Alguns conceitos presentes na Poética: Mimesis

Alguns conceitos presentes na Poética

Mimesis

“Na Poética I 1447a13-16, após breve parágrafo introdutório, Aristóteles introduz a noção de µίµεσις:

A epopéia, a tragédia, assim como a poesia ditirâmbica e a maior parte da aulética e da citarística, todas são, em geral, imitações. Diferem, porém, umas das outras, por três aspectos: ou porque imitam por meios diversos, ou porque imitam objetos diversos, ou porque imitam por modos diversos e não da mesma maneira.

No entanto, Aristóteles não nos oferece nenhuma definição de mimesis na Poética, nem tampouco em qualquer outra de suas obras. Embora a palavra mimesis seja normalmente traduzida como “imitação”, alguns tradutores optam pelo termo “representação” e, em determinados casos, mantêm o vocábulo original grego. A tradução de mimesis por imitação é considerada por tradutores, como Roselyne Dupont-Roc e Jean Lallot, uma tradução imprecisa, visto que remeteria à idéia de imitação, de cópia. Segundo Dupont-Roc e Lallot, a palavra representação guarda em si o aspecto de criatividade do poeta, enquanto que a palavra imitação indicaria tão somente a identidade com o que foi tomado como modelo do real, sem indicar o aspecto de criação envolvido.

Para Paul Woodruff, o termo representação, pelo seu vasto uso na filosofia moderna, apresenta tantas difuldades quanto o termo imitação:

O conceito de representação apresenta o mesmo grau de complexidade para a filosofia moderna que a noção de mimesis para o pensamento clássico, e ao optarmos por tal tradução não obteremos vantagem alguma em termos de clareza conceitual.

Por outro lado, tradutores como Stephen Halliwell optam por manter a palavra original grega, argumentando que somente ela abarca toda a variedade de sentidos que a palavra possui.

Segundo Jonathan Barnes, com o intuito de solucionar a falta de uma definição por parte de Aristóteles, vários comentadores afirmam que tal lacuna deve-se ao fato da palavra mimesis ser de uso corrente na Academia de Platão, sendo o termo, portanto, compreendido pelos ouvintes da época.

Assim, não obstante a ausência de uma definição como vimos acima, a mimesis surge na Poética como um processo que envolve o uso de diferentes formas de arte através de diferentes meios de representação, diferentes níveis de comportamento moral e ético como objetos da representação artística, assim como diferentes modos de comunicar a representação para uma audiência. Por conseguinte, algumas artes usam palavras, ritmo e harmonia; outras, cores e formas; algumas artes requerem palco e atores para a apresentação e outras somente um narrador; e algumas representam personagens e ações nobres, outras, vis. Em 1448b4-8, Aristóteles afirma que “o imitar é congênito no homem” e complementa que “nisso difere dos outros viventes, pois, de todos, é ele o mais imitador, e, por imitação, apreende as primeiras noções”. Todas as formas de mimesis possuem uma origem comum no desejo de conhecer do homem, um modo comum de satisfazer este desejo através da percepção dos princípios universais inerentes nos aspectos particulares de cada obra de arte. Elas fornecem um prazer universal: o prazer intelectual que consiste em aprendizado e inferência (µανθάνειν κὰι συλλογίζεσθαι), que é, segundo o filósofo, o maior prazer humano. Na primeira sentença da Metafísica A 980a21, Aristóteles afirma que “todos os homens, por natureza, tendem ao saber”: os seres humanos compartilham com os animais a capacidade da sensação, mas somente alguns deles possuem a faculdade da memória, o que permite o armazenamento da experiência e, assim, fornece a base para a aprendizagem. Em De Anima, Aristóteles nos diz que as faculdades que nos capacitam a conhecer são a percepção (αίσθεσις), a memória (µνήµη) e a experiência (εµπειρία). A percepção subsiste em todos os animais, enquanto que a memória e a experiência são exclusividade dos seres humanos. Somente os seres humanos possuem a aptidão para as mais altas formas de atividades intelectuais: a arte e o raciocínio (τήχνη κὰι λογισµοίς). A techne (τήχνη) é diferente da experiência, pois ela refere-se aos universais e a experiência aos particulares:

Ora, enquanto os outros animais vivem com imagens sensíveis e com recordações, e pouco participam da experiência, o gênero humano também vive da arte e de raciocínios. Nos homens, a experiência deriva da memória. De fato, muitas recordações do mesmo objeto chegam a constituir uma experiência única. A experiência parece um pouco semelhante à ciência e à arte. Com efeito, os homens adquirem ciência e arte por meio da experiência. A experiência, como diz Polo, produz a arte, enquanto a inexperiência produz o puro acaso. A arte se produz quando, de muitas observações da experiência, forma-se um juízo geral e único passível de ser referido a todos os casos semelhantes.

