Breve histórico do Machado cronista



“Segundo a maioria dos estudiosos da crônica no Brasil, o primeiro autor a praticar a escrita de crônicas foi o jornalista político Francisco Otaviano de Almeida Rosa (LACOMBE, 1986; COUTINHO, 1986; FARIA, 1992). Uma seção do Jornal do Commércio denominada “A Semana” e publicada de 1852 a 1854 por Otaviano teria sido o berço das primeiras crônicas brasileiras. Seus textos já apresentariam nesta época as principais características da crônica moderna, cujo estilo verbal foi assim descrito por Lacombe:

Dele era a claridade meritória dos períodos, a simplicidade da frase que não significava pobreza, mas um milagre de bom gosto sóbrio e preciso num ambiente de estilo foguete de festa e bombo de arraial. Liam-no todos e todos nele encontravam o chiste leve e gracioso, a ironia fina e perfeita, a imagem oportuna e insubstituível, a riqueza educada num idioma que nas suas mãos era plástico, amoldável e cintilante
. (LACOMBE, 1986, p.82)

Nestas palavras, encontramos as coordenadas da maioria dos textos reconhecidos como crônicas no final do século: a presença do tom humorístico, a linguagem acessível a público heterogêneo, a ironia e a liberdade formal. No Correio Mercantil a produção de crônicas de Otaviano foi substituída, sob sua indicação, pelos textos de José de Alencar, que desenvolveu neste espaço a série intitulada “Ao correr da pena”, de 1854 a 1855.

Seguindo este rastro anterior, em 1859 é a estréia de Machado de Assis no jornalismo, então com vinte anos, ocupando também ele o espaço do folhetim e se dedicando especialmente à crítica, mais particularmente ainda à crítica teatral. Sob a influência estética de Otaviano e de Alencar, cuja admiração tornou pública em diversos momentos, o escritor principiante torna-se nesta época – nas palavras de Jean-Michel Massa (1971, p.270) – um “jornalista semi-profissional”. A relativização de Massa certamente se justifica pelo fato de que nessa época a colaboração machadiana não era ainda remunerada ou, quando muito, recebia-se um pagamento simbólico. Esta situação, que segundo Alfredo Pujol (1917, p.56) obrigava o escritor a um regime alimentar que beirava o jejum, perdurou até este ser nomeado auxiliar de redação do Diário Oficial, em 1967. Neste período, seus principais biógrafos acreditam que tenha ocupado a função de tipógrafo, exercendo atividades muito variadas no ambiente da redação, desde a configuração das páginas do jornal até à confecção das notícias e elaboração de artigos e crônicas (PUJOL, 1917, p.7-53; MASSA, 1971, p.280-1; PEREIRA, 1988, p.74).

Essa última informação nos é particularmente importante por reforçar a afinidade constitutiva e estrutural entre a crônica de fins de século e a técnica jornalística, como sugerido aqui anteriormente. Os três grandes representantes do gênero neste período participaram ativamente da redação dos jornais nos quais publicavam suas crônicas (Alencar e Otaviano chegaram mesmo à direção de periódicos), colaborando não só com artigos e crônicas, mas com a própria confecção do jornal. Neste ambiente, tornou-se necessário o desenvolvimento de técnicas apropriadas em função de objetivos específicos, cujos principais eram informar, entreter e provocar a fidelização de um leitor heterogêneo que, em última instância, sustentava a nova instituição. É a partir de ingredientes tirados destas circunstâncias que a crônica era produzida, com a função de condensar as principais características do jornal, isto é, informar sobre os fatos mais notáveis da semana, proporcionar entretenimento e angariar leitores, aumentando a tiragem do jornal.

A partir de 1861, a atividade jornalística de Machado de Assis se faz por meio de séries permanentes de crônicas – mas nem sempre regulares e de autoria exclusiva –, publicadas em meia dúzia de periódicos diferentes, até 1897. Assim, Machado aplicou-se à elaboração de crônicas muito antes de escrever seu primeiro romance, Ressurreição, em 1872, o que leva alguns críticos literários a defenderem a ideia de que a crônica funcionou como um “laboratório ficcional”, por meio do qual o escritor teria experimentado e testado a maioria dos recursos narrativos que viria a se utilizar nos romances e contos (BRAYNER, 1979; GLEDSON, 1986; MEYER, 1998; SOARES, 2006). Sem desenvolvermos essa hipótese, o que importa destacar é o fato de que a formação do escritor Machado de Assis foi atravessada pelo ambiente da imprensa, não só enquanto produtor de textos jornalísticos, mas também como leitor diário de periódicos de estilos muito diversos, já que a crônica ainda estava muito comprometida com a função de comentar os fatos noticiados na semana. Com base em uma análise integral dos jornais em que foram publicadas as crônicas de Bons dias!, Jonh Gledson (2008) apresenta, em sua edição da série, inúmeras notas relacionando os temas abordados nesses textos com notícias e propagandas publicadas nos dias anteriores no mesmo jornal. A proximidade da linguagem utilizada em um e outro texto e, até mesmo a semelhança da organização frasal, é um indício de que a intertextualidade constitutiva da crônica tinha, muitas vezes, o próprio jornal como fonte.

Ao longo da vida, Machado escreveu cerca de seiscentas e quatorze crônicas e, embora mudanças formais significativas tenham modelado o gênero neste percurso, acreditamos que muitos recursos narrativos e estratégias discursivas utilizados nos primeiros textos estão igualmente presentes nos últimos, apenas mais refinados e com maior relevo, o mesmo podemos dizer da presença destes recursos nos contos e romances. Não estamos inteiramente certos de que a procedência de sua técnica narrativa ou sua formação estética tenha sido necessariamente determinada pelo tipo de comunicação jornalística, no desenvolvimento da atividade de cronista e tipógrafo, como pensam alguns (MASSA, 1971, p.304; BRAYNER, 1992, p.412 etc.). Preferimos uma posição menos determinista, acreditando que se houveram influências, essas se deram por um processo de mão dupla. Ao mesmo tempo em que o estilo do escritor precisou submeter-se a uma forma específica de comunicação, sendo forjado por ela, também esta lhe incutiu uma feição pessoal, que viríamos a chamar mais tarde de tipicamente machadiana."

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Fonte:
IVANETE BERNARDINO SOARES: "A DIMENSÃO DISCURSIVA E ESTRATÉGICA DAS CRÔNICAS DA SÉRIE BONS DIAS!, DE MACHADO DE ASSIS". (Dissertação mestrado) Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais. Orientador: Renato de Melo). Belo Horizonte, 2010.

Nota
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Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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