Hamlet em Quincas Borba: o que há no céu e na terra de Machado



HAMLET EM QUINCAS BORBA: O QUE NO CÉU E NA TERRA DE MACHADO

“pode ir buscar a especiaria alheia, mas há de
ser para temperá-la com o molho da sua fábrica”
Machado de Assis

A crítica machadiana
A presença recorrente do texto de Shakespeare na obra machadiana sempre impressionou a crítica. O modo como o escritor brasileiro utilizou as falas e os personagens do dramaturgo vêm ganhando atenção desde a época da publicação de seus primeiros textos. A importância do diálogo que Machado promoveu com a tradição literária, principalmente com Shakespeare, já foi evidenciada por Marta de Sena, Helen Caldwell e, principalmente, Eugênio Gomes, crítico que se dedicou largamente a esse aspecto da obra do escritor brasileiro.

Em artigo de jornal, Magalhães de Azeredo observou que, “com um pouco menos de revolta e um pouco mais de melancolia serena, o humorismo de Machado de Assis é o humorismo de um desenganado; é o humorismo de Moliére no Misantropo e de Shakespeare em algumas cenas de Hamlet e de Otelo”. Nesse caso, Magalhães ressalta o desengano como o ponto de aproximação da obra machadiana com a de Shakespeare.

No livro O olhar oblíquo do Bruxo, Marta de Sena avalia a importância das influências que Machado recebeu de escritores como Shakespeare e Sterne, o que para ela os torna um pouco aparentados, sem que o brasileiro tenha, contudo, perdido sua originalidade. Ela se preocupa em explicitar em quais aspectos Machado teria sofrido influência dos ingleses, tais como manejo do tempo narrativo, construção de personagens, temática, entre outros. Esse livro intenciona oferecer um panorama que evidencie a intensidade e a diversificada presença dos ingleses na obra machadiana.

Traduzido para o português em 2002, o livro de Helen Caldwell, O Otelo brasileiro de Machado de Assis, traz no próprio título a abordagem da obra: segundo Caldwell, Machado estabeleceu um diálogo entre seu romance e a peça Otelo, o mouro de Veneza, de William Shakespeare. Através de um trabalho de aproximação e distanciamento, Caldwell analisa cada detalhe do romance Dom Casmurro e da peça Otelo e encontra correspondências entre os personagens: Escobar seria o tenente Miguel Cássio; José Dias seria Iago; Capitu, a inocente Desdêmona; e, obviamente, Bento seria o ciumento Otelo. Para ela, o mesmo ciúme desmedido, que cegara o mouro, confunde também o protagonista machadiano de Dom Casmurro. Assim, ela conclui que Capitu, como Desdêmona, não era adúltera, tendo antes sido vítima de intrigas e do ciúme do marido.

Embora escrito com o propósito de desmentir a culpa de Capitu, conforme afirmada por muitos críticos, o trabalho de Caldwell lança luz sobre o modo como os intertextos com Shakespeare servem para denunciar as ambigüidades da narrativa machadiana e para abrir uma discussão sobre o ponto de vista adotado pelo narrador do romance. O mérito do trabalho de Helen está naquilo que ela mesma afirma ter como objetivo: a “compreensão acerca de método narrativo” de Machado de Assis.

Também é preciso destacar as obras de Eugênio Gomes, crítico preocupado com as relações que Machado estabeleceu entre sua obra e a dos ingleses. Em seu livro de 1939, Influências Inglesas em Machado de Assis, além de salientar outros escritores e pensadores ingleses que teriam influenciado a escrita machadiana, Eugênio Gomes defende o caráter decisivo da leitura de obras de Shakespeare para a construção da obra de Machado.

Em O enigma de Capitu, Eugênio Gomes ressalta a citação freqüente de Machado à célebre tragédia Otelo, o mouro de Veneza. Nesse trabalho, ele recorre ao enredo de Dom Casmurro para demonstrar o efeito que a tragédia shakespeareana tem sobre o romance. O foco está nos capítulos “Uma ponta de Iago”, “Uma reforma dramática” e “Otelo”. No primeiro capítulo, José Dias ganha parentesco com Iago, visto ambos serem responsáveis por plantar a semente da dúvida em Bentinho e, respectivamente, em Otelo. No segundo capítulo, o narrador machadiano propõe a inversão da ação da peça, para que ela, começando do fim, terminasse com “uma boa impressão de ternura e de amor”. Em “Otelo”, terceiro capítulo destacado por Eugênio Gomes, Bento narra os pensamentos que nele despertou a representação do drama. O crítico investiga os detalhes das aproximações e coincidências entre a peça e o romance de Machado, revelando o profundo conhecimento que o escritor brasileiro tinha da obra do inglês.

