Pobres com “P” minúsculo



“As escolhas envolvidas na utilização dos termos com os quais definimos e instrumentalizamos o tema de investigação, indicam nossas filiações em termos de escolhas conceituais. Dentro do campo de estudos que tem o urbano como foco de análise, as ciências sociais brasileiras, durante a década de 1970, adjetivaram o termo “pobre” como uma categoria capaz de descrever indistintamente todos os moradores das periferias urbanas. Assim, os “pobres” foram pensados como se fossem ou devessem ser compreendidos exclusivamente a partir de sua determinação de classe, ou, de outro ponto de vista, como se suas ações fossem uma expressão das ambições de satisfazer certas necessidades materiais, uma vez que eles foram definidos por esta carência básica (Sarti, 1996:20-21).

Diferentemente do que apontavam os estudos da sociologia e antropologia urbana orientados pela perspectiva marxista, questiona-se, nesta pesquisa, a relação determinista e mecânica entre precariedade de vida e a estruturação das práticas e representações dos moradores das áreas periféricas. Ou seja, a condição de morador destas áreas não atua de forma homogênea sobre a população que nelas habitam. Isso porque, de acordo com Durham (2004), malgrado a condição de morador de áreas destituídas da maioria dos bens coletivos, não existe uma homogeneidade “natural” entre seus moradores. Pelo contrário, a formação social destas áreas congrega uma pluralidade de visões e comportamentos que não se esgotam numa categoria pouco explicativa como proletariado pobre. Frente à composição social heterogênea existente dentro das localidades seria necessário desenvolver pesquisas que analisem “de dentro” da realidade local para, assim, ser possível compreender a organização dos diferentes grupos que se configuram nesse locus.

Neste sentido, ganham relevo as contribuições seminais das pesquisas antropológicas de autores como Caldeira (1984), Sarti (1984) e Zaluar (1985), que se abrem para elaborações orientadas por perspectivas analíticas menos homogeneizantes. Por conta disso, passam a utilizar termos como “grupo popular”, “grupos urbanos”, “bairros populares”, no intuito de descrever os agrupamentos antes vistos como sendo um todo único e totalizador (utilizado, muitas vezes, como contraponto com a cultura hegemônica ou dominante), mas que agora passam a ser vistos como espaços conformados por grupos orientados por lógicas diferentes de atuação e que estabelecem relações complexas entre si.

Estas autoras estudam deferentes bairros periféricos nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, que se expandiram como conseqüência do intenso processo de deslocamento da população trabalhadora (sobretudo nas décadas de 1960 e 1970) do campo para cidade, enfocado anteriormente. Através de uma abordagem interessada na dinâmica existente nestes ambientes, conseguem captar a realidade das camadas populares, sua composição e organização interna, suas contradições e seus códigos. Contudo, como comenta Machado (2003: 15-16), entre os trabalhos que se debruçaram sobre este tema não existe consenso na definição da categoria “grupos populares”.

Segundo Caldeira (1984), as “periferias” seriam regiões que apresentam os contrastes da urbanização acelerada, que deslocou para longe a população trabalhadora empobrecida, onde os serviços urbanos não estão presentes, composta por ruas irregulares, abertas sem um plano prévio, formada por casas construídas pelo processo de autoconstrução, com esgoto correndo a céu aberto, enfim, “um cenário imediatamente identificável: trata-se do local de moradia das camadas mais pobres da população” (p.26). Ela conclui sua análise afirmando que o processo de segregação espacial não se esgota no plano das carências em termos de infra-estrutura física. Mais do que isto, sofre um efeito cumulativo, constituindo um círculo vicioso composto no qual se somam e se reforçam a inexistência dos equipamentos básicos de infra-estrutura e as características da forma de vida e de trabalho de seus moradores.

Para Zaluar (1985), dentro de uma postura meramente estatística objetivista, poder-se-ia definir como ocupantes das periferias das cidades aqueles moradores pobres incluídos nas faixas de renda mais baixa (até 3 a 5 salários mínimos) ou os que exercem as atividades mal remuneradas na economia nacional. No entanto, este ponto de vista meramente descritivo oculta os mecanismos de auto-reconhecimento que os moradores inseridos neste locus elaboram em suas práticas cotidianas, pois ainda que fragmentárias, a sociabilidade tecida dentro deste espaço favorece a consolidação de representações compartilhadas, distintas das formulações externas que tendem a homogeneizar seus moradores como se todas as regiões periféricas das cidades brasileiras fossem iguais.

