhar... Quando ele colhia, nóis colhia a safra, se Deus quiser, se sobrasse, nóis comprava um xampu, uma bolachinha até hoje. Ele podia ta na maior colheita e chegava visita na casa dele era agradar bem as visitas, era passear se chovia...
(Valéria, 14-10-2006)

Então a resistência
do caboclo campesino fundamenta-se contra a imposição do corpo útil, ou seja, o corpo do trabalhador é exigido ser um corpo funcional, um corpo material, um corpo fabril, um corpo mercadoria onde não são permitidos prazer e criação.

Então um sonho um dia a gente te a morada da gente... Fico feliz porque eu sei que aqui é meu não tem esse negócio: será que o ano que vem o meu patrão precisa da terra? O que a gente planta não precisa parte, eu não consegui compra terra por causa disso né, os patrão cada ano comprava um pedaço de terra. A soja, o milho, o feijão a gente vendia eu dava a parte, eu dava a terça parte de cada três bolsa que eu colhia uma ia pro patrão. Nóis cheguemo a colhe... 300 sacos de soja e de dá 100 sacos de soja pro patrão assim a notinha pesadinha na bodéga e daí eu tinha que entra com todas as despesa: era semente pra trilha depois, era arado que a gente gastava, era carroça que a gente quebrava, tudo saia da gente o custo. O patrão ganhava liquido isso ai não investia em nada. Então aquilo ali eu considerava que fosse o lucro da gente se não precisasse dá parte a gente até conseguia compra um pedacinho de terra, cada ano pegasse ia agregando em cinco, seis ano agente conseguia compra um pedaço de terra, mas ...
(Jairo, 21-10-2006)

Existe um “mal-dizer” sobre as manifestações dos modos de viver caboclo onde se estigmatiza o movimento deste corpo e ao mesmo tempo lhe oferecem práticas prisioneiras bem como políticas que pretendem torná-lo refém da doutrina
capitalística.

Assim, a proposta deste trabalho é analisar o discurso registrado nos enunciados sobre o caboclo e, neste caso o caboclo que vive no campo. Aqui a linguagem será considerada como uma ação, ou seja, cada ato de fala está
conectado há uma instituição e ao mesmo tempo ao desejo de sua reinvenção.

Então, nos textos de Darci Ribeiro (2006, p. 19) e de Monteiro Lobato (1968, p. 278), o primeiro apresenta o processo civilizatório no Brasil, considerando o caboclo através das conceitualizações resultantes das diferentes regiões do país, e o segundo cria uma caricatura do povo brasileiro resultante da interferência
indígena:

Por essas vias se plasmaram historicamente diversos modos rústicos de ser dos brasileiros, que permitem distingui-los, hoje, como sertanejos do Nordeste, caboclos da Amazônia, crioulos do litoral, caipiras do Sudeste e Centro do país, gaúchos das campanhas sulinas, além de ítalo-brasileiros, teuto-brasileiros, nipo-brasileiros etc. Todos eles marcados pelo que têm de comum como brasileiros, do que pelas diferenças devidas a adaptações regionais ou funcionais, ou de miscigenação e aculturação que emprestam fisionomia a uma ou outra parcela da população.
O indianismo está de novo a deitar a copa, de nome mudado. Crismou-se de ´caboclismo`. O cocar de penas de arara passou a chapéu de palha rebatido à testa; a ocara virou rancho de sapé; o tacape afilou, criou gatilho, deitou ouvido e é hoje espingarda troxada; o boré descaiu lamentavelmente para pio de inambu; a tanga ascendeu a camisa aberta ao peito.

No entanto, como já vem sendo explicitado não desejo tratar, neste trabalho, do caboclo através de uma constituição étnica
, mas fazer os recortes genéricos a partir do seu modo de viver que se manifesta num assentamento de reforma agrária, este modo considerado caboclo, bem como as marcas que sofre pelo discurso que tem a vontade da verdade no jogo do poder e do desejo capitalístico. De acordo com Maigueneau (1997, p. 37): “O discurso só é autorizado e, conseqüentemente, eficaz se for reconhecido como tal”.

O caboclo é aquele que vive da terra e produz seu sustento da terra, né. É que tem diferença do caboclo produtor do caboclo que vive da terra mesmo. Tem o agricultor do caboclo, né. É diferenciado porque o agricultor que tem sua terra, mas não vive daquilo ali, ele produz pra exportação e, o caboclo ele tira o seu sustento da terra mesmo, né. É poucas coisas que ele depende de comprar de fora. E é a cultura. Caboclo não é nada mais que a cultura também. Diferenciando lugares para culturas diferentes. Nóis todos somos caboclos...
(Rita, 15-10-2006).

Cultura, aqui, é entendida como produção social, e não como resultado de uma origem natural que inviabiliza qualquer prática que deseje mudanças cotidianas no viver individual, familiar e coletivo. Segundo Laraia (2006, p. 25) a primeira definição de cultura do ponto de vista antropológico surge com Edward Tylor, em sua
obra Primitive Culture (1871):

Tomado em seu amplo sentido etnográfico é este todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade.

Entretanto, prefiro utilizar as orientações de Félix da Guattari, que, diante das
númeras definições que apresenta sobre cultura, evidencia a proposta deste trabalho (2000, p. 23): “No fundo, há uma cultura: a capitalística. É uma cultura sempre etnocêntrica e intelectocêntrica (...), pois separa os universos semióticos das produções subjetivas”. Então, para além da concepção de cultura, o desejo é de considerar o caboclo como ser com diferentes manifestações em seu modo de viver.

