A liberdade num recorte foucaultiano



“Dialogando com Kant, Foucault sinaliza que este ocupou-se em colocar sua época em questão. Kant busca responder quem somos nós, os esclarecidos. Foucault propõe que recusemos o que somos, temos como tarefa imaginar e construir o que podemos ser. O imperativo seria: Recuse ser o que você se tornou; promova um novo (s) estilo (s) de vida; nova (s) forma (s) de subjetividade. Trata-se da elaboração de formas de vida livres e autônomas.

Já que falamos de formas de vida livres e autônomas, a questão da liberdade é um fator que não pode ser por nós negligenciado, visto que é precisamente nesse campo que a estética da existência fincará suas bases. É pela condição de liberdade que o homem escolherá seu modo de agir; é por e através dela que poderá recusar as práticas que lhe são oferecidas; é por ela que constituir-se-á como sujeito de suas próprias ações, como sujeito autônomo.

Uma leitura ingênua da analítica do poder nos levaria a entender que as relações de poder desaguariam numa espécie de modelo engessado, o que facilmente traria até nós a sensação típica de um indivíduo claustrofóbico. Como pensar em liberdade e ética? Há uma articulação possível?

Pensar a questão da liberdade em Foucault nos remete às relações de poder. Isto porque, ao conceber o poder como rede, negando-o como sendo uma coisa que uns possuem em detrimento de outros, afirmando as múltiplas possibilidades de seu exercício, apresenta-se também a flexibilidade nas posições de exercício desse poder microfísico. Os feixes de relações de poder e a instabilidade posicional permitem que uma relação de poder se ligue a outra, ou que ocasione a geração de uma outra relação de poder, que desembocaria em mais uma relação e assim, tal movimento se perpetuaria numa animação imprevisível. Liberdade, portanto, não é estar fora do alcance do poder.

Liberdade, na perspectiva foucaultiana, não seria um produto à disposição numa prateleira. Lembremos que o poder se exerce ali mesmo onde há sujeitos livres. Há que se lembrar também que onde há um foco, um exercício de poder, uma estratégia a ser efetivada, há também a possibilidade de resistência. A rede de poder está em permanente exercício, justamente por isso haverá também as fissuras por onde a liberdade poderá ser exercida. O trabalho consistirá em encontrar os espaços nos quais a liberdade poderá ser experimentada, e se não forem encontrados buscar a formação destes.

Aqui podemos perceber que nossa preocupação com a atualidade precisa ser uma constante, pois devemos estar atentos a nós mesmos, ao jogo em si, para conseguir identificar as táticas utilizadas na tentativa de nos subjetivar, de tentar nos conduzir, de tentar nos persuadir a agir em conformidade com os interesses do sistema.

Não é possível cuidar de si sem se conhecer. O cuidado de si é certamente o conhecimento de si este é o lado socrático-platônico -, mas é também o conhecimento de um certo número de regras de conduta ou de princípios que são simultaneamente verdades e prescrições. Cuidar de si é munir-se dessas verdades: nesse caso a ética se liga ao jogo da verdade.

A prática da liberdade está vinculada a um tipo de ascetismo, elas têm ligação com o que vem de fora, com o que ainda não está prescrito, não está imposto. O ‘fora’ é esse novo modo de agir, algo que ainda não foi capturado pelos tentáculos do poder. É o que se cria, pode ser um instante mesmo, como disse Deleuze. O que importa é o confronto que pode nos tornar infames. Dissolver a identidade, buscar a não conformidade, conquistar novas subjetividades.

(...) Qual é a nossa luz e qual é nossa “verdade” hoje? Que poderes é preciso enfrentar e quais são as nossas possibilidades de resistência hoje, quando não podemos nos contentar em dizer que as velhas lutas não valem mais? E será, acima de tudo, que não estamos assistindo, participando da “produção de uma nova subjetividade”? As mutações do capitalismo não encontram um “adversário” inesperado na lenta emergência de um novo Si como foco de resistência? Cada vez que mutação social, não um movimento de reconversão subjetiva, com suas ambigüidades, mas também seus potenciais?

As dimensões de ‘fora’ e ‘dentro’ devem ser consideradas nesse processo de construção. Valorizar o presente, o ‘fora’ aqui como possível, o lugar onde a luta será travada, o solo, onde em favor do direito de estilizar a própria existência, haverá sempre uma batalha acontecendo. O conselho de Baudelaire nos servirá de estímulo: ‘ não temos o direito de menosprezar o presente’. É ele o lugar de invenção, espaço de criação de novas formas de sociabilidade, é o cenário onde se poderá fazer a experiência da liberdade.