Em sua pesquisa, Zaluar verificou a existência de uma realidade repleta de divisões internas dentro do grupo. Desta maneira, questiona as idéias correntes no senso comum que pensava a localidade como um todo único e coeso. Ao contrário desta acepção totalizante, a autora verificou que os moradores da periferia estudada desenvolvem um conjunto de categorias classificatórias internas de diferenciação.

Ao contrário de uma população homogênea na sua marginalidade, a pesquisa de Zaluar identificou a existência de uma clara oposição moral entre duas noções: os “trabalhadores” e os “bandidos”. À primeira, o valor moral estava atrelado à condição do ofício de trabalhador, status de provedor do grupo doméstico sob seus cuidados. À segunda, por outro lado, pertenceriam aqueles que não exerciam ou não eram identificados como exercendo atividades de trabalhador.

Nesta linha de análise, o trabalho da antropologa Cyntia Sarti (1996) apresenta os pobres envolvidos numa disputa pela construção e sustentação de uma auto-imagem positiva que compense as desigualdades socialmente dadas. Esta auto-imagem se constitui dentro de outro referencial simbólico, diferente daquele que os “desqualifica” socialmente. Ou seja, buscam estruturar um campo de referências simbólicas no qual poderiam até mesmo adquirir superioridade. Tais referências seriam originadas de um código moral para além da lógica do mercado. Embora no mundo moderno o que defina a pessoa como grupo popular seja essencialmente um critério estabelecido por ditames políticos e econômicos, no plano da moralidade, os pobres se igualariam aos ricos na medida que criam positividades de si.

Sarti aponta como indicador de sua positividade o fato de ser um trabalhador, um “trabalhador pobre”, isto é, um modo particular de se colocar no mundo social. Um entrelaçamento de duas referências: uma advinda da lógica do capital, que os converte em trabalhadores; e outro da lógica não-capitalista, mas hierárquica e tradicional, que os faz pobres (Sarti, 1996:87). Os pobres, através da honestidade como trabalhador e de sua disposição de vencer, produzem uma auto-imagem positiva de si. Este atributo moral elaborado internamente pelo grupo mostra como eles se relacionam internamente, definindo quem detém mais moral, quem são os “iguais” e os “desiguais”. No entanto, ainda que Sarti produza com êxito uma reflexão investigativa dos moradores da periferia, igualar todas as condutas e posturas dos moradores da localidade como se fosse “a atitude do pobre” seria um equívoco, pois deixa de verificar que mesmo entre os membros deste grupo existem contradições e especificidades.

Para entender a vida social que sustenta o comportamento dos moradores das classes populares, pessoas que partilham do universo de sentido da sociedade mais ampla, mas que possuem diferenças, é necessária uma postura relativizadora. Nesse sentido, Fonseca (2000) sugere uma análise do vivido dentro destes espaços de interação social segundo um olhar que interprete os grupos populares com um “P” minúsculo, pois os códigos que regulam e modulam as condutas destes indivíduos dentro de sua hierarquia apresenta um conjunto de nuances incapaz de agrupá-los numa única categoria. Os processos de ascensão econômica que alguns moradores das camadas populares enfrentam, por exemplo, acaba originando novas categorias de auto-classificação, desdobrando a noção de “pobre” em novas categorias como: “não tão pobres”, “mais pobres que”.

Este ponto, segundo Fonseca, seria o foco de grande parte dos conflitos entre os membros do grupo, pois, na realidade estudada pela autora, as pessoas que ascendem economicamente, ao invés de trocarem de bairro - o que poderia evitar os conflitos-, acionavam uma série de estratégias para se afastar simbolicamente de seus vizinhos. Através do uso das palavras, dos gestos e atitudes pretendem sublinhar sua condição de distinção.

