A assimilação dos conselhos de dom Quixote e o governo de Sancho Pança



“O comportamento de Sancho Pança ao longo dos capítulos é ambíguo. Suas palavras não são condizentes com suas atuações. Elas estão baseadas nos saberes populares de que dispõe, aliados aos conselhos dados por seu amo, antes de assumir e também durante seu governo. Já suas atuações baseiam-se nos conselhos dados por dom Quixote e também na interpretação, muitas vezes aguda, que fez desses conselhos.

O aconselhamento que faz dom Quixote a Sancho nos remete às práticas de aconselhamento de príncipes, relatadas, por exemplo, em O Cortesão, de Castiglione. Os conselhos têm a função de fornecer ao príncipe elementos suficientes para que este possa fazer o bom governo de si mesmo e das cidades. Assim, os conselhos de dom Quixote a Sancho coincidem com o tipo de conselho dado pelo cortesão ao príncipe, ainda que, como sabemos, nem dom Quixote é um cortesão, nem Sancho é, na realidade, um príncipe, embora tenha sido alçado a essa condição devido à armação realizada pelos Duques. A atuação de Sancho no capítulo XLII começa quando ele é notificado pelo Duque de que está pronto para assumir o governo da ilha. Nesse momento, Sancho fala ao Duque de uma maneira que demonstra reflexão. Ao se referir ao governo da ilha e, conseqüentemente, ao poder, diz:

“Después que bajé del cielo [referindo-se ao episódio de Clavilenho], y después que desde su alta cumbre miré la tierra y la vi tan pequeña, se templó en parte en mí la gana que tenía tan grande de ser gobernador, porque ¿qué grandeza es mandar en un grano de mostaza, o qué dignidad o imperio el gobernar a media docena de hombres tamaños como avellanas que, a mi parecer, no había más en toda la tierra?”
(Don Quijote de la Mancha, v. II, XLII, p. 338.)

A fala de Sancho no fragmento anterior surpreende pelo fato de que, até onde sabemos, ele tem poucas informações sobre o mundo em geral. Constatar a grandeza da Terra e notar, a partir daí, a pequenez de mesmo a maior de todas as ilhas, requer a utilização de um raciocínio agudo e entremeado de conexões, o que não seria comum a Sancho Pança.

Independentemente da reflexão realizada, Sancho se mostra disposto a governar a ilha, e quer fazê-lo somente para experimentar qual o gosto de ser governador. Nesse primeiro instante, deixa claro que não está assumindo o governo por cobiça ou ganância. O que o atrai para o exercício do governo é a possibilidade de mandar, coisa totalmente nova para ele, que era um simples lavrador e, depois de alçado à condição de escudeiro, também sempre deveu obediência a seu amo. Sancho deseja o poder pela possibilidade que ele oferece de mandar em vez de ser mandado. Diz que imagina que é bom mandar, ainda que seja a um rebanho de gado.

Nesse momento, o fato de querer assumir o governo da ilha somente pela possibilidade de mandar reflete uma atitude imprudente por parte de Sancho, pois ele não pensa nas conseqüências decorrentes de eventuais más atitudes no governo. Em nenhum momento ele faz uma avaliação ponderada da situação em que se encontra para ver se tem ou não condições de assumir o governo. Porém, a imprudência de Sancho aí está vinculada à oscilação característica dos personagens cervantinos que ora realizam reflexões extremamente pertinentes e agudas, ora agem como a mais torpe das criaturas.

Quando notificado de que assumiria o governo, Sancho não demonstrou estar preocupado em enquadrar a sua figura à de um governador. Ao ser informado pelo Duque de que naquela mesma tarde seus criados lhe trariam os trajes que levaria ao governo, reage dizendo: “— Vístanme como quisieren; que de cualquier manera que vaya vestido seré Sancho Panza.” (Don Quijote de la Mancha, v. II, XLII, p. 339.) Não devemos tomar a atitude de Sancho como uma espécie de rebeldia. O que ocorre, de fato, é que ele estava muito centrado em si mesmo e em seus valores, deixando de notar que, ao passar a exercer o cargo de governador, ganharia uma posição de destaque, a qual requeria que seu ocupante se adequasse não só em termos morais, mas também em relação à aparência física. Sancho não dispunha de nenhum traquejo social, e sua condição de lavrador o impedia de reconhecer importância naquelas práticas ali explícitas. Ele pensa poder assumir o governo sem promover nenhum tipo de alteração em si mesmo, o que vai contra as práticas discretas do ambiente de corte. Como vimos, o cuidado com a aparência e a habilidade no trato social constituem requisitos fundamentais para o trânsito adequado em determinados ambientes sociais, como o palácio ducal ou o ambiente de seu governo.

