A Liga das Nações e o Problema da Paz



A texto, a seguir, foi publicado em 1929, já com o fim da Primeira Guerra Mundial e às portas da outra, a Segunda Guerra Mundial. Versa ele sobre a Liga das Nações, organização mundial criada em 1919, pelo Tratado de Paz de Versalhes, no qual foram formulados os princípios de segurança coletiva, arbitração de pelejas internacionais, redução de armamentos e abertura para a diplomacia. Não obstante ter desempenhado importante papel na reconstrução econômica do pós-guerra, A Liga das nações fracassou em seu intuito principal, em conseqüência da recusa das nações-membros em colocar os interesses internacionais à frente dos seus próprios. Sem dúvida, um interessante texto aos interessados por história!

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Liga das Nações e o Problema da Paz
A terrível catástrofe que enlutou o mundo, de 1914 a 1918, e cujos desastrosos efeitos ainda perduram, fez nascer, por toda parte, um anseio de paz, um desejo de se evitar a guerra, tão intensos como jamais se vira.

A Liga das Nações, organismo surgido daquela grande conflagração, teve por fim precípuo, precisamente, manter a paz. E no Pacto, que é a sua lei orgânica, se acham indicadas certas medidas, destinadas á obtenção de tal objetivo.

Abrangem, tais medidas, as três categorias seguintes: a) limitação de armamentos; b) assistência ou garantia mutua contra as agressões; c) solução pacifica das controvérsias.

O principio da assistência mutua recolheu, em certa época, as maiores atenções da Liga e foi considerado como o melhor caminho, para se chegar ao fim colimado. Nesse sentido, chegou a ser elaborado um projeto de tratado coletivo, bem depressa abandonado e substituído pela idéia mais larga de um amplo tratado geral de arbitragem e conciliação.

Essa nova tentativa, que teve a sua expressão no famoso Protocolo de Genebra, de 1924, não foi mais feliz do que a primeira. O Império britânico opôs-se fortemente á realização de um tratado coletivo naqueles termos, e essa oposição foi decisiva.

Julgou-se, então, preferível o sistema de pactos regionais. Daí, os tratados de Locarno, que tanta repercussão tiveram no mundo.

Entrementes, o organismo de Genebra procurava realizar, noutro sentido, os propósitos que lhe indica o seu estatuto fundamental. Fazia-o, estudando acuradamente o problema da redução e limitação dos armamentos.

Segundo o artigo 8.° do Pacto, "os membros da Liga reconhecem que a manutenção da paz exige a redução dos armamentos nacionais ao mínimo compatível com a segurança nacional e com a execução das obrigações internacionais, por ação comum". Ao Conselho incumbe, então, preparar os planos dessa redução. sem esquecer a situação geográfica e as condições especificas de cada Estado.

Como se vê, o problema é bastante complicado. Desde alguns anos, vem a Liga cuidando desse assunto, sem haver chegado, até hoje, a nenhum resultado prático.

Ao principio, encarou-se o problema sob o aspecto exclusivamente técnico e militar. Foi a época em que se julgou possível a sua solução por meio da Comissão permanente consultiva para o estudo das questões militares, navais e aéreas, criada em Maio de 1920, em virtude do artigo 9.° do Pacto, e composta de oficias de terra e mar.

Verificou-se, logo depois, que o assunto apresentava, também, aspectos não militares. Criou-se, então, uma Comissão mista, na qual figuravam alguns membros da primeira, ao lado de políticos e economistas. Os seus resultados não corresponderam A expectativa, e a nova comissão desapareceu.

Em 1926, o Conselho da Liga convocou outra comissão, confiando-lhe a tarefa de preparar uma grande conferência internacional, para a limitação e redução dos armamentos.

Há três anos, vem se reunindo periodicamente essa comissão preparatória, sem que, até agora, tenha julgado suficiente o trabalho realizado, paria se convocar a conferência. É que, no seio da própria comissão, têm surgido pontos de vista tão divergentes, que se pode ter, de antemão, a certeza de que, por enquanto, nenhum êxito poderia resultar da projetada conferência.

Na impossibilidade em que se acha de conseguir resultados positivos, em matéria de redução de armamentos, a Liga já pensou em enveredar por outro caminho. A próprio comissão preparatória acima referida passou, em. 1927, por iniciativa da 8.a Assembléia, a ter, entre os seus órgãos auxiliares, um comitê, incumbido do estudo das questões de arbitragem e segurança.

Na espera desta e daquela, esperou a Liga, não sem alguma razão, realizar progressos apreciáveis. Parece, realmente, que a redução dos armamento» será, antes, conseqüência do que causa do estabelecimento de um regime de paz e de segurança, entre os povos.

Mais ou menos neste sentido, manifestaram-se» ainda na penúltima reunião da comissão preparatória da conferência do desarmamento, vários delegados a mesma comissão.