Com isso, executam um progressivo isolamento das atividades de sociabilidade da localidade, matriculam seus filhos em escolas fora do bairro e se valem do investimento econômico na melhoria de suas moradias para expressarem a posse de certos símbolos de prestígio social, que os distinguem dos demais moradores da localidade, configurando o que a autora nomeia de “vida em sanduíche”. Como a situação econômica não permite que se instalem em áreas mais valorizadas, optam por se entrincheirar em suas moradias, na esperança que a localidade atinja um padrão de vida que julgam mais adequado: ”que as ruas sejam higienizadas, que as malocas sejam retiradas e os terrenos ocupados, por ‘pessoas de bem’.” (Fonseca, 2000:93). Todavia, o esforço erigido pelos moradores ascendentes para se distinguirem de seus vizinhos desencadeia sentimentos ambivalentes, pois, na medida que a clivagem se institui, seus idealizadores passam a ser encarados não mais como membros da mesma rede social de sentido, logo passíveis de sofrer sanções violentas.

Além desta forma de estruturar e organizar a vida dentro da localidade, a pesquisa de Fonseca (2000:21) destaca a figura da honra como pedra angular na estrutura moral das camadas populares. Condenados moralmente pelo mundo exterior, realizam uma “vingança simbólica” através de um filtro imaginário que lhes possibilita visualizar sua vida de acordo com uma auto-imagem socialmente aceitável. Conforme a imagem pública e as qualidades de cada grupo existente neste sistema de auto-regulação social, a honra das diferentes categorias sociais e seus valores constituem um prestígio pessoal diversificado. Assim, o prestígio de um homem varia de acordo com a categoria social em que se encontre situado.

Todavia, os códigos de honra, antes de serem códigos partilhados por todos os membros do grupo, apresentam diferentes níveis de aceitação. Uma exemplificação disso, encontra-se no ato de roubar que, dependendo das circunstâncias que o cercam, será mais ou menos aceito pelos demais membros do grupo. Tudo vai depender de quem pratica o ato, qual sua intenção e de quem o bem foi subtraído. A estrutura interna dessa camada popular, apesar de diferenciar o poder entre fortes e fracos, está longe de se igualar a visões simplistas, pois “Dentro do código da vila, os ‘fracos’ encontram brechas e forjam táticas para neutralizar a influência dos outros” (FONSECA, 2000:25). Por meio do uso da fofoca, uma força niveladora, mesmo os indivíduos considerados fracos conseguem agenciar vantagens para si, engendrando um cenário que, para um bom entendimento, necessita de um olhar que visualize os diferentes tons que compõem o quadro de interação existente na localidade.

Sendo assim, coloca-se em questão o termo “comunidade”, utilizado frequentemente para descrever um espaço comum, no qual convive um grupo humano, pressupondo a idéia da existência de uma identidade comum a qual todos estão efetivamente vinculados, compartilhando interesses. Essa acepção do termo “comunidade” ganha força na interpretação da realidade das periferias urbanas, pois devido à sua condição de vulnerabilidade social poderia acreditar-se que seus habitantes, através da rede de vizinhança, reforçam os laços de sociabilidade e de ajuda mútua, originando, com isso, um espaço interno de relações igualitárias. Mas para Durham (2004:221), o princípio da comunidade como sinônimo de harmonia nas relações sociais nada mais seria que um mito do nosso tempo, “pois o ideal que ela representa opõe-se à realidade do conflito de interesses e de impessoalidade das relações sociais próprias da nossa sociedade”.

Deste modo, a vinculação do termo às áreas periféricas da cidade, não constituem um emprego no sentido sociológico estrito, pois, a “comunidade” tal, como é empregada no Brasil, segundo a autora, ocorre num tipo de organização frequentemente transitória formada por interesses e objetivos específicos e restritos. Assim, o apelo para um enquadramento dos contextos das áreas de periferia dentro da idéia de “comunidade” carrega consigo, a idéia de que todos os moradores deste ambiente são ou têm ações semelhantes, de maneira a, assim, serem percebidos como iguais.

Mas em termos conceituais, dentro da sociologia, comunidade adquiriu grande importância por meio da obra de Ferdinand Tönnies que circunscreveu o termo “comunidade” em contraste ao termo “sociedade” dentro de uma oposição de significados. Segundo este autor, comunidade configura um tipo de relação social caracterizada por uma vontade voltada para concordância às regras; o protótipo deste conceito seria a família da qual surgem formas de organizar a vida cotidiana segundo um regramento social de todos os membros do grupo. Oposto a este, a sociedade caracteriza-se por ser uma organização baseada na convenção, na legislação a partir de normas estabelecidas pelo e para o grupo. Neste sentido, o conceito de sociedade pressupõe uma pluralidade de pessoas com interesses particulares que vão estabelecer vínculos de natureza racional no interesse de obter interesses específicos.