Caboclo, pra mim, é o modo das pessoa vivê, eu não me refiro cor sabe?! É a nossa produção, o jeito de nós... a nossa convivência. na origem, por exemplo, qual a visão dos Estados Unidos com o mundo e qualé a visão das pessoas hoje brasileira? Então eu vejo que o jeito de sê caboclo é o que o pai ensinou: é a vivencia amigável com todo mundo, é vivê a vida, é se diverti, é fazê amigos, produzi alimento de qualidade, é tê paz e deu...
(Leonardo, 14-10-2006).

Conforme as manifestações já registradas neste texto, é possível o leitor perguntar se esta proposta de estudo é científica? Pois, se não está sendo feita a
defesa de uma identidade étnica e de classe, para que e quem serve este trabalho?

As respostas para tais perguntas estão, primeiro, na preocupação de criar práticas profissionais capazes de considerar o que existe e pulsa cotidianamente na vida das multidões
14, ou seja, desenvolver o cuidado de não exigir aquilo que não é necessidade e prática dos coletivos, aprender a ouvir antes de falar, conhecer, através da pesquisa, modos sensíveis e possíveis de intervenção no encontro com os agentes que fazem parte dessa intervenção. É poder problematizar o Social, não o banalizando como lugar privilegiado das tarefas, mas evidenciando que é um campo de multiplicidades de acontecimentos heterogêneos, dinâmicos, mutantes e, como lembra Donzelot (1986, p. 8), “(...) ´o` social nasce com um regime de flutuações, onde as normas substituem a lei, os mecanismos reguladores e corretivos substituem o padrão” e, portanto, é reconhecer a linha de flutuações que cerca o caboclo através da imagem com seus imperativos sociais e seus regulamentos comportamentais. Romper o padrão e virar do avesso às normas é o que percebi neste estudo sobre as manifestações do viver caboclo, mesmo que também existam, nesse modo, muitas reproduções.

Por exemplo, a importância de tê... valor...em você um banheiro, um chuveiro dentro de casa esse tipo de coisa meu finado pai, por exemplo, cinqüenta anos, ele faleceu com setenta anos, né, depois do cinqüenta anos que ele foi, acho que por causa da idade, do frio, que ele foi optá pra o banheiro, pra o chuveiro, mas a felicidade dele era i pra sanga lá toma um banho, aqui mesmo no assentamento, nós arrumamos a rede de água, nós temo chuveiro em casa, ele não desceu ali, cavô e fez um pocinho pra ele tomá banho?! Ele ia tomá banho ali embaixo na sanga. Quando tava calor, ele botava a toalha no ombro e ia ali tomá banho. Isso faz com que a gente... tu fica vendo assim que do que que adianta o dinheiro, tantas coisa se tu não é feliz, eu acho que ele tinha uma felicidade imensa, às vezes tu tem dois, três irmão, as pessoas não se acertam, brigam, né, fazem isso, aquilo, tem violência, e nós em onze, por exemplo, a maior alegria no final do ano nós se reúne, a festa, pra ele, nós temo fotos aqui, dele no meio da netaiada, pra ele não importava se ele tinha trezentos reais, se não tinha, o negócio dele era vivê bem...
(Leonardo, 14-10-2006)

A segunda preocupação é a de desenvolver uma escrita que discuta as
diversas possibilidades de existir dos coletivos no mundo capitalista através dos diferentes processos nos quais segundo Guattari; Rolnik (2000, p. 37): o “(...) que se coloca é saber como uma micropolítica de processos singulares articula-se com esses processos de individuação”. Ou seja, o caboclo que sofre em seu corpo um discurso estrangeiro sobre o seu viver, sendo o mesmo discurso que condena a luta coletiva por ocupação de terra.

A terceira preocupação é de reconhecer que a ciência “deveria ser” reconhecida como tal, quando considera o cotidiano, as diferentes populações, os diversos saberes coletivos numa relação de aliança, e não de submissão. Deve ser reconhecida quando rompe com a imposição de um conhecimento sobre os seres e seus mundos, tornando-os privados e antiprodutivos. Para Nietzsche (2004, Livro
primeiro, item 12):

Com a ciência pode-se deveras favorecer um e outro objetivo! Talvez seja ela mais conhecida dos nossos dias pela sua faculdade de privar o homem das suas alegrias e o tornar mais frio, mais ´estátua`, mais estóico. Nada impede também que se descubra nela a grande causadora das dores; talvez, então, da mesma maneira, se encontre a sua força contrária, a sua prodigiosa faculdade de fazer brilhar à alegria dos humanos, novos universos de estrela.

Assim, o tema “As manifestações dos modos de viver caboclo” pode correr o
risco de não parecer pertinente para a comunidade científica, por deixar dúvidassobre as contribuições desta pesquisa para a vida dos agentes, ou seja, aquela velha pergunta: Qual o retorno dos resultados e que contribuição para o campo pesquisado? Mas, tratando-se da proposta de pesquisa já avaliada a priori e sendo feita no programa de Serviço Social, penso que o objetivo da busca deste campo e tema, e não outro, já está esclarecido, bem como as respostas a essas perguntas já estão explicitadas, principalmente, quando as famílias do grupo da pesquisa autorizaram o início deste processo."

---
Fonte:
CRISTINE JAQUES RIBEIRO: "AS MANIFESTAÇÕES DOS MODOS DE VIVER CABOCLO: UMA CARTOGRAFIA COLETIVA NUM ASSENTAMENTO DE REFORMA AGRÁRIA". (Tese apresentada como requisito para obtenção do grau de Doutor, pelo programa de Pós-graduação da Faculdade de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Orientadora: Drª Márcia Salete Arruda Faustini). Porto Alegre, 2007.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

Disponível digitalmente no site: Domínio Público

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Excetuando ofensas pessoais ou apologias ao racismo, use esse espaço à vontade. Aqui não há censura!!!