Do projeto machadiano de Literatura Nacional



TEORIA DO MEDALHÃO E SEU CARÁTER FORMATIVO

Do projeto machadiano de Literatura Nacional
Esta outra independência não tem Sete de Setembro nem campo do Ipiranga, não se fará num dia, mas pausadamente, para sair mais duradoura, não será obra de uma geração nem duas; muitas trabalharão para ela até fazê-la de todo. (Instinto de Nacionalidade, 24/03/1873)

Dentro do projeto machadiano de formação de uma literatura nacional, Teoria do Medalhão ocupa posição privilegiada, na medida em que problematiza o lugar e a função da literatura brasileira, travando um diálogo com a crítica literária que até, então, não existia tal como desejava Machado. A carência de uma crítica especializada leva o autor a formulá-la nos desvãos de seus próprios textos. De acordo com Guimarães (2004), Machado segue

[...] em direção a uma crescente autonomização do leitor, cada vez mais convocado a participar, questionar e completar a obra literária. Segundo esse estudo, as Memórias Póstumas de Brás Cubas marcariam o início, na literatura brasileira, da produção
de “metatextos ficcionais”, ou seja, textos em que o leitor explicitamente chamado a participar do processo de composição da obra. (p. 52)

Assim sendo, o conto Teoria do Medalhão também estabelece diálogo com outros textos machadianos, como por exemplo, algumas das crônicas de
Aquarelas (1859) e, especialmente, com os ensaios críticos como O Instinto de Nacionalidade (1873), no qual Machado antecipa um lugar para a literatura brasileira, independente da “cor local”.

Em
O Instinto
de Nacionalidade, Machado se volta contra a ausência de crítica efetiva e denuncia a existência de uma literatura calcada na “missão patriótica”, de base romântica, que unificava as diretrizes que os escritores deveriam adotar. Segundo Cândido (1975), constituem temas centrais da crítica romântica:

1) o Brasil precisa ter uma literatura independente; 2) esta literatura recebe suas características do meio, das raças e do costumes próprios do país; 3) os índios são os brasileiros mais lídimos, devendo-se investigar as suas características poéticas e tomá-las como tema; 4) além do índio, são critérios de identificação nacional a descrição da natureza e dos costumes; 5) a religião não é característica nacional, mas é elemento indispensável da nova literatura; 6) é preciso reconhecer a existência de uma literatura brasileira no passado e determinar quais os escritores que anunciam as correntes atuais
. (p. 329 330)

Privilegiava-se, por
tanto, a “cor local” como artifício para delinear a feição do país que se dirigia em busca da legitimidade por meio de uma literatura entendida como reflexo da realidade social: ou se refletia a nação ou não haveria literatura. Desse modo, não seria um erro aderir, incondicionalmente, ao modelo estrangeiro como processo disciplinador da literatura do jovem país, bem como seria inaceitável a recusa do elemento externo. Como, então, resolver o problema da “literatura que não existe ainda, que mal poderá ir alvorecendo agora”, conforme afirma Machado em O Instinto de Nacionalidade? (OC, p. 802).

Segundo Candido (1975), o pensamento nacional só se constitui a partir de um sistema cultural autônomo em que um projeto de nação seja, conscientemente, construído pelos diferentes sujeitos envolvidos. Desse modo, ao nos concentrarmos na figura de Machado, entendemos o processo que se desenrola no Brasil do século XIX. Ou melhor, ao analisarmos o chamado "pensamento brasileiro" desse período em que ocorre o amadurecimento da intelectualidade nacional, vemos que nossos pensadores foram, antes de tudo, obrigados a assumir uma grande quantidade de funções e tarefas.