A formulação de Tönnies aproxima-se da análise que Weber (2004) faz das relações sociais estabelecidas entre indivíduos no sentido de construir uma ação consensual. Enquanto na comunidade a orientação da ação está baseada em um sentido de solidariedade, de qualquer espécie de ligação emocional ou afetiva dos membros de um grupo homogêneo e fechado. Na sociedade, nota-se a presença de uma pluralidade de indivíduos com interesses, muitas vezes antagônicos. Em face disso, tem-se a necessidade da imposição de uma vontade geral a todos os membros do grupo, não somente a favor dos interesses de uma parte, isto é, de um grupo específico.

A dimensão que o termo comunidade assume neste trabalho, caminha no sentido de verificar seu emprego como sinônimo de grupo coeso, mas que, ao ser empregado em contextos de localidades periféricas, está longe de compor um cenário de coesão como, muitas vezes, tem sido utilizado. Embora se tenha o elemento da proximidade espacial entre os membros da localidade, onde todos estão sujeitos a condições de vida similar, estas circunstâncias, ainda assim, não vão significar que todos os indivíduos compartilhem dos mesmos valores, ou se percebam com semelhantes. Pelo contrário, exatamente pela condição de estigmatização social em que se encontram, podem instituir certas clivagens sociais dentro deste espaço de interação social para, com isso, conseguir se afastar dos atributos estigmatizadores da localidade.

Dentro desta linha de raciocínio Bauman (2003), mostra que a adoção de clivagens sociais no interior de localidades consideradas externamente como homogêneas reflete o processo de individualização que os indivíduos deste ambiente buscam instituir. Assim, os vínculos mais comunitários seriam substituídos por vínculos do tipo societários; tipo de grupos originados nestas localidades será uma decorrência de interesses específicos de modo que, particularmente no contexto das cidades, estas comunidades de interesse vão agrupar pessoas em torno da fixação da idéia de um “nós” oposto a outro grupo apresentado como os “outros”.

Neste sentido, Magnani (1984:137) ocupa-se com a noção de pedaço para mostrar que a formação do grupo é constituída por um elemento de ”ordem espacial”, mas também deve corresponder a uma determinada rede de relações sociais tecidas neste ambiente, tais como os laços de parentesco, vizinhança e procedência. Em vista disso, aquilo que, do ponto de vista externo, parece ser um conjunto monolítico, na perspectiva de seus moradores é um emaranhado de diferentes pedaços, visto que a relação entre as pessoas e o espaço de sua localidade gera diferentes tipos de apropriação. Cada parte possui marcas sociais internas que permitem o estabelecimento de relações personalizadas, que agem no sentido de fornecer às pessoas uma identidade e uma referência grupal, uma idéia de “nós”. Logo, não existe de imediato uma homogeneidade entre os moradores de uma mesma área; pelo contrário, sua formação social congrega uma pluralidade de visões e divisões no comportamento dos membros deste locus.

Neste sentido, Elias (2000) mostra como uma zona urbana da Inglaterra, na qual os residentes apresentam condições econômicas e sociais relativamente semelhantes, produz internamente uma diferenciação social entre seus moradores. Nesta área, os moradores estabelecidos a três ou quatro gerações conseguem, através de práticas de estigmatização e de dominação dos espaços existentes na área, colocar os novos moradores em posição de inferioridade social. Com isso, os moradores antigos instituem uma ordem social que coloca os moradores recentes na condição de membros estigmatizados, sendo que a condição estigmatizada dos novos moradores não decorre das qualidades individuais das pessoas, mas sim do fato de pertencerem a um grupo coletivamente considerado diferente e inferior. O emprego deste tipo de fala transmite a avaliação que os membros da localidade fazem de suas respectivas posições, uma ordem hierárquica compreendida e legitimada por todos, pois os novos moradores não conseguiam revidar o estigma. Ao contrário disso, dão segmento ao discurso, isto é, assumem sua posição de inferioridade dentro da estrutura social. Neste caso, o poder de colocar em posição inferior um conjunto de pessoas é exercido de forma eficiente, pois tem legitimidade e institui uma realidade de diferenciação.