A rusticidade de Sancho traz consigo um grande nível de sinceridade e autenticidade. Ele parece ter uma existência calcada puramente na essência, desprezando o ser social que deveria habitar sua pessoa. Ao conversar com o Duque que procurava lhe mostrar que, para o exercício do governo, as armas e as letras eram igualmente necessárias, Sancho revela, sem nenhum pudor, sua condição de quase analfabeto, dizendo:

“— Letras, pocas tengo, porque aún no sé el A, B, C; pero bástame tener el Christus en la memoria para ser buen gobernador. De las armas, manejaré las que me dieren, hasta caer, y Dios delante.”
(Don Quijote de la Mancha, v. II, XLII, p. 339.)

Pelo dito acima, inferimos que Sancho quer e acha possível ser governador utilizando somente sua experiência de vida, uma vida simples e bastante diferente daquela sociedade em que se encontrava naquele momento.

No decorrer da conversa entre Sancho e o Duque, entra dom Quixote, o qual, percebendo o que estava acontecendo, numa atitude prudente, retira seu escudeiro e o conduz a um local reservado, com a finalidade de aconselhá-lo para que se saia bem no governo.

No início da conversa com dom Quixote, Sancho parecia muito entusiasmado pelo governo da ilha e teve dificuldade para se concentrar e começar a ouvir seu amo. Durante o aconselhamento, Sancho não consegue se limitar a ouvir e, muitas vezes, comenta os conselhos dados por dom Quixote de uma maneira que irrita seu amo.

O primeiro comentário de Sancho se refere à origem daqueles que governam. Ele parece não se sentir incomodado pelo fato de ter origem humilde, pois parece ter consciência de que nem todos os que governam têm origem nobre. Esse fato parece garantir certa comodidade a Sancho, pois visualiza ser possível exercer o governo mesmo possuindo sua origem e sua condição.

No início do capítulo XLIII, Sancho se porta de maneira diferente da que estávamos acostumados a vê-lo anteriormente. Agora parece mais contido e concentrado, como nos informa o narrador ao dizer que “atentísimamente le escuchaba Sancho [referindo-se a dom Quixote] y procuraba conservar en la memoria sus consejos como quien piensa guardarlos y salir a buen parto de la preñez de su gobierno”. (Don Quijote de la Mancha, v. II, XLIII, p. 343.) Nesse aspecto, apesar de não mudar em essência, parece que os primeiros conselhos de dom Quixote já lhe haviam surtido algum efeito, o que fez com que se concentrasse mais para ouvi-los.

Sancho parece entender os conselhos de seu amo no que se refere a manter-se limpo e com as unhas cortadas, vestir-se adequadamente a si e a seus pajens, não comer nem beber demasiadamente. Porém, confunde-se quando dom Quixote fala sobre os hábitos à mesa. Diante do conselho de não erutar à mesa, Sancho manifesta sua ignorância, dizendo a seu amo que não entendia o significado daquela palavra. Após a explicação de dom Quixote, o escudeiro promete adotar a prática sugerida.

O desconhecimento de uma palavra que leva a uma prática tão desastrosa a um discreto confirma mais uma vez que Sancho não dominava as regras do ambiente ao qual estava prestes a ser lançado. O conhecimento da palavra erutar demandava certo nível de erudição, o qual Sancho não possuía e ao qual nem dava importância.

O jeito contido que Sancho apresentava no início do capítulo não se mantém por muito tempo. Falastrão e intrometido, Sancho interrompe várias vezes dom Quixote durante o aconselhamento. Além disso, crê-se no direito de achar que pode escolher entre os conselhos de dom Quixote aqueles que pretende seguir. Em relação ao erutar, por exemplo, Sancho diz: “— En verdad, señor, que uno de los consejos y avisos que pienso llevar en la memoria ha de ser el de no regoldar, porque lo suelo hacer muy a menudo.” (Don Quijote de la Mancha, v. II, XLIII, p. 344.)

Sancho admite concessões às práticas sociais somente quando as que possui lhe parecem extremamente inadequadas. Pelo que se vê, ele se guia pelos seus valores e princípios e é muito refratário a algumas interferências vindas de seu amo. Dessa forma, seria pouco provável que conseguisse atingir o nível de erudição e sutileza necessários a um indivíduo discreto, pois não estava aberto ao aprendizado de que necessitava.