Assim, por exemplo, o Sr. Gibson, dos Estados Unidos da América, disse: "A confiança na solução pacifica dos conflitos reduziria automaticamente os armamentos. A recíproca, contudo, não é verdadeira".

O Sr. Hennings, da Suécia, declarou: "Os armamentos não são o único perigo que ameaça a paz; ainda num universo completamente desarmado, graves conflitos poderiam surgir, e surgiriam certamente. As nações não se desarmariam sem estar seguras de que os conflitos internacionais seriam submetidos a um tribunal imparcial, cuja sentença fosse escrupulosamente observada".

O Sr. Sato, do Japão, afirmou: "O desarmamento é uma questão subjetiva; o simples fato de um país se desembaraçar de suas armas, em vez de criar um sentimento de segurança poderia até chegar a produzir o efeito contrário".

Por outro lado, como assinalou o General de Marinis, da Itália, o desarmamento não resolveria o problema da paz e da segurança, porque certos países, em razão de sua riqueza, de sua organização industrial e de sua população, poderiam reconstituir seus armamentos mais rapidamente do que outros e, por conseguinte, ameaçar a segurança dos últimos.

Não se pôde dizer que não tenham sido auspiciosos os resultados do comitê de arbitragem e segurança. Os seus trabalhos consubstanciaram-se em alguns textos, adotados pela 9.a Assembléia e constantes: 1.°) de um Ato geral para a solução pacifica dos litígios, no qual foram englobados os projetos de tratados gerais elaborados pelo comitê e relativos á arbitragem, solução judiciária e conciliação; 2.°) de modelos de tratados coletivos de assistência e de não-agressão, bem como de tratados bilaterais de conciliação, arbitragem, solução judiciária e não-agressão. O Ato geral foi aberto á assinatura de todos os Estados membros da Liga e de alguns, como o Brasil, que a ela não pertencem. Os modelos de tratados foram fornecidos aos países de boa vontade, que, dos mesmos, se queiram aproveitar.

Esse Ato geral tem o defeito de ser um tratado coletivo. Em tal matéria, os (atos coletivos dificilmente recolhem ratificações: o exemplo do Protocolo de Genebra é expressivo.

O fato é que a arbitragem constitui ato de confiança e não se pode exigir que uma nação tenha em muitas a confiança que deposita numa ou noutra, ou em varias delas. Pensamos, por isto, que a arbitragem caminhará mais depressa, por mais paradoxal que isto pareça, por meio de tratados bilaterais do que por um ato coletivo.

Bastarão, entretanto, alguns modelos de tratados simples de arbitragem e conciliação ou a abertura de um tratado geral á assinatura de todas as potências para que o problema da paz tenha dado um passo decisivo no caminho da sua solução ? Ninguém terá a ingenuidade de o supor. Não resta dúvida, porém, de que, na engrenagem mundial de interesses múltiplos divergentes, a segurança é elemento indispensável da paz; e o desarmamento só por si não produzirá o almejado resultado, se, concomitantemente, não existir a confiança mútua. Ora, só a arbitragem e os demais métodos de solução pacifica dos litígios podem fornecer uma base sólida para tal confiança.

Qual a dificuldade essencial, entretanto, para a aceitação da arbitragem obrigatória e generalizada? O verdadeiro obstáculo" — disseram os mestres internacionalistas Srs. E. Borel e N. Pontis, em relatório apresentado não faz muito ao Instituto de direito internacional — "o verdadeiro obstáculo reside muito menos no direito do que na mentalidade dos Governos, em sua repugnância em abandonar o terreno da soberania intangível do Estado e em aceitar o principio da solução judiciária dos litígios internacionais com as incertezas e os riscos que a sua aplicação comporta".

Com a adoção dos resultados do seu comitê de arbitragem e segurança, a Liga não deu por finda a sua tarefa. E voltou novamente as suas vistas para a questão que, seguramente, mais impressiona a atenção de todos os povos, no momento atual, isto é, a questão dos armamentos.

De Abril a Maio do corrente ano, esteve reunida em Genebra, pela sexta vez, a comissão preparatória da conferência do desarmamento. Para não haver equívocos, convém esclarecer que, apesar do titulo, a projetada conferência, segundo foi resolvido há muito tempo, não terá em vista, propriamente, o desarmamento, mas apenas — o que já será muito — a redução e a limitação dos armamentos.

O trabalho realizado nessa reunião deu lugar ás mais fundadas esperanças. Graças á boa vontade do Governo americano, revelada nas instruções de que foi portador o seu delegado naquela comissão, tornou-se possível o acordo da grande maioria da mesma sobre certos pontos de importância capital.

Um desses pontos dizia respeito aos armamentos navais. A defesa dos Estados Unidos, disse o Sr. Gibson, delegado americano, constitui essencialmente um problema naval. Apesar disto, o seu Governo estava disposto a facilitar um acordo geral, a tal respeito. Assim é que, embora acreditasse que o método mais prático, com relação á redução dos referidos armamentos, fosse a limitação da tonelagem por categorias, consagrado, aliás, no tratado de Washington, — o Governo americano aceitaria, como base de discussão, uma proposta francesa, que procurava combinar o método da limitação da tonelagem global com o da limitação da tonelagem por categorias.