Este lado de fora, informe é uma batalha, é como uma zona de turbulência e de furacão, onde se agitam pontos singulares, e de relações de força entre esses pontos. (...) As forças vem sempre de fora, de um fora mais longínquo que toda exterioridade. Por isso não apenas singularidades presas em relações de forças, mas singularidades de resistência, capazes de modificaressas relações, de inverte-las, de mudar o diagrama instável.

O sujeito, segundo o considera Foucault, é um sujeito histórico. Diante dessa consideração, cabe inferir que estamos submetidos a condicionantes históricos, que respondem pelas classificações do sujeito como louco, como criminoso, como dócil e útil, como aquele que tomou sua sexualidade enquanto elemento de sua identidade, e que, enfim, mensuram o sujeito a partir de muitos aspectos. Todo esse trabalho de diagnosticar o porquê somos o que somos tem no fundo o desejo de, a partir dessas problematizações, entender um pouco mais sobre a constituição do sujeito.

Problematizando nossa atualidade, Foucault propõe a realização de um diagnóstico que não se limita a mostrar o que somos, mas aponte para aquilo em que estamos nos tornando. Essa “história do presente” é capaz de distinguir as tênues linhas que separam o passado do presente e o presente da atualidade. Portanto, ela deve abrir o pensamento ao mostrar comoaquilo que é poderia ser diferente.

Os condicionantes históricos fortalecem a comodidade de agimos sempre em conformidade às normas estabelecidas. Essa normalização pode tirar de nós a prerrogativa de criação da própria existência, ou seja, da possibilidade de criar a nós mesmos para uma vida bela. Parece bastante atraente a possibilidade de construir, desenhar, moldar, esculpir a própria vida.

Não esqueçamos, porém, que essa criação se dará na tensão entre nossas necessidades e características individuais e a exigência à conformidade social dadas as regras estabelecidas pelo poder. Dito de outra forma, precisaremos romper com a linha estendida para nos limitar. Tentemos visualizar a velha brincadeira de cabo de guerra, o limite posto e adiante o marco que se deve ultrapassar para se ter direito ao prêmio. É de maneira parecida que se constitui nossa luta com as relações de poder. Se o poder funciona como uma rede de dispositivos, e dele não podemos escapar, a luta, a resistência ocorrerá ali mesmo onde o poder se exerce. Dado que onde há poder há também resistência, o que nos cabe, enquanto construtores, é encontrar os pontos móveis, para assim furar o bloqueio, despedaçar a linha e ultrapassar. Pensar a atualidade para nela empreender uma luta permanente buscando a produção de diferenças e descontinuidades. Experimentar a resistência. Essa parece ser a tarefa que nos é colocada: fazer a experiência de nós mesmos, praticar a liberdade, revolucionar.

Trata-se de aprofundar o que nos separa de nós mesmos. O passado como conta-memória, como fabricação daquilo que inquieta qualquer olharretrospectivo. O presente como emblemático, como fabricação não daquilo que somos, mas daquilo do qual diferimos. E tudo isso para abrir o de-vir, o por-vir, a possibilidade de um futuro que não é um futuro-projeto, nem um futuro guia, nem um futuro-promessa, nem um futuro consumação, nem um futuro-realização, mas um futuro por-vir, um de-vir futuro.
E m relação a esse futuro por-vir ou a esse de-vir futuro, Foucault fala à vezes da liberdade, mas sem nunca tematizá-la. Como se suspeitasse de que a idéia de liberdade, como a de história, está demasiadamente ligada a uma ontologia da subjetividade. Se a noção comum de liberdade é a de um livre arbítrio ou a de uma vontade livre, a de uma vontade que não se deixa determinar nem pela fatalidade de um destino nem pelas outras vontades diferentes da sua, o que habitualmente se pensa como verdade é a potência do sujeito, seu poder de representar-se a si mesmo, de determinar-se a si mesmo, de ser causa de si mesmo. Por isso a liberdade se representa como a propriedade ou o atributo de um sujeito que é dono de seus pensamentos, de seus atos, de seu futuro; de um sujeito que é consciente de si mesmo, dono de si mesmo. Mas a liberdade foucaultiana não é captura racional, reflexiva e global da realidade, por parte de um sujeito soberano com vistas a domina-la, mas que está, ao contrário, do lado do acontecimento, da experimentação, da transgressão, da ruptura, da criação. Por isso, seu modelo é a revolução ou, melhor, a vontade de revolução, a impaciência pela revolução, o entusiasmo pela revolução.