Dando seqüência aos acontecimentos do capítulo XLIII, a conversa entre dom Quixote e Sancho transcorria de forma tranqüila até o momento em que o cavaleiro fez referência à linguagem utilizada pelo escudeiro, dizendo-lhe que não devia utilizar em suas conversas a grande quantidade de provérbios que lhe saíam pela boca aos borbotões, e que representavam mais uma de suas tantas indiscrições. O nível de linguagem de Sancho e a conseqüente utilização de muitos provérbios eram próprios do meio popular em que ele vivia, e que já havia se constituído em um hábito muito arraigado, difícil de ser remediado. De tão característico, é quase impossível, inclusive ao leitor, imaginar Sancho Pança sem utilizar seus provérbios. O próprio Sancho reconhece a dificuldade de abandonar tal prática:

“— Eso Dios lo puede remediar, porque sé más refranes que un libro, y viénenseme tantos juntos a la boca cuando hablo, que riñen, por salir, unos con otros; pero la lengua va arrojando los primeros que encuentra, aunque no vengan a pelo. Más yo tendré en cuenta de aquí adelante de decir los que convengan a la gravedad de mi cargo; que en casa llena, presto se guisa la cena; y quien destaja no baraja; y a buen salvo está el que repica; y el dar y el tener, seso ha menester.”
(Don Quijote de la Mancha, v. II, XLIII, p. 344.)

Nesse fragmento, Sancho parece tentar fazer uma concessão a fim de evitar a utilização de provérbios que não correspondam à situação, mas, em seguida, com sua oscilação e descuidos característicos, desfere a dom Quixote uma série de provérbios que, como o próprio Sancho diz, estavam brigando entre si para ver qual deles saía primeiro.

Após seu amo ter terminado de aconselhá-lo, Sancho o surpreende de novo, dizendo-lhe que os conselhos são muito bons e proveitosos, mas de que lhe hão de servir, se não consegue se lembrar de nenhum deles? Essa fala de Sancho nos remete novamente à sua origem humilde, pois em sua vida como lavrador estava acostumado ao exercício de uma sabedoria prática. O contato com elementos mais eruditos dificultava que o escudeiro os memorizasse, pois alguns deles não faziam o menor sentido para ele, conforme ele mesmo afirma:

“(...) Verdad sea de aquello de no dejarme crecer las uñas y de casarme otra vez, si se ofreciere, no se me pasará del magín; pero esotros badulaques y enredos y revoltillos, no se me acuerda ni acordará más dellos que de las nubes de antaño, y así, será menester que se me den por escrito; que puesto que no sé leer ni escribir, yo se los daré a mi confesor para que me los encaje y recapacite cuando fuere menester.”
(Don Quijote de la Mancha, v. II, XLIII, p. 345.)

Pelo dito acima, mais uma vez notamos que Sancho não interioriza totalmente os conselhos dados por seu amo e tem dificuldade de reconhecer a utilidade de alguns deles. Apenas mostra a intenção de segui-los, em virtude da confiança que deposita em dom Quixote, a quem de alguma maneira substituirá pelo confessor quando estiver no governo e longe de seu amo.

Apesar de dom Quixote insistir sobre quão pernicioso é a um governante o fato de não saber nem ler nem escrever, Sancho o retruca dizendo-lhe que isto não o fará falta no exercício de seu governo, pois, por meio de sua liberalidade, conseguirá disfarçar suas faltas. Sobre isso, Sancho declara:

“— Bien sé firmar mi nombre; que cuando fui prioste en mi lugar, aprendí a hacer unas letras como de marca de fardo, que decían que decía mi nombre; cuanto más que fingiré que tengo tullida la mano derecha, y haré que firme otro por mí; que para todo hay remedio, si no es para la muerte; y teniendo yo el mando y el palo, haré lo que quisiere; cuanto más el que tiene el padre alcalde... Y siendo yo gobernador, que es más que ser alcalde, ¡llegaos, que la dejan ver! No, sino popen y calóñenme; que vendrán por lana, y volverán trasquilados; y a quien Dios quiere bien, la casa le sabe; y las necedades del rico por sentencias pasan en el mundo; y siéndolo yo, siendo gobernador y juntamente liberal, como lo pienso ser, no habrá falta que se me parezca. No, sino haceos miel, y paparos han moscas; tanto vales quanto tienes, decía una mi agüela; y del hombre arraigado no te verás vengado.”
(Don Quijote de la Mancha, v. II, XLIII, p. 346.)