O carisma grupal compartilhado por todos os membros do grupo antigo formula entre eles a idéia de um “nós” com prestígio social. O fato de seus membros estabelecerem ou não vínculos mais estreitos entre si não importa tanto, pois a idéia desse “nós” cumpre a função primordial de expor ao conjunto as características apontadas como distintas e diferentes das existentes no grupo identificado como outsiders.

Assim, por exemplo, o valor de distinção atribuído a alguma família passa a ser vista pelos demais não como um qualidade específica de certos agentes, mas como qualidade de todos os membros do grupo. Ou seja, as características valorizadas de seus membros servem como indicadores capazes de grifar uma qualidade de todo o conjunto dos membros. Os novos moradores, devido à falta de laços sociais semelhantes aos encontrados no grupo antigo, não conseguem consolidar para si a idéia de grupo. Apesar de vizinhos, a condição de morador recente impossibilitava a coesão, fazendo com que estes não conseguissem cerrar fileiras e revidar o discurso estigmatizador que os colocava na condição de inferioridade social. O poder exercido pelos antigos era tão presente nas práticas diárias que os moradores estigmatizados aceitavam com certa resignação a idéia de pertencerem a um grupo com menor respeitabilidade. E, de forma semelhante a verificada no comportamento dos membros antigos, só que de forma inversa, as qualidades denigritórias de alguns membros do grupo recente são irradiadas como se estas fossem qualidades negativas de todos os membros.

Diante deste par de homologias (nós/eles), o processo de exclusão e a estigmatização que os membros do grupo estabelecido praticava junto aos recém-chegados funcionava como uma arma, uma barreira imaginária contra a possibilidade de serem “infectados” pelo estigma desses. Assim, a capacidade de certos indivíduos detentores de poder instituírem internamente uma hierarquia entre seus membros coloca em debate visões simplistas que percebem as realidades locais como estruturas onde a igualdade seria uma constante.

O estudo de Caldeira (2003), por sua vez, demonstra como os moradores do bairro paulista da Moóca realizam um processo semelhante de estigmatização entre vizinhos. Este bairro, que sempre foi reconhecido como constituído por migrantes, principalmente por italianos, vê a chegada de nordestinos ao bairro como um elemento nocivo à estrutura local. Os moradores já instalados não assimilaram os recém-chegados. Pelo contrário, faziam questão de vincular a imagem dos nordestinos com o processo de violência encontrado no bairro. Numa postura essencialista, dividiam a história local em “antes” e “depois” da chegada dos vizinhos, onde o “antes” era visto idealisticamente como o período da paz, da tranqüilidade, ao passo que o “depois” seria marcado pela violência, pela intranqüilidade, pela preocupação.

Segundo comenta Caldeira (2003), os moradores antigos sentiam que existia uma diferenciação social no bairro que precisava ser mantida. Entretanto, impedidos de se distanciar fisicamente da localidade devido aos laços sociais arraigados ao bairro ou a fatores econômicos, “Escolhem, então, os recém-chegados, migrantes como eles, mas que vieram depois e são mais pobres, para expressar os limites de sua comunidade e acentuar sua própria superioridade social” (p.37) (grifo meu). Se produz, assim, um sistema de atitudes e crenças que enfatiza e justifica a superioridade dos antigos moradores e rotula os demais como sendo detentores de características inferiores.

Desta forma, observa-se que, mesmo em ambientes externamente percebidos como ocupado por indivíduos iguais, ou seja, como uma “comunidade”, a reprodução de formas de distinção e hierarquização presentes na sociedade mais ampla tende a desencadear processos internos de diferenciação social entre os seus moradores. Teríamos, assim, um palco no qual o processo de estigmatização dos habitantes de uma localidade é apropriado por alguns grupos e, numa estratégia de se afastar do estigma direcionam o estigma aos “outros” instituindo, assim, uma separação entre os indivíduos. [...]"

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Fonte:
Clovis Schmitt Souza: "Estratégias de distinção entre moradores de periferia urbana: uma análise do caso da Vila Urlândia, Santa Maria/ RS – Brasil". (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Sociologia. Orientador: Prof. Dr. Marcelo Kunrath Silva). Porto Alegre, 2006.

Nota
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Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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