Esse ‘entusiasmo pela revolução’ anuncia a arte da luta, que promoverá a transformação do corpo domesticado, disciplinado, da vida regulada na obstinação pela liberdade. A emergência agora é a construção do sujeito pelas vias da arte do cuidado de si. A dificuldade é pensar na constância dessa luta, pois o exercício do poder é permanente. O poder se exerce, há resistência, o poder reage e se põe novamente em movimento através de outras estratégias e mecanismos.

O poder está atento e atentos devemos também permanecer. Não haverá uma liberação das determinações subjetivantes por parte do poder, e ele estará sempre a nos espreitar. Em contrapartida a liberdade o olha com cuidado, sua vibração pode fazer irromper uma nova subjetividade. Não passividade em nenhuma das partes, sim artimanhas sendo tecidas dos dois lados. Assim a experiência da ética do cuidado de si é personificada através da prática da liberdade.

A liberdade é da ordem da experiência, da invenção. O sujeito toma a si como espaço dessa experiência, e é em si mesmo que poderá prová-la. Todavia não se poderá buscar o fim da dominação, o cansaço do poder e sua desistência em subjetivar. A vitória final, triunfante sobre a dominação nunca chegará, dada a disposição do poder em sujeitar. Daí também cabe nossa disposição em exercer nossa liberdade, disposição antes de pensar sobre o que é ser livre, sobre do que devemos nos livrar, sobre como é possível exercer tal liberdade. Mais uma vez temos como pano de fundo a necessidade de pensar nossa atualidade, pois é nela que se dará a resistência, é nela que teremos a possibilidade de estilizar nossa vida.

Portanto, é sempre nessa dinâmica tensionada entre a vida e os mecanismos políticos que procuram conformá-la que devemos buscar o cerne dos embates que atravessam as políticas corporais de nossa atualidade. A disputa política em torno da vida é, para Foucault, um dos traços marcantes da modernidade. Por um lado, o poder atua efetivamente sobre ela, produzindo saber-poder, “bem-estar”, controle individual e coletivo, condições básicas de sobrevivência etc. Por outro lado, ela é também a bandeira de luta dos movimentos contra esse poder direito à vida, ao corpo, à saúde, à felicidade, à satisfação de necessidades, aos prazeres – que, concebendo-a como essência concreta do homem, reivindicam o direito a uma vida outra, a uma vida diferente da que nos é imposta.

Ao analisar o poder Foucault acentua que o poder é produtivo, seu exercício produz o tipo de indivíduo que lhe convém. Assim sendo, ao exercer-se o poder estimula a liberdade, ele não pode impedi-la, mas pode limitá-la. Por isso cabe dizer que a liberdade participa, se institui a partir da resistência. Onde as táticas de poder se inscrevem, nos espaços onde elas se criam e se disseminam, também lugar para confrontá-las. se poderá fazer a experiência, haverá a promoção dos exercícios de liberdade. O poder capilar se expande por todo tecido social, as relações de poder estão em toda parte, e por isso mesmo múltiplos pontos de resistência. Há que se encontrar a fissura por onde se poderá escapar. É este campo de correlações de força que se tornará também o espaço de criação, há que encontrar a ocasião.

(...) o conhecimento sobre nós mesmos está vinculado, de formas complexas, a técnicas de dominação, e a liberdade não como fim da dominação ou como nossa remoção da história, mas como a revolta pela qual a história pode ser constantemente mudada. Assim, a filosofia de Foucault não é prescritiva nem meramente descritiva. É ocasião, centelha, desafio. É risco; não garantia, escorada ou assegurada: permanece sempre sem fim.

O indivíduo viu-se disciplinado, servindo dócil e utilmente ao poder. Viu sua sexualidade ser absorvida pela discursividade, e seu comportamento ser codificado e classificado. Assim, uma nova emergência se pôs com a assunção da vida pelo poder, que não é somente normalização, mas também regulação. Esses processos afastam a possibilidade de uma preocupação consigo, colocam como probabilidade distante a prerrogativa de um ocupar-se de si mesmo."

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Fonte:
Adriane Terra Alves: "A ESTÉTICA DA EXISTÊNCIA SEGUNDO MICHEL FOUCAULT". (Dissertação apresentada ao Mestrado em Estética e Filosofia da Arte do Instituto de Filosofia, Artes e Cultura da Universidade Federal de Ouro Preto como requisito parcial para obtenção do título de mestre em Filosofia. Área de concentração: Estética Orientador: Prof. Dr. Olímpio José Pimenta Neto). Ouro Preto, 2009.

Nota
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