“Já que temos tratado de comicidade, é interessante observar a diferença que Luigi Pirandello estabelece, em seu livro O Humorismo, entre o que é humorístico e o que é cômico. Pirandello acredita que apesar das inúmeras formas de se pensar o cômico e o humorístico, a característica mais geralmente observável entre os teóricos é a da “contradição”. A contradição seria o desacordo entre o real e o ideal, entre aquilo que esperamos e o que de fato nos é apresentado. Quando, por exemplo, em uma cena de comédia, observamos uma personagem que foge do comportamento ou do perfil que julgamos ideal (parecendo, por exemplo, caricata ou representante de um certo tipo), estabelecemos o primeiro contato com a contradição. Esta primeira observação da contradição gera o cômico, aquilo que nos provoca o riso imediato. A partir do momento que passamos a refletir sobre esta contradição, a situação deixa de ser cômica para ser humorística. Portanto, a diferença entre o cômico e o humorístico estaria, segundo Pirandello, na “advertência do contrário” e no “sentimento do contrário”:
Pois bem, nós veremos que, na concepção de toda obra humorística, a reflexão não se esconde, não permanece invisível, isto é, não permanece quase uma forma do sentimento, quase um espelho no qual o sentimento se mira, mas se lhe põe diante, como um juiz (...). O cômico é exatamente uma advertência do contrário. (...) daquela primeira advertência do contrário fez-me passar a esse sentimento do contrário. E aqui está toda a diferença entre o cômico e o humorístico.
Para entendermos melhor este raciocínio, podemos pensar em uma determinada situação (que, aliás, pode ser verificada em O caminho da porta) que nos servirá de exemplo. Ao depararmos com uma personagem que está apaixonada por outra, e esta personagem utiliza formas de conquista que nos parecem ultrapassadas, artificiais ou caricatas, elas poderão nos proporcionar momentos cômicos e risíveis. Mas, se passarmos a refletir sobre o sofrimento pelo qual a personagem passa, a sua incapacidade de conquistar a pessoa amada e em seus recursos ultrapassados e irreais de conquista, o ridículo de sua figura se apresentará de forma diferente. Este sentimento gerado pela reflexão de sua condição fará com que esta personagem deixe de ser cômica para ser humorística.
O cômico é, dessa forma, algo exterior a nós, a simples observação (ou advertência) de um fato que nos faz rir. O humorismo, por sua vez, é algo interior, um sentimento fruto da reflexão do fato cômico. Estas idéias sobre o humorismo se adéquam perfeitamente bem ao humorismo construído em algumas obras de Machado de Assis, especialmente em seus melhores romances e contos. Embora esta parte da obra do autor não seja objeto de análise neste trabalho, observemos como o pensamento de Pirandello (que parte também de outros teóricos) pode explicar o humorismo, tão largamente comentado, em obras como Memórias Póstumas de Brás Cubas:
A característica, por exemplo, de tal peculiar bondade ou benévola indulgência que alguns descobrem no humorismo, já definido por Richter como a ‘melancolia de um espírito superior que chega a divertir-se com o que o entristece’, ‘o tranqüilo, sereno e refletido olhar sobre as coisas’, o ‘modo de receber os espetáculos divertidos que parecem, em sua moderação, satisfazer o senso de ridículo e demandar perdão para o que há de pouco delicado em tal comprazimento’.
Humor e melancolia, estes são os traços mais marcantes da narrativa de Brás Cubas (indicados pelo próprio narrador, no início de suas memórias). Pirandello acredita que estes dois elementos são indissociáveis. Lélia Parreira Duarte, em sua obra já citada, também trata desta questão e retoma a idéia de Schopenhauer, que também observa a seriedade por trás do humorismo:
Schopenhauer chama-o de humorismo (1991, p. 77-83), explicando que, quando a brincadeira se esconde atrás da seriedade, surge a ironia, e quando a seriedade se esconde atrás da brincadeira, surge o humorismo. A inspiração do humorismo seria uma disposição subjetiva, séria e elevada, que se choca involuntariamente com um mundo heterogêneo ou hostil, sobre o qual não tem condições de atuar.
Esse humorismo não se aplica aos textos analisados neste trabalho, o risível se dá de forma diferente na obra teatral de Machado, que se aproxima mais dos recursos de comicidade. No teatro de Machado a discreta comicidade, unida às situações sem grande impacto na vida de suas personagens, não leva a uma reflexão mais aprofundada dos conflitos retratados. Portanto, podemos considerar cômicos os recursos do autor, segundo o pensamento de Pirandello. Este foi o caminho que Machado percorreu durante toda a sua atuação como dramaturgo."
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Fonte:
GABRIELA MARIA LISBOA PINHEIRO: "A Construção da Comicidade no Teatro de Machado de Assis". (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação m Literatura Brasileira, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Mestre em Letras. Área de Concentração: Literatura Brasileira Orientador: Prof. Dr. João Roberto Gomes de Faria). São Paulo, 2008.
Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Comicidade, humor e Machado de Assis
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