Nesse fragmento, Sancho faz uma série de considerações importantes. A primeira é fazer uso de algum artifício para disfarçar algo que lhe falta. Se é importante que o governante saiba ler e Sancho não o sabe, a saída encontrada pelo escudeiro é a utilização de algum artifício que possa ajudá-lo a disfarçar a sua falta. Sancho procura utilizar-se de um recurso que lhe permita ocultar algo indesejado. Porém, apesar de, nesse caso, referirmo-nos às noções de artifício e aparência, não as podemos tomar no sentido graciano, as quais estão vinculadas a práticas honestas, e não à fabricação de situações enganosas como as propostas pelo escudeiro.

O segundo aspecto interessante é que Sancho pretende ser um governador cuja liberalidade também terá a função de disfarçar suas faltas, o que talvez não seja uma prática muito benéfica ao governante.

Por último, retomando a citação, ao dizer que “las necedades del rico por sentencias pasan en el mundo”, Sancho declara conhecer uma noção de poder em que o governante, por mais ignorante que seja, é acatado, pelo simples fato de ser governante e ter o poder. Porém, parece-nos que essa frase de Sancho é apenas uma constatação, fruto de seu entendimento sobre o poder. Por tudo que já havia dito, não parece que ele concorde com isso ou pretenda se utilizar exatamente desse artifício em seu governo.

Apesar de pretender usar do artifício para disfarçar suas faltas, diante de seu amo Sancho não tem pudores de admiti-las. Referindo-nos especificamente aos refrãos, talvez Sancho não os desqualifique pelo fato de eles representarem o único patrimônio de que dispõe:

“— Por Dios, señor nuestro amo – replicó Sancho –, que vuesa merced se queja de bien pocas cosas. ¿A qué diablos se pudre de que yo me sirva de mi hacienda, que ninguna otra tengo, ni otro caudal alguno, sino refranes y más refranes?”
(Don Quijote de la Mancha, v. II, XLIII, p. 346.)

Nesse capítulo, Sancho ainda tem um embate final com dom Quixote, do qual sai vitorioso em virtude da astúcia e do entendimento que manifesta a seu amo sobre sua situação e a situação futura de governo. Ao se irritar com Sancho, dom Quixote sinaliza que poderia contar ao Duque sobre seu despreparo para assumir o governo. A reação de Sancho diante de tal situação nos surpreende pelo bom entendimento que demonstra e pelos pensamentos concatenados que possui. Respondendo a dom Quixote, ele diz:

“— Señor – replicó Sancho –, si a vuestra merced le parece que no soy de pro para este gobierno, desde aquí le suelto; que más quiero un solo negro de la uña de mi alma, que a todo mi cuerpo; y así me sustentaré Sancho a secas con pan y cebolla, como gobernador con perdices y capones; y más, que mientras se duerme, todos son iguales, los grandes y los menores, los pobres y los ricos, y si vuestra merced mira en ello, verá que sólo vuestra merced me ha puesto en esto de gobernar; que yo no sé más de gobiernos de ínsulas que un biultre; y si se imagina que por ser gobernador me ha de llevar el diablo, más me quiero ir Sancho al cielo que gobernador al infierno.”
(Don Quijote de la Mancha, v. II, XLIII, p. 348.)

Após a resolução do impasse criado por Sancho, por meio do qual relembra dom Quixote que ele, Sancho, não tinha aspirações a governar nada antes de conhecê-lo, o capítulo XLIII se encerra com uma fala de dom Quixote totalmente favorável a Sancho, que o havia surpreendido com suas colocações. Apesar de conhecer as falhas de seu escudeiro, dom Quixote volta a apoiá-lo e a reconhecer que Sancho parece ter condições de assumir o governo. Segundo dom Quixote, Sancho poderá superar suas falhas em virtude de possuir uma inclinação natural para o bem.

O capítulo LI, como dito em outro momento deste trabalho, passa-se durante o governo de Sancho, no qual ele prudentemente coloca em prática não só os conselhos fornecidos por seu amo, mas também uma interpretação muito perspicaz e discreta deles. Os conselhos de dom Quixote, por si só, não surtiriam efeito caso Sancho não tivesse recursos para interpretá-los e colocá-los em prática de maneira adequada à ocasião.

Nesse capítulo, aparecem de forma muito clara a oscilação e a ambigüidade de Sancho em relação à discrição. Se, por um lado, ele se mostra totalmente avesso a algumas práticas sociais, às quais chega a se referir como sendo “badulaques, enredos y revoltillos”, por outro lado demonstra uma perspicácia própria de um discreto, na interpretação de situações. Sancho Pança, um indiscreto por excelência, em seu governo surpreende pela discrição demonstrada em algumas ocasiões.