A techne visa a causa, que deve ser entendida aqui como a base de algo, e não no sentido moderno de um evento antecedente que produz um efeito; já a experiência visa os fatos.

Originalmente, a palavra techne significava trabalhar a madeira, indicando a “técnica”, a “arte” do artesão ou de qualquer outro artífice. Mais tarde, em Homero, passou a se relacionar às atividades que exigem o conhecimento de certos princípios racionais, como aqueles que possui o navegador para o navegar; passando, depois, a significar a habilidade do cantor e do adivinho. A techne se ocupa dos entes contingentes e daquilo que pode ser produzido pelo homem. O que é gerado por si é do âmbito da physis (φύσις) e dos seres naturais que têm o princípio de movimento e mudança em si mesmos, diferentemente da techne cujo princípio de movimento e mudança está naquele que produz, no artífice e não em seu produto. Na Física, Aristóteles afirma que a physis é a força criativa e produtiva presente no mundo e nos seres vivos, onde a sua relação com a techne é uma relação de mimesis. No entanto, a techne não é uma mera cópia da natureza, mas o homem, através de seu intelecto e agindo de forma semelhante à força produtiva e criadora da physis, cria artefatos, obras de arte, música, poesia, etc. Através da mimesis a techne torna possível o que a physis não foi capaz de realizar. No caso do bem estar físico do ser humano, por exemplo, a physis procura manter o indivíduo são, mas quando isso não é possível, a medicina (um exemplo de techne) intervém para conseguir o mesmo objetivo almejado pela physis: a saúde.

Na época de Aristóteles, a techne significava dar forma a uma matéria; era a capacidade humana de fazer algo de forma racional; e era devido à techne que a produção de algo tornava-se possível, sendo a techne, nesse sentido, sinônimo de poiesis, pois a produção de algo pressupõe essa capacidade intelectual que é a techne e esta por sua vez, implica no resultado dessa produção. A poiesis deriva do termo poiein (ποιηίν) que significa fazer, fabricar, construir, referindo-se, portanto ao fazer humano, isto é, à produção concreta. O termo é usado tanto para a fabricação de obras manuais (uma casa, móveis, navios, etc.), quanto para obras de arte (escultura, pintura, poemas, etc.). A palavra poietike (ποιητική) pode referir-se à composição poética e também ao estudo dos resultados desta arte, e o termo poiesis indica tanto o processo de composição, como também o produto propriamente dito. Na Poética, a produção (ποίησις) está ligada à techne, visto que, para existir depende de uma fonte externa: o artesão. É através do artesão que algo que não existe na physis passa a existir. Em seu tratado, Aristóteles relaciona a techne e a poiesis à mimesis, sendo que ambas aparecem no início da obra:

Falemos da poesia, - dela mesma e das suas espécies, da efetividade de cada uma delas, da composição que se deve dar aos mitos, se quisermos que o poema resulte perfeito e, ainda, de quantos e quais os elementos de cada espécie e, semelhantemente, de tudo quanto pertence a esta indagação, - começando, como é natural, pelas coisas primeiras.

Segundo Golden, a techne para Aristóteles é um corpo de conhecimento capaz de produzir julgamentos universalmente aplicáveis, sendo desta forma significativamente superior à mera experiência que diz respeito aos particulares. E isto sucede porque aqueles que dominam uma arte possuem um entendimento das causas dos acontecimentos, enquanto aqueles que agem meramente a partir da experiência conhecem somente o acontecimento, mas não a causa. A mimesis poética precisa almejar o conhecimento que surge do entendimento das causas universais das ações humanas - quer seja trágico ou cômico - que a poesia representa para nós. A poesia é uma arte que revela causas universais da ação humana e assim provoca em nós um prazer intelectual. O êxito fundamental da mimesis cômica e trágica, bem como de todas as mimesis em geral, deve ser julgado pela eficácia em criar experiência de aprendizagem.