Em 1960, Eugênio Gomes publica o livro Shakespeare no Brasil, no qual aborda as encenações da obra do dramaturgo inglês, bem como suas traduções para o português. Como afirma na advertência, a obra “visa primordialmente a revelar os múltiplos efeitos da arte de Shakespeare sobre a sensibilidade ou o pensamento brasileiro.” No capítulo intitulado “Influências”, Eugênio Gomes investiga a presença de Shakespeare na obra de diversos escritores, como Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo, Alberto de Oliveira, Olavo Bilac e Machado de Assis. Novamente, ele dará destaque às peças mais recorrentes de Shakespeare, a quem considera autor fundamental para a construção da obra machadiana. Segundo ele, a obra de Machado de Assis “traz freqüentes alusões a Shakespeare e suas peças, algumas com indícios de terem predominado sobre a concepção do contista”.

De Medida por Medida, Machado retirou o pensamento posto em ação segundo a advertência da primeira edição de Ressurreição: “Our doubts are traitors, /And make us lose the good we oft might win, /By fearing to attempt”. Eugênio Gomes conclui que, por falta de referência ao nome da peça, é provável que, na época, Machado de Assis apenas conhecesse o pensamento que citou. Sobre os contos, ele chama a atenção para “A vida eterna” em que Machado teria feito ecoar a ruminação filosófica de Hamlet “no sentido de que o suicídio depende mais das impressões e disposições do momento, do que da gravidade do mal”. No caso do conto “O espelho”, seria de Shakespeare a teoria de duas almas, mais especificamente de Shylock, personagem de O Mercador de Veneza, que, “tendo perdido seus ducados, perdera sua alma exterior”.

Sobre Otelo, Eugênio Gomes diz que “Após Hamlet, foi a tragédia mais utilizada por Machado de Assis, mediante citações ou alusões, através de sua obra”.21 O crítico lembra que, no romance A mão e a luva, o ingênuo Estevão, após assistir a uma representação de Otelo, bateu palmas até romper as luvas. Ainda sobre os romances, Gomes afirma que a peça do mouro ainda está presente em Helena e em Memórias Póstumas de Brás Cubas, embora Brás Cubas esteja “mais propenso à tragédia metafísica de Hamlet do que à de Otelo”. O crítico ressalta que existem ecos dos ciúmes de Otelo em Brás Cubas, Rubião e Bentinho. Ele ainda cita a presença de Macbeth no conto “Aurora” e nos romances Dom Casmurro e Esaú e Jacó.

O crítico afirma ainda que, de Hamlet, Machado absorveu o travo da dúvida e da indecisão e um certo humor macabro. Como exemplo, cita um diálogo do conto “Sem olhos”, que para ele é uma reminiscência do diálogo entre Hamlet e os clowns. Segundo Gomes, não é de se estranhar que a filosofia dissolvente de Hamlet esteja refletida na ficção machadiana, já que se tratava do “livro de cabeceira do escritor”.

Como se vê, Eugênio Gomes dedicou muitas páginas à presença das idéias, textos e personagens de Shakespeare na obra machadiana. Para ele é indubitável que Hamlet foi um dos livros prediletos do escritor que viveu “sempre impregnado da atmosfera hamletiana”. Ainda sobre os contos, Gomes chama a atenção para o fato de o escritor ter aberto “A Cartomante” com as palavras de Hamlet a Horácio. Segundo ele, a moralidade do conto “é um golpe contra o sobrenatural, sob cuja ação, entretanto, estava Hamlet quando proferiu as palavras repetidas mais de uma vez no conto, esmagado pela revelação do espectro do pai”.

Sobre o romance Quincas Borba, Gomes ressalta que Machado de Assis recorreu à fala hamletiana, adaptando-a a certas circunstâncias e introduziu o adjetivo “vã”, o que teria sido feito para “revigorar o sentido desalentador daquela frase imortal”. Por fim, ainda ressalta que, para caracterizar a insanidade do personagem em Quincas Borba, “o romancista aplica a definição da loucura de Hamlet por Polônio: “Desvario embora, lá tem o seu método”.

Embora os textos de Eugênio Gomes sejam estudos minuciosos sobre os intertextos machadianos, os efeitos da presença do texto shakespeareano no romance Quincas Borba não foram explicitados por ele. Gomes não estava preocupado em analisar os efeitos do processo de absorção de outros textos, mas em demonstrar como era sistemática essa presença na escrita machadiana.

A partir dessa perspectiva que identifica em que medida o texto do dramaturgo inglês está presente na obra machadiana, o objetivo deste capítulo é analisar as citações e salientar como sua presença no romance Quincas Borba gera efeito cômico."

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Fonte:
Alessandra Mara Vieira: "A PRESENÇA DE SHAKESPEARE NA OBRA DE MACHADO DE ASSIS: A CONSTRUÇÃO DAS DIMENSÕES TRÁGICA E CÔMICA EM QUINCAS BORBA". (Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Letras – Literatura Brasileira. Área de concentração: Literatura Brasileira Orientadora: Marli de Oliveira Fantini Scarpelli). Belo Horizonte, 2007.

Nota
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Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

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