A declaração americano, nesse sentido, causou tal efeito que o delegado britânico, Lord Cushendun, imediatamente se levantou para afirmar que ela fora tão importante e teria tal alcance, no tocante a todas as questões navais, que atingiria profundamente todo o trabalho da comissão.

Outro ponto importante, para a solução do qual a boa vontade americana trouxe valioso auxilio, foi o das reservas instruídas. A delegação francesa, por motivos facilmente compreensíveis, sempre sustentara que a salvaguarda dos princípios vitais sobre que se baseava ia defesa nacional não permitia ao Governo francês concordar em que as reservas instruídas fossem incluídas no sistema de limitações a ser estabelecido. Sustentavam pontos de vista análogos, as delegações italiana e japonesa. Outra tinha sido, desde o começo, a atitude da delegação americana. Na reunião a que nos referimos, porém, o Sr. Gibson fez a sensacional declaração de que o Governo americano, preocupado com a necessidade de se acordar num texto comum, estava "disposto a aderir á opinião da maioria dos países cujo principal interesse militar reside nas forças terrestres e a aceitar a sua tese, em matéria de reservas instruídas."

Essa declaração impressionou tão fortemente que varias delegações, intransigentes nessa questão de efetivos e opostas até á exclusão da limitação das reservas instruídas, imediatamente se mostraram dispostas a fazer concessões, no mesmo sentido. A delegação inglesa, que estava nesse caso, foi adiante. Com efeito, Lord Cushendun não hesitou em afirmar que, depois de maduras reflexões, chegara á conclusão de que "a interdição das reservas instruídas é um sistema que se não pode combinar com o da conscrição".

Na questão da limitação do material de guerra, a intervenção americana também foi auspiciosa. Havia duas teses em presença: uma, previa a limitação direta do material pela fixação do máximo do numero de peças de cada categoria; a outra, previa a limitação indireta, pela fixação do máximo das despesas consagradas á manutenção, compra e fabricação do material.

A delegação americana propôs, como medida de conciliação, um terceiro método, que obteve assentamento quase unânime e segundo o qual a limitação e redução do material de guerra deverão basear-se num sistema de ampla publicidade das despesas.

Parecia que a comissão preparatória dera um grande passo á frente, na organização dessa conferência, em que já muita gente descrê. Infelizmente, aqueles resultados não foram definitivos. A prova acabamos de tê-la, na recente reunião da Assembléia da Liga das Nações. Por iniciativa de Lord Cecil, delegado britânico, foi reposta em comissão uma das questões sobre a qual mais difícil fora o acordo nu seio da comissão preparatória. Referimo-nos á das reservas instruídas. O representante da Grã-bretanha desfez o compromisso assumido poucos meses antes por outro representante britânico. É verdade que, agora, Lord Cecil falou em nome do Governo trabalhista, ao passo que Lord Cusnendun era delegado de um Governo conservador. Nem por isto deixou de ser acentuada a contradição de atitudes entre dois representantes, igualmente autorizados, de um grande país.

Tem-se a impressão, mais uma vez, de que a solução do problema da paz muito longe estará, se for procurada apenas nas conferências de limitação e redução de armamentos.

A conferência naval de Washington, em 1921- 1922, chegou a resultados que se poderão talvez considerar excelentes, do ponto de vista orçamentário das nações que nela participaram. Não garantiu, porém, essas nações contra a eventualidade de uma guerra.

O novo acordo naval que dizem em vésperas de realização, encabeçado pela Inglaterra e os Estados Unidos, poderá ter efeitos idênticos aos daquela conferência.

O problema, porém, é muito mais complexo. E, no mundo, já se vai impondo a convicção de que a sua solução depende muito mais das torças morais do que das simples tentativas técnicas de redução dos armamentos.

Na própria sessão da comissão preparatória a que nos referimos, o delegado americano disse, com muita sensatez, estas palavras: "O meu Governo nunca acreditou que se pudesse abordar utilmente o problema do desarmamento, recorrendo-se apenas aos métodos de redução dos armamentos. Ele considera que o desarmamento verdadeiro está subordinado a uma mudança de atitude, no que toca ao emprego da força na solução das controvérsias internacionais".

Esse, realmente, o pensamento que deve guiar os povos, nas suas aspirações pacifistas. Todas as nossas esperanças se voltam pana a vitória de uma nova mentalidade, que considere odiosas as guerras e torne desnecessário o recurso a esse meio extremo, pela organização de um sistema eficaz de justiça internacional.

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Fonte:
Revista "Movimento Brasileiro": revista de crítica e informação, ano 1, n. 11, nov. 1929, disponível digitalmente no site biblioteca: Brasiliana - USP

Nota:
Para melhor compreensão do texto, a ortografia utilizada foi atualizada para os padrões atuais.

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