Para Sevcenko (1999), os intelectuais da geração modernista de 1870
da qual, aliás, Machado fazia parte empenharam-se no processo de transformação político-social e, sobretudo cultural que atravessou o Brasil na sua trajetória do Império à República. Orgulhosos da autodefinição de “mosqueteiros intelectuais”, esses escritores cidadãos possuíam o ideal de modernização da nação, melhorando o nível cultural e intelectual do povo. Conforme ressalta Guimarães (2004), havia

[...] pouco contato da produção literária com o público,
atribuindo essa situa ão ausência de uma “sociedade” e também às enormes distâncias e dificuldades de comunicação no país. Constata-se ainda o número insignificante de leitores que havia no país àquela época. (p. 47)

Esse número reduzido
correspondia, segundo Cândido (2000), a “[...] uma sociedade de iletrados, analfabetos ou pouco afeitos à leitura. Deste modo, formou-se [...] um público de auditores [...] requerendo no escritor certas características de facilidade e ênfase [...]” (p. 73-74), pois muitos viam a literatura como um meio de alcançar destaque na sociedade, através da reprodução do chavão e do lugar-comum. A literatura, portanto, era vista como um caminho para se obter prestígio e poder na sociedade e, segundo Sevcenko, contribuiu para essa inversão o jornalismo por meio da reprodução de modas e novos hábitos que não condiziam com a realidade brasileira.

Machado, ao contrário de muitos, não via o novo meio de comunicação como algo negativo e, por isso, soube aproveitar-se dele para criar novas estratégias que atingissem o leitor. O jornal servia à suas intenções, como um espaço privilegiado para a formação do leitor porque tinha, de certa forma, acesso a um público mais amplo do que aquele previsto pelo livro.

É importante destacar que a crônica
O parasita – publicada no jornal é uma espécie de gênese de Teoria do Medalhão, uma vez que nela Machado já delineava alguns aspectos da figura do medalhão que seriam aprofundados em Teoria do Medalhão:

Sabem de uma erva que desdenha a terra para enroscar-se, identificar-se com as altas árvores? É a parasita. [...] O parasita (literário) ramifica-se e enrosca-se ainda por todas as vértebras da sociedade.
(OC, p. 951, 955)

No fragmento fica evidente a atitude de denúncia a um tipo característico de sua sociedade: o escritor desprovido de talento que se vale da literatura para se sobressair socialmente. Essa crítica é retomada em Teoria do Medalhão, porém, como a denúncia está invertida, a leitura que se faz na superfície do discurso é de exaltação da figura do medalhão.

Dentro do jornal, portanto, Machado lançava sua crítica mais incisiva,
sobretudo contra os chamados “fanqueiros literários”, ou seja, tipos que se valiam da literatura como via de acesso ao reconhecimento social, porém, sem possuir talento algum para exercê-la. E, em Teoria do Medalhão, especificamente, retoma a figura de medalhão presente em textos do início da sua carreira. Nas crônicas de Aquarelas (1859), o escritor expõe sua censura a esse tipo que, diferente do jornalista, se define pela

[...] individualidade social e marca uma das aberrações dos tempos modernos. [...] Fazer do talento uma máquina, [...] movida pelas probabilidades financeiras do resultado, é perder a dignidade do talento, e o pudor da consciência.
(OC, p. 951)

Machado condena o fanqueiro literário, o qual se intitula escritor e leva ao público uma literatura sem qualidade. Mas, de fato, esse foi o modelo de escritor que, segundo Sevcenko (1999), mais se adequou à nova situação social do país:

Filhos diletos da Regeneração, suas características são bastante evidentes. Ressalta sobretudo a sua atuação de polígrafos da imprensa. O jornal e o magazine luxuoso eram a sua sala de audiências, dali se pronunciavam para o seu público consumidor através de crônicas, reportagens, folhetins, poesias,
sueltos, comentários, críticas, “conferências”, orienta es didáticas múltiplas, desde as vernaculares até as relativas à culinária, moda ou política. Sufocavam assim o público com sua produção volumosa e indiscriminada, [...] um público cativo para os seus livros editados com uma regularidade metódica, de acordo com a disposição e a receptividade da clientela. (p. 104)

Conforme Sevcenko, em oposição a esse perfil, formou-se um grupo de
escritores chamados de “derrotados”, os quais se dividiram em dois. Os escritores do primeiro grupo estavam decididos a não compactuar com o modo de agir dos “medalhões” e, muitos deles, firmes na sua integridade, criaram uma carreira paralela, porém, sem grande alcance social. Isso resultou num impulso autodestrutivo, condenando à morte alguns homens de grande talento como Cruz e Sousa. Portanto, o primeiro grupo se rendeu e decidiu assistir com “horror e náusea vitória do materialismo e do individualismo” (1999, p. 105).

o segundo grupo, apesar da experiência traumática, se empenhou
em “fazer de suas obras um instrumento de a ão pública e de mudança histórica” (SEVCENKO, 1999, p. 106). Nomeados de “escritores-cidadãos”, eles desempenharam suas funções em favor da sociedade, adotando uma atitude de “nacionalismo intelectual”.