No início do capítulo LI, o narrador nos informa sobre a surpresa que o governo de Sancho estava causando até mesmo entre os que estavam participando da farsa. No governo, segundo nos mostra o narrador, as atitudes e palavras de Sancho sofriam oscilações que iam do discreto ao tonto, confirmando o que acabamos de dizer sobre Sancho no tocante à discrição. Porém, pelo que efetivamente se fala do governo do escudeiro, a discrição ocupa muito mais espaço que a tonteria.

Na condição de governador, Sancho se submetia ao que lhe diziam ser bom para realçar seu engenho. Ainda que algumas coisas não fizessem muito sentido para ele, assumiu sua função de governador com todo o ônus que esta lhe trazia. Não foram poucos os sofrimentos de Sancho. O doutor Pedro Recio, por exemplo, o fazia comer conserva e água fria como desjejum.

Em relação a isso, mais uma vez nos deparamos com a falta de autonomia de Sancho, o que era arriscado para um governante. Justamente pelo seu pouco conhecimento, não tinha discernimento sobre algumas práticas e situações. Sancho era uma pessoa extremamente crédula e, durante seu governo, manteve a mesma forma de comportamento, deixando de reconhecer a artificialidade de algumas situações. O fato de ter de depender de outros para algumas práticas fez com que ele tivesse sofrimentos que poderiam ser evitados caso tivesse o pleno controle das situações e conhecesse mais as práticas do meio em que vive. Mas, apesar do seu sofrimento, encara as atribuições de seu governo quase como uma missão, mesmo que as maldiga em um segredo íntimo.

Como dito anteriormente, algumas atitudes no governo de Sancho surpreendiam. Uma dessas surpresas pode ser representada pela solução encontrada em um de seus julgamentos.

O caso que apresentaram a Sancho era o seguinte: sobre um rio havia uma ponte que, para ser transposta, era necessário que o transeunte declarasse aonde ia e o que ia fazer. Se jurasse verdade, passaria sem problemas; se jurasse mentiras, seria duramente castigado. Sabendo das regras, um forasteiro quis passar pela ponte e, durante seu juramento, declarou que sofreria os castigos impostos aos que mentem. Diante de tal situação, os juízes se perguntavam qual seria a sentença correta, pois, caso permitissem que o forasteiro passasse, ele teria jurado em falso e deveria ser castigado. Mas, por outro lado, o forasteiro dissera que seria castigado e, portanto, jurou verdade. Como não houve consenso entre os juízes sobre aplicar ou não o castigo ao homem, coube a Sancho dar a sentença final. Sancho ouviu atentamente o relato e, diante do exposto, considerou que o homem deveria ser absolvido e condenado ao mesmo tempo. Dada a impossibilidade da execução de tal sentença, Sancho decide absolver o forasteiro, pois, se naquele caso, tanto a absolvição quanto a condenação teriam pertinência, o mais conveniente era decidir pela absolvição, pois, segundo Sancho, “siempre es alabado más el hacer el bien que el mal”.

Para chegar a tal sentença, Sancho raciocina e avalia cuidadosamente a situação, demonstrando grande capacidade de análise e discernimento para que pudesse chegar a uma sentença justa. Ao final, decide favoravelmente ao réu, seguindo, além de sua inclinação natural ao bem, o conselho de dom Quixote, o qual lhe recomendava clemência diante de um condenado ou que, havendo dúvidas quanto à condenação, se decidisse favoravelmente ao réu.

Houve outra situação em seu governo em que teve de aplicar a justiça. Referino-mos ao caso da mulher que, vendendo avelãs na praça, misturava frutas podres às boas e as vendiam todas juntas. Nesse caso, Sancho exigiu que se separassem as frutas boas das ruins e, como pena, sentenciou a mulher a não entrar na praça por quinze dias.

Como se vê, Sancho soube aplicar à mulher uma pena compatível com o delito cometido, o que vai ao encontro dos preceitos de justa medida, bom senso e moderação na aplicação da justiça.

Durante seu governo, Sancho demonstra uma confiança admirável em sua capacidade. Após a resolução do caso do forasteiro, parece animado e disposto a continuar decidindo sobre as questões de governo. Em determinado momento, diz a seu pajem: “(...) lluevan casos y dudas sobre mi, que yo las despabilaré en el aire”.

Apesar de falastrão e incontido em relação a muitos elementos, Sancho sabe da importância de seu cargo e de manter segredo sobre algumas questões de governo. Isso se nota quando ele recebe uma correspondência de dom Quixote. Nessa ocasião, pede a seu secretário que leia a carta primeiro para si próprio e, caso note que não existe nenhum segredo nela, que a divulgue entre todos os presentes. O secretário procedeu à leitura