Machado de Assis e a Tradição Alemã



MACHADO DE ASSIS E A TRADIÇÃO ALEMÃ

“O presente estudo sobre a formação do indivíduo nos contos de Machado de Assis, sob a perspectiva da análise dos discursos proposta por Mikhail Bakhtin (1895-1975), tem a intenção de contribuir para um aspecto da obra machadiana até o momento pouco explorado por seus pesquisadores: as possíveis situações de diálogo em que podem ser colocadas as narrativas do Bruxo do Cosme Velho com as dos autores da tradição alemã.

Na década de 70, A. Fonseca Pimentel publicou, pela Livraria São José, os resultados de sua pesquisa sobre a influência alemã nos escritos machadianos antes e depois de 1883, ano em que Machado começou a aprender o idioma alemão. Embora não fosse escopo de seu trabalho identificar os efeitos de sentido que poderiam ser suscitados a partir das constantes referências do autor brasileiro a escritores, cientistas e pensadores da cultura germânica, é necessário reconhecer a importância de tal levantamento, ainda que incompleto, para o desdobramento de novas pesquisas sobre o tema, as quais poderão auxiliar, cada uma à sua maneira, na composição do mosaico de significações que surgem a partir desse fecundo intercâmbio.

O levantamento iniciado por Jean-Michel Massa na década de 60, bem como a pesquisa de Glória Vianna iniciada ao final dos anos 90 sobre os volumes pertencentes à biblioteca pessoal de Machado de Assis podem também nos fornecer valiosos subsídios para o desenvolvimento desta pesquisa. Publicado na antologia organizada por José Luís Jobim, A Biblioteca de Machado de Assis, o texto de Glória Vianna, “Revendo a biblioteca de Machado de Assis”, aponta que, num total de 507 volumes escritos em idioma original, 27 apenas pertenciam à língua alemã (4,04%), número pouco expressivo, se comparado com a quantidade de livros em francês (237 volumes). Não é ignorado o fato de que Machado conhecia perfeitamente esse idioma e era também leitor fluente na língua inglesa. O autor só começou a aprender alemão por volta dos seus 45 anos. Isto já explica muito. Já entre os 167 volumes traduzidos, verificamos ao todo 38 traduções do alemão (22,75%), sendo apenas duas para o português e as outras 36 para idioma francês. Somente as traduções do inglês (para o português e o francês) são mais recorrentes que as do alemão, representando cerca de 35% dos volumes traduzidos (VIANA, 2001, p. 124-5).

Mas isto são apenas números, que indicam as preferências do Machado leitor, mas que não podem ser analisados isoladamente. Faz-se importante, ainda, observar quais autores alemães foram lidos por Machado de Assis, ou pelo menos aqueles que puderam ser identificados em seu acervo. Segundo o levantamento de Jean-Michel Massa, J. W. Goethe e Heinrich Heine representam a maioria entre os originais no idioma alemão; há, ainda, um volume de Schiller e dois tomos do epistolário de Wilhelm von Humboldt, o que nos leva a identificar a primazia dos clássicos alemães em sua biblioteca (clássicos, aqui, como referência aos autores e intelectuais do Classicismo alemão). Essa preferência pelos escritores de Weimar também se verifica ao analisarmos o rol dos volumes traduzidos do alemão para o francês: no campo da literatura, Schiller e Goethe são maioria absoluta — importante destacar que, entre as traduções do autor de Fausto, encontra-se na biblioteca de Machado Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. Já no campo da filosofia, Schopenhauer é (sem causar espanto) o mais freqüente, seguido de Hartmann; há também ali dois tomos da Estética de Hegel (MASSA, 2001, p. 34-90).

Bem, o censo das obras representantes da cultura germânica na coleção de Machado de Assis já nos fornece muitos indícios de que o autor das Memórias Póstumas de Brás Cubas conhecia o pensamento de Goethe e seus contemporâneos (como Schiller, Humboldt e o próprio Schopenhauer). Deduz-se daí que o conceito de Bildung (formação), tal como era entendido pelos alemães, não fosse ignorado por Machado. Mas isto será algo que poderá ser verificado com maior acuidade a partir das análises dos contos que empreenderemos mais adiante.

Eloá Heise, renomada estudiosa da literatura alemã, direcionou seu olhar mais especificamente para as relações que podem ser identificadas entre J. W. Goethe e Machado de Assis. Heise afirma que os dois autores podem ser colocados sob o “signo da classicidade”, isto é, ambos, ainda que pertencentes a épocas e culturas distintas, vão além do conflito individual de seus personagens e levantam discussões acerca de temas relacionados ao que é essencialmente humano (HEISE, 2004, p. 53). Conforme o pensamento da pesquisadora, Machado e Goethe seriam clássicos não por seguirem os ideais da Antigüidade, mas por repercutirem até os dias atuais (HEISE, 2004, p. 53).

Apontando as referências ao Fausto de Goethe em diversos textos machadianos, Heise demonstra como Assis se apropria dos elementos da obra alemã, colocando em evidência sua própria realidade a partir do confronto com a tradição e, ao mesmo tempo, reavivando essa tradição. “Rendendo homenagem ao texto que elege para inserir em seu próprio trabalho, o autor brasileiro, paralelamente, o coloca em xeque, na medida em que o transgride” (HEISE, 2004, p. 48). Essa relação do autor com a cultura estrangeira torna-o mais consciente de sua própria identidade, enriquecendo com isso a maneira como elabora os temas nacionais em sua obra, sem deixar que eles correspondam a uma simples reprodução dos costumes locais. Ocorre aí, conforme as palavras de Heise, “um olhar de volta para si, enriquecido pelo contato com o outro” (HEISE, 2004, p. 52).

É esse olhar enriquecido pelo contato com a tradição alemã que tentarei captar nos contos de Machado de Assis selecionados para este trabalho, analisando, num primeiro momento, os discursos que se entrecruzam nessas narrativas acerca da formação do indivíduo. Posteriormente, procurarei identificar de que formas Machado reelabora em sua obra essa influência estrangeira, notadamente aqui mais direcionada à questão da Bildung, tal como foi concebida na cultura alemã pós-iluminista, utilizando-se do humor, da ironia e da ambigüidade tão característicos de sua escrita, para expor aos olhos do leitor a forma como eram vistos o aprendizado, a educação e a erudição em nossa sociedade."

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Fonte:
AMANDA DO PRADO RIBEIRO: "A REPRESENTAÇÃO DA FORMAÇÃO DO INDIVÍDUO NA LITERATURA: Uma análise dos discursos sobre o aprendizado nos contos de Machado de Assis". (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu — Mestrado em Letras, subárea de Literatura Brasileira e Teorias da Literatura, da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do Grau de Mestre. Área de concentração: Estudos da Literatura. Orientador: PROF. DR. LUIS FILIPE RIBEIRO). Niterói, 2008.

Nota
:
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As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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