Incluído nesse segundo grupo, Machado pôs em prática seu próprio projeto literário que embora d
ivergisse daquele pautado pela “missão patriótica”, compartilhava com ele “o geral desejo de criar uma literatura mais independente” (OC, p. 802). Ao se posicionar sobre o “instinto de nacionalidade” que qualificava a literatura brasileira, Machado deixa claro seu posicionamento de vincular o nacional ao universal.

Não dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região; mas não estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a empobreçam. O que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem de seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço.
(OC, p. 804)

O projeto de Machado visava à dialética entre o universal e o local, mas não o local confundido com o pitoresco e o universal assimilado da tradição européia. Isso porque, o autor não via a literatura apenas como expressão da realidade, mas como elemento de transformação do real à medida que o introduzia no campo literário. De certa maneira, com Machado, a literatura ganha supremacia e autonomia ao convocar a realidade para exercer um papel
no “teatro de id ias” que são seus textos.

Assim sendo, a concepção machadiana de “nacional” em literatura se
distancia do apego à cor local, cujo caráter artificial forja um ser nacional que existe na ficção e converte-se, portanto, num simulacro que muito limita o trabalho do escritor. Sobre isso, Machado assim expressa sua discordância:

Devo acrescentar que neste ponto manifesta-se às vezes uma opinião, que tenho por errônea: é a que só reconhece espírito nacional nas obras que tratam de assunto local, doutrina que, a ser exata, limitaria muito os cabedais da nossa literatura
. (OC, p. 803).

Machado passa, então, a reivindicar o direito de escrever livremente, sem ficar preso aos estereótipos impostos como representantes da identidade nacional. Ele busca o direito de ser universal a partir do que nomeia
“sentimento íntimo”, sem com isso deixar de pertencer sua nação e à sua literatura. Desse modo, ele cita Shakespeare como símbolo da dialética entre o nacional e o universal:

(...) e perguntarei mais se o
Hamlet, o Otelo, o Julio Cesar, a Julieta e Romeu têm alguma coisa com a história inglesa nem com o território britânico, e se, entretanto, Shakespeare não é, além de um gênio universal, um poeta essencialmente inglês. (OC, p. 804)

Machado incorpora essa dialética em suas narrativas, utilizando-se de recursos como a paródia, que atua como ferramenta crítica da sociedade e da própria literatura, como ocorre em Teoria do Medalhão.

A partir do recurso paródico é possível perceber como, em Teoria do Medalhão, Machado elabora seu projeto, exigindo do leitor criticidade e competência para
“descodificar” o texto invertido, que constitui uma anatomia do comportamento do medalhão à medida que tece argumentos críticos, determinando, assim, a função da literatura. Função essa que deve superar as posições antagônicas que marcavam a fragilidade do sistema literário vigente.

Houve depois uma espécie de reação. Entrou a prevalecer a opinião de que não estava tôda a poesia nos costumes semibárbaros anteriores à nossa civilização, o que era verdade,
e não tardou o conceito de que nada tinha a poesia com a existência da raça extinta, tão diferente da raça triunfante, o que parece um êrro. É certo que a civilização brasileira não está ligada ao elemento indiano, nem dêle recebeu influxo algum; e isto basta para não ir buscar entre as tribos vencidas os títulos da nossa personalidade literária. Mas se isto é verdade, é menos certo que tudo é matéria de poesia, uma vez que traga as condições do belo ou os elementos de que êle se compõe. (OC, p. 802).

