Machado de Assis e a crítica ao Naturalismo



A crítica ao Naturalismo

Se, quanto à temática, a identidade nacional dominava o cenário da crítica, quanto à forma, o caráter descritivo de algumas obras também já está desgastado, como nota Machado:

Há boas páginas, como digo, e creio até que um grande amor a este recurso
da descrição, excelente, sem dúvida, mas (como dizem os mestres) de mediano efeito, se não avultam no escritor outras qualidades essenciais. Pelo que respeita à análise de paixões e caracteres são muito menos comuns os exemplos que podem satisfazer à crítica; alguns há, porém, de merecimento incontestável. Esta é, na verdade, uma das partes mais difíceis do romance, e ao mesmo tempo das mais superiores. Naturalmente exige da parte do escritor dotes não vulgares de observação, que, ainda em literaturas mais adiantadas, não andam a rodo nem são a partilha do maior número.

Podemos, a partir dessas considerações do autor, antever as transformações que gradualmente se impõem à sua obra, pois ainda estamos em 1873: o primeiro romance, Ressurreição, fora publicado há pouco e estamos no ano da publicação do segundo volume de contos, Histórias da meia-noite. A atividade crítica ajuda o autor a delinear de forma cada vez mais precisa o projeto estético-literário que pretende realizar.

Em texto de 1879, o tema das escolas literárias está na ordem do dia. Ao falar da nova geração de escritores, Machado questiona se isso significaria também o surgimento de uma nova estética. Estamos em plena fase de transição entre a decadência do Romantismo e a ascensão do que Machado chama de Realismo e a que chamaremos Naturalismo. Não renegar a fonte em que bebeu e não se deslumbrar com o novo é mais um princípio que o autor deixa claro como parte de seu credo de escritor: “nem tudo tinham os antigos, nem tudo têm os modernos; com os haveres de uns e outros é que se enriquece o pecúlio comum”, proclama.

Mas os excessos do Naturalismo provocam Machado a se posicionar novamente. É na análise de O primo Basílio que o autor radicaliza sua crítica à forma explícita da nova escola. A boa recepção de O crime do Padre Amaro Machado atribui à força da novidade:

Era realismo implacável, conseqüente, lógico, levado à puerilidade e à obscuridade [...]. Não se conhecia no nosso idioma aquela reprodução fotográfica e servil das coisas mínimas e ignóbeis [...]. Se, por vezes, o Sr. Eça de Queirós esquecia por minutos as preocupações da escola; e, ainda nos quadros que lhe destoavam, achou mais de um rasgo feliz, mais de uma expressão verdadeira; a maioria, porém, atirou-se ao inventário.

Quanto ao estilo de O primo Basílio, Machado considera-o simplesmente pura imitação de Zola e lamenta a instauração de uma estética “que não esquece nada, e não oculta nada [...]. Porque a nova poética é isto, e só chegará à perfeição no dia em que nos disser o número exato dos fios de que se compõe um lenço de cambraia ou um esfregão de cozinha”.
É interessante como a posição de Machado quanto à descrição e ao Naturalismo antecipa as ideias expressas por Lukács em seu ensaio Narrar ou descrever?, de 1936. Até o uso do termo “inventário” para caracterizar o estilo naturalista coincide em ambas as traduções.

O texto de Lukács trata das diferenças de estilo entre o modo de contar de Zola e o de Tolstoi. O autor usou um critério temático para escolher os textos a serem analisados: tanto em Naná quanto em Ana Karenina, há trechos em que acontece uma corrida de cavalos. Sobre o modo de contar essa passagem em ambas as obras, é que Lukács constrói sua análise:

Em Zola, a corrida é descrita do ponto de vista do espectador; em Tolstoi, é narrada do ponto de vista do participante [...] A descrição de Zola é uma pequena monografia sobre a moderna corrida de trote, que vem acompanhada em todas as suas fases, desde a preparação dos cavalos até a passagem pela linha de chegada com a mesma insistência [...] A corrida de cavalos de Ana Karenina é o ponto crucial de um grande drama. [...] Todas as relações entre os principais personagens do romance entram numa fase decididamente nova, após a corrida. Esta, por conseguinte, não é um ‘quadro’ e sim uma série de cenas altamente dramáticas, que assinala uma profunda mudança no entrecho. [...] E será que é o caráter completo de uma descrição que torna alguma coisa artisticamente necessária? Ou não será, antes, a relação necessária dos personagens com as coisas e com os acontecimentos – nos quais se realiza o destino deles, e através dos quais eles atuam e se debatem?

A pergunta de Lukács já revela sua posição quanto ao tipo de descrição usada por Zola, à qual atribui o “caráter de inventário”.