Na Poética XIV 1453b10-14, Aristóteles argumenta não ser necessário “extrair toda a espécie de prazeres, mas tão-só o que lhe é próprio”, pois “o poeta deve procurar apenas o prazer inerente à piedade e ao terror, provocados pela imitação”. O prazer provocado pela mimesis é, segundo Golden, o prazer intelectual. Esta ênfase no prazer intelectual da mimesis é também encontrado na Retórica 1371b4-10:

E, como aprender e admirar é agradável, necessário é também que o sejam as coisas que possuem estas qualidades; por exemplo, as imitações, como as da pintura, da escultura, da poesia, e em geral todas as boas imitações, mesmo que o original não seja em si mesmo agradável; pois não é o objeto retratado que causa prazer, mas o raciocínio de que ambos são idênticos, de sorte que o resultado é que aprendemos alguma coisa.

Compreender a estética de Aristóteles é identificar esta ênfase ambígua no prazer intelectual precípuo e propósito último da representação artística – o prazer em aprender e inferir, o qual é evocado pela estrutura mimética das obras de arte. A tragédia, assim como todas as formas de mimesis artística, não nos dão prazer por causa do assunto que representam, mas por causa de sua natureza como mimesis. Aristóteles reforça este ponto na Poética IX 1451b5-10, onde diz:

Por isso a poesia é algo de mais filosófico e mais sério do que a história, pois refere aquela principalmente ao universal, e esta ao particular. Por “referir-se ao universal” entendo eu atribuir a um indivíduo de determinada natureza pensamentos e ações que, por liame de necessidade e verossimilhança, convêm a tal natureza; e ao universal, assim entendido, visa a poesia, ainda que dê nomes aos seus personagens; particular, pelo contrário, é o que fez Alcibíades ou o que lhe aconteceu.

Para Aristóteles, a mimesis é a representação da ação humana dentro de uma estrutura que permita nos mover do particular ao universal e, assim, alcançar uma compreensão mais profunda da natureza e do significado da ação humana. Assim, o critério estabelecido por Aristóteles para cada um dos componentes da mimesis está diretamente relacionado à fruição do prazer intelectual, que é a finalidade de toda mimesis. Na Poética V 1449b24-28, em sua definição de tragédia, Aristóteles identifica os importantes aspectos da mimesis:

É pois a tragédia imitação [mimesis] de uma ação de caráter elevado, completa e de certa extensão, em linguagem ornamentada e com as várias espécies de ornamentos distribuídas pelas diversas partes do drama, imitação que se efetua não por narrativa, mas mediante atores, e que, suscitando o terror e a piedade, tem por efeito a purificação [katharsis] dessas emoções.

O princípio de que toda poesia é uma forma de mimesis, é um princípio central para o argumento da Poética. Como vimos anteriormente, Aristóteles afirma em 1447a13-16 que a epopéia, a tragédia, a poesia ditirâmbica, bem como a aulética e a citarística, diferenciam-se entre si pelos meios, pelos objetos e pelos modos de como a mimesis se dá. Mais adiante em 1447b24-26, o filósofo afirma que “poesias há, contudo, que usam de todos os meios sobreditos; isto é, de ritmo, canto e metro, como a poesia dos ditirambos e dos nomos, a tragédia e a comédia”. Aristóteles também faz distinção entre o modo como se efetua a mimesis, distinguindo a forma narrativa usada na obra épica de Homero e a forma dramática, que envolve a representação de personagens por atores, o qual é o modo de apresentação da tragédia e da comédia. A seguir, em 1448a23-26, Aristóteles faz comparações entre os gêneros através do objeto e do modo de mimesis quando diz:

Por isso, num sentido, é a imitação de Sófocles a mesma que a de Homero, porque ambos imitam pessoas de caráter elevado; e, noutro sentido, é a mesma que a de Aristófanes, pois ambos imitam pessoas que agem e obram diretamente.

Segundo Aristóteles, a mimesis tem suas raízes na própria natureza humana, pois os seres humanos diferenciam-se essencialmente dos outros animais por serem as mais imitativas de todas as criaturas, adquirindo o primeiro aprendizado através da mimesis, sendo que todo homem sente prazer através da mesma. O ato de aprender não é aprazível somente aos filósofos, mas a todos os seres humanos, até mesmo àqueles mais limitados. Assim, o prazer essencial da mimesis deve residir no processo de clarificação intelectual de aprendizado e inferência. Visto que tanto a mimesis trágica como a mimesis cômica precisam evocar tal prazer intelectual, devem alcançar a clareza persuasiva, ou seja, precisam representar uma ação una e completa, consistindo em início, meio e fim, ligado por uma causa verossimilhante e necessária.

Na Política, ao falar do papel da música na educação dos jovens, Aristóteles acata a visão de Platão com respeito ao impacto moral da mimesis, mas nega que esta seja sua mais importante função. Para o estagirita, o papel didático da mimesis serve a um propósito secundário: na Poética, onde Aristóteles discute a natureza essencial da mimesis, ele não a trata como um instrumento para fortalecer nossa virtude ou nos atrair para o vício, nem coloca a mimesis artística em posição antagônica com a realidade; antes, a mimesis é um processo filosófico que conduz à apreensão dos universais e, assim, é uma estratégia poderosa que nos permite aprender e inferir, sendo este o prazer humano originado desta atividade intelectual.

Em Platão, o termo mimesis aparece em vários sentidos ao longo dos diálogos. É mister salientar, portanto, que a noção de Platão sobre a mimesis é muito mais abrangente e complexa do que é normalmente mostrada como, por exemplo, no livro X da República. A seguir, mostraremos algumas passagens em que a palavra mimesis surge na obra platônica.

No Político 293e, Platão afirma que há uma constituição que é verdadeiramente governada pela ciência e pela justiça e que todas as outras são imitações desta. Constituições bem governadas seriam “apenas cópias dos melhores traços desta constituição correta e, em caso contrário, por copiar-lhe os seus piores traços”. Em 297c, Platão afirma novamente que há somente uma constituição verdadeira e que todas as outras são melhores ou piores imitações. Em 300c é afirmado que as leis escritas por homens sábios são imitações da verdade, e em 300e afirma-se que se os homens tentarem imitar a verdade sem conhecimento, então eles imitarão mal, mas se eles imitam com conhecimento, então eles transcendem a imitação e chegam à verdade. Aqui, vemos que há uma constituição modelo onde todas as constituições existentes são mais ou menos cópias imperfeitas. A imitação aproximada do modelo resulta na realização de constituições bem governadas.

No Timeu 49a, temos uma descrição do universo que consiste de um modelo que é inteligível e imutável e uma cópia deste modelo que é visível e sujeito à mudança. A questão é levantada novamente em 50c, onde as formas de coisas mutáveis são descritas como cópias da substância eterna. Em 28b-29d, o universo visível é visto como uma cópia de um universo eterno, sendo nosso conhecimento da realidade última limitado pelas condições da existência humana. Aqui vemos que, embora a apreensão da realidade última seja nosso objetivo, as limitações da existência humana freqüentemente nos forçam a lidar com imitações desta realidade. O método apropriado para lidar com essas imitações pode nos conduzir em direção a uma compreensão da realidade última. Em 28a-b, é afirmado que quando o artista ao trabalhar em sua obra tem como modelo o inteligível e o imutável, a cópia resultante é bela, mas quando o artista tem como modelo aquilo que é mutável, sujeito ao nascimento, não produzirá nada de belo. Assim, no Timeu, todo o mundo sensível mutável em que vivemos é uma cópia do mundo inteligível, imutável, que pode ser apreendido somente através da razão.

No Crátilo 423c-424b, os nomes são imitações da natureza essencial das coisas e em 426c-427d as letras possuem a capacidade de representar as qualidades reais das coisas das quais elas são nomes. Platão justifica este fenômeno indicando que letras individuais são semelhantes às qualidades das coisas em si, sendo, portanto, imagens apropriadas das mesmas. Em 431c-d, Platão afirma que a diferença entre um nome bom e outro ruim é que o bom nome, ao revelar a essência da coisa nomeada, é uma boa imagem desta, ao passo que um nome ruim é uma imagem ruim desta. Visto que um nome é uma imitação da coisa nomeada, é claro que um bom nome, ao conter as letras apropriadas, está apto a revelar a natureza essencial da coisa em si. Esta questão é levantada novamente nas Leis II 668a-b, onde o objetivo da imitação é ser semelhante ao original e não ser agradável, como muitos poderiam crer. A imitação, em virtude da semelhança com o seu modelo, permite-nos aprender através dela sobre o objeto em si. No livro VII 798d-e, é dito que o ritmo e a música são imitações do caráter de um homem bom ou mau, e assim nos oferecem uma oportunidade de compreender tal caráter. Nas Leis VII 816b-817e, a aprovação é dada para a participação de cidadãos somente na mimesis que obriga à disciplina moral. Este trabalho, no entanto, admite a presença na mimesis cômica da fealdade física e intelectual, mas somente para um propósito estritamente moralista e didático: a necessidade de aprender a natureza nobre através da natureza oposta, o ridículo. Contudo, a nenhum cidadão será permitido participar da mimesis cômica, com receio de que ele se torne como aquilo que imita. A representação da comédia será incumbida a homens inferiores, escravos e estrangeiros. Além disso, Platão despreza a tragédia tradicional, assim como confere aos legisladores do Estado o título de autores da mais verdadeira de todas as tragédias, que é a mimesis da mais nobre e melhor vida para o cidadão da polis.

No Sofista 267b, Platão chama atenção para o fato de alguns imitadores conhecerem aquilo que imitam, enquanto que outros não. As imitações realizadas por imitadores que conhecem os seus objetos estarão aptas a iluminar a realidade das quais elas são imitações. Visto que as boas imitações podem esclarecer a natureza da realidade em si, Platão as utiliza ao longo de sua obra como um meio para ensinar sobre a realidade; em 218e e 221b-c, o Estrangeiro usa a imagem da pesca para esclarecer a natureza essencial do sofista; no Banquete 215a, Alcibíades usa as figuras dos sátiros para esclarecer a natureza de Sócrates; no Teeteto 150a, a imagem da parteira é usada para iluminar o método de Sócrates como professor e filósofo.

No Crítias 107b-d, Platão afirma que ao discutirmos sobre coisas divinas precisamos fazer uso de imitações e representações, visto que não possuímos o conhecimento científico delas. No intuito de expressar seus pensamentos mais profundos, em diversas passagens Platão recorre aos mitos. Os mitos são representações de uma verdade que não pode ser demonstrada cientificamente. Aristóteles observa na Poética 1447b5 que os diálogos platônicos são uma forma de mimesis. Seria, assim, a mimesis de Platão um bom exemplo de mimesis elaborada com conhecimento e que, ao possuir uma semelhança com o seu modelo, pode nos ajudar a compreender e aprender sobre a realidade em si; nestes diálogos, podemos observar que a ação e o caráter são representados de uma maneira análoga ao drama, assim como as inúmeras metáforas, imagens e mitos, todos instrumentos para comunicar o pensamento platônico.

Na República III 392d-393b, Platão diferencia a mimesis da narrativa e exemplifica citando o início da Ilíada, onde o próprio poeta finge ser o personagem e “tenta o mais possível fazer-nos supor que não é Homero que fala, mas o sacerdote, que é um ancião”. Algumas linhas depois,o filósofo indaga: “tornar-se semelhante a alguém na voz e na aparência é imitar aquele com quem queremos parecer-nos?”. No Sofista 267a, tal ato de reproduzir os gestos e a voz de outrem é definido como mímica (mimesis), um simulacro, isto é, a mera ‘sombra’ reflexiva de um modelo original. Na República VII 514a-517e, é feita uma analogia entre experiências sensíveis dos homens que vivem em uma caverna, e a experiência intelectual daqueles que fazem a transição da opinião para o conhecimento. Platão mostra que a passagem da opinião para o conhecimento é muito difícil e que pode ser realizada somente quando os estágios onde os vários níveis da imitação da realidade foram percorridos antes da realidade em si ser contemplada. O objetivo principal da mimesis é o de fornecer os passos preliminares necessários no processo intelectual que conduz à apreensão da realidade em si. Para Platão, há que ter cuidado em não confundir a realidade com a mimesis, e desta maneira talvez possamos explicar o julgamento negativo do filósofo sobre a imitação e os imitadores como um alerta para não cometer este grave erro. Na República X 597a-598e, afirma estar a mimesis “três pontos afastada da realidade”. O filósofo nos leva a considerar três modos possíveis da existência de uma cama: primeiro, a “idéia” de cama, isto é, a cama real confeccionada por Deus; segundo, a cama como mobília, confeccionada pelo marceneiro; e, finalmente, a cama como modelo para uma pintura. Para Platão, o marceneiro não poderia ter feito a cama se uma idéia preexistente da mesma já não existisse. Logo, o produto do trabalho do marceneiro deve ser considerado menos real do que a idéia original que fez a confecção possível; mais distante ainda da idéia original está o pintor, visto que realiza uma imitação da imitação, sendo, portanto, considerado “um imitador daquilo que os outros são artífices”.