Não só a fuga das reproduções de modelos estrangeiros, bem como de clichês de nacional, são os sintomas
de “certo instinto de nacionalidade”. Para Machado, o que legitima a literatura nacional como universal o “sentimento íntimo” que visa captar o que literário na literatura e isso só possível se o escritor for além das fronteiras do seu país, tornando-se homem de seu tempo, sem necessariamente prender-se a aspectos puramente locais: “Compreendo que não está na vida indiana todo o patrimônio da literatura brasileira, mas apenas um legado, tão brasileiro como universal (...)” (OC, p. 803).

Assim, o tal
“instinto de nacionalidade” dever servir de estímulo ou condição inicial para que se desenvolva uma literatura nacional independente. Machado, porém, via essa independência como resultado do trabalho de várias gerações, pois, “muitos trabalharão para ela até perfazê-la de todo” (OC, p. 801).

Renunciando ao nacionalismo que reproduz apenas a fachada, Machado contempla, sobretudo, a urgência da formação do leitor crítico como meio de criar as bases para uma literatura nacional/universal. Mas, é importante destacar que, ao falar de leitor, Machado tem em mente os próprios críticos e não apenas o leitor comum, muito reduzido frente ao alto índice de analfabetismo. Machado aponta com firmeza que os críticos não estavam aptos a cumprirem seu papel:

Estes e outros pontos cumpria à crítica estabelecê-los, se tivéssemos uma crítica doutrinária, ampla, elevada, correspondente ao que ela é em outros países. Não a temos. Há e tem havido escritos que tal nome merecem, mas raros, a espaços, sem a influência quotidiana e profunda que deveriam exercer. A falta de uma crítica assim é um dos maiores males de que padece a nossa literatura; é mister que a análise corrija ou anime a invenção, que os pontos de doutrina e de história se investiguem, que as belezas se estudem, que os senões se apontem, que o gosto se apure e eduque, e se desenvolva e caminhe aos altos destinos que a esperam
. (OC, p. 804)

Como se vê, Machado não concorda com a crítica que se refugia na
“manifestação da opinião”, cujo papel principal contemplar as obras que apresentam os “toques nacionais”. No intuito de mudar o quadro estético, o escritor se propôs à tarefa de formar um novo perfil de leitor e, principalmente, de crítico literário.

O crítico deve ser independente
independente em tudo e de todos, - independente da vaidade dos autores e da vaidade própria. Não deve curar de inviolabilidades literárias, nem de cegas adorações; mas também deve ser independente das sugestões do orgulho, e das imposições do amor-próprio. (OC, p. 799)

Para que a lit
eratura se constituísse independentemente da “cor local” era necessária uma crítica “fecunda”, pautada pela análise reflexiva e não pelo “favor” como costumava ser: “Nem todos os livros deixam de se prestar a uma crítica minuciosa e severa, e se a houvéssemos em condições regulares, creio que os defeitos se corrigiriam, e as boas qualidades adquiririam maior realce” (OC, p. 806).

Assim sendo, Machado se opõe, na própria produção literária, à baixa qualidade da crítica (pautada na lisonja e no compadrismo) e propõe um novo modelo oficial do que, de fato, se espera de uma literatura nacional. É aí, portanto, que se amarram as duas pontas do projeto machadiano: a formação do leitor crítico e a produção de uma literatura alimentada pela dialética entre nacional e universal.

Seu projeto está claramente exposto em O Instinto de Nacionalidade e na inversão que está na raiz de Teoria do Medalhão, compondo uma espécie de manifesto-ensaio de crítica literária que deve ser erigida por meio de um movimento de leitura que opere na direção contrária do esperado, recriando pelo avesso o dito. Com ele, Machado faz ver que investir nesse perfil de leitor é, não somente construir as bases para a produção de outro tipo de literatura, mas, sobretudo, começar a edificar um novo conceito de nação."

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Fonte:
CILENE TRINDADE ROHR: " A paródia a serviço de um projeto de literatura nacional: teoria do medalhão de M. de Assis". (Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Literatura e Crítica Literária sob a orientação da Profa. Dra. Maria Duarte de Oliveira). São Paulo, 2009.

Nota
:
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O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
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Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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