O contraste entre participar e o observar não é casual, pois deriva da posição de princípio assumida pelo escritor em face da vida, em face dos grandes problemas da sociedade, e não do mero emprego de um diverso método de representar determinado conteúdo ou parte de conteúdo [...]. Todo novo estilo surge como uma necessidade histórico-social da vida e é um produto necessário da evolução social [...]. A alternativa participar ou observar corresponde, então, a duas posições socialmente necessárias, assumidas pelos escritores em dois sucessivos períodos do capitalismo. A alternativa narrar ou descrever corresponde aos dois métodos fundamentais de representação próprios destes períodos.

A migração da observação para a participação que a transição do descrever ao narrar implica, de acordo com Lukács, revela-se gradualmente na obra de Machado mediante o fortalecimento da figura do narrador. À medida que este ganha espaço, o texto também conquista autonomia e concisão. A ambiguidade, como um espaço reservado à inteligência e à imaginação do leitor, aparece como uma das respostas aos excessos das descrições naturalistas. Voltaremos a esse assunto mais adiante, quando abordarmos o conto.

Para Luís Augusto Fischer
, foi a consciência da crise de representação que levou Machado a buscar uma estética própria, singular, uma vez que a forma romântica já esgotada não dava conta da complexidade da realidade e o Naturalismo caía no extremo oposto, sacrificando a “realidade estética”, como Machado já apontava no Instinto de nacionalidade.

Podemos, então, principalmente a partir do discurso crítico de Machado, concluir que, desde antes de começar sua produção em prosa de ficção, o autor já cultivava uma reflexão sobre a literatura brasileira e sobre o papel dos novos autores. Com a atividade crítica aliada à obra de ficção, Machado foi configurando com mais nitidez os pressupostos que embasariam seu projeto estético-literário. Por um lado, este apontava para filiar-se a uma tradição literária – sem território e época definidos – e, por outro, superá-la, pela subversão formal ou temática de suas regras, sem, no entanto, deixar de tratar das idiossincrasias do Brasil. Um dos autores a destacar com mais clareza a presença desse projeto na produção machadiana é Enylton de Sá Rego. Em seu estudo sobre a influência da sátira menipeia
66 – ou tradição luciânica, como prefere –, o autor demonstra como as várias características da obra machadiana (da fase madura) estavam presentes em seu discurso crítico desde o início. Sá Rego reitera a qualificação de Machado como um escritor consciente, feita por Candido.

Quais seriam, então, as linhas mestras, os princípios norteadores do projeto estético- literário machadiano? Listaremos a seguir algumas delas, a partir do que discutimos até este ponto:

a) unir gêneros literários “altos” e “baixos”; usar sistematicamente a paródia e a liberdade de imaginação (não se limitando às exigências da verossimilhança); estatuto ambíguo e não-moralizante, com a coexistência do trágico e do cômico (sem a preponderância de um sobre o outro); e adotar ponto de vista distanciado “como um espectador desapaixonado que analisa não só o mundo a que se refere, como também a sua própria obra literária, a sua própria visão de mundo”, todas características apontadas por Sá Rego como parte da adoção da tradição luciânica:
b) buscar a independência e a emancipação literária, sem a obrigação de se fixar na cor local;
c) estar atualizado sobre “os problemas do dia e do século, as crises filosóficas e sociais”;
d) não conjugar “o ideal poético e o ideal político”, fazendo de ambos “um só intuito”;
e) conhecer os clássicos: não desprezar os movimentos literários passados, nem aderir totalmente aos novos; manter a postura crítica; não desprezar as contribuições que ambos podem dar ao “pecúlio comum”, seguindo princípio dialético entre tradição e inovação;
f) produzir e incentivar a produção dos gêneros ainda inexistentes na literatura brasileira de então; e
g) evitar dizer tudo: deixar espaço para a imaginação do leitor.

Para atender a esses princípios, Machado teve que afastar, cada vez mais, seu modo de escrever do ideal apregoado pelos críticos brasileiros de então. Para seu principal crítico, Sílvio Romero – incapaz de entender a forma de escrever do autor como uma opção –, sempre na expectativa de um estilo regular que satisfizesse seus ideais, só restava acreditar que Machado não dispunha “profusamente do vocabulário e da frase” e atribuir isso a sua “índole psicológica indecisa”, ou, pior, a uma “lacuna nos órgãos da palavra”: “vê-se que ele apalpa e tropeça [...]. Realmente, Machado de Assis repisa, repete, torce, retorce tanto suas ideias e as palavras que as vestem, que nos deixa a impressão de um perpétuo tartamudear".

O caráter fragmentário adotado por Machado também faz parte de seu projeto e antecipa uma marca de modernidade que estaria presente no estilo de grandes autores do século XX. Conhecendo bem a crítica de sua época, Machado insinua sua técnica, nas palavras de Brás Cubas, continuando o jogo de enganar seus contemporâneos:

Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narração direita e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem...

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Fonte:
Deise J. T. de Freitas: "A composição do estilo do contista Machado de Assis". (Tese apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina como requisito para a obtenção do título de Doutora em Literatura. Orientador: Prof. Dr. Alckmar Luiz dos Santos). Florianópolis, 2007.

Nota
:
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As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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