Na República X 603c-605c, Platão afirma ser a mimesis corruptora do caráter do indivíduo e do Estado. Sócrates fala do caso de um homem comedido que sofreu um grave desgosto, como a perda de um filho ou algo muito valioso. Ele julga que tal homem poderia enfrentar sua dor mais facilmente do que outros homens; por conseguinte, tal homem teria chances melhores de controlar sua dor estando na presença de seus semelhantes. Isto sucede devido ao fato de haver impulsos contraditórios em sua alma, sendo que o que o impele a resistir é a razão e a lei, e o que o arrasta para a dor é a aflição. A razão e a lei dizem a ele que deve permanecer calmo na desgraça, pois o bem e o mal em tais acontecimentos são desconhecidos; que nem tudo relacionado a coisas humanas merece atenção excessiva; e, por fim, mostram que estes sentimentos dolorosos servem como obstáculo a nossa capacidade de deliberar, de que carecemos nas circunstâncias mais difíceis, facultando-nos refletir sobre o que nos aconteceu. A razão no mostra como organizar os acontecimentos do modo como ela julga melhor e não a nos queixarmos inutilmente como crianças. A arte mimética tradicional não somente não nos diz a verdade como também nos convida a dar vazão a emoções inferiores como lamentações e zombarias, as quais, segundo manda a razão, devem ser reprimidas.

O que se opõe ao impulso em direção ao controle racional das emoções na alma é o sofrimento. Sócrates o descreve como irracional, localizado na parte inferior da alma e opondo-se a mais alta, a racional. É, no entanto, esta reação emocional mais freqüentemente imitada pelos artistas. A calma, ou a razão filosófica, não são objetos de fácil representação para o artista, e tampouco são facilmente compreensíveis para as grandes audiências dos teatros (República X 604e). Para Platão, quase todas as artes miméticas ao representarem intensas expressões de piedade e medo evocam emoções poderosas que subjugam os preceitos da razão; a arte mimética de Homero, por exemplo, distancia-nos do caminho da sabedoria e da disciplina que caracterizam o melhor comportamento humano; corrompe-nos em emoções e paixões que alimentam os nossos mais irracionais apetites; o processo imitativo encoraja e acostuma o imitador a se tornar aquilo que ele imita, visto que “as imitações, se se perseverar nelas desde a infância, transformam-se em hábito e natureza para o corpo, a voz e a inteligência” (República III 395e); por isso, a partir da mimesis surge a corrupção intelectual e moral das estórias contadas por Homero, pelos tragediógrafos e comediógrafos. No entanto, Platão admite em seu Estado ideal uma categoria especial de arte mimética: hinos aos deuses e elogio aos homens nobres. Esta forma de mimesis ensina a nos defendermos contra o prazer sedutor da mimesis vulgar, que em nós dá vazão ao que é inferior às custas do que é nobre.

Em todos esses casos e outros similares onde Platão ataca a mimesis artística, ele está nos lembrando da importante distinção entre a realidade e a mimesis, bem como afirmando a prioridade da primeira com relação à segunda. Entretanto, vimos que quando esta distinção é adequadamente observada, a mimesis desempenha um papel autêntico e significativo no processo de apreensão da realidade. Platão compreendia perfeitamente que o uso habilidoso a mimesis é, portanto, um recurso indispensável para uma aproximação da realidade verdadeira."

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Fonte:
Elaine Valente Ferreira: "A katharsis como clarificação intelectual na Poética de Aristóteles". (Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica - PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada. Orientadora: Profa. Irley Fernandes Franco). Rio de Janeiro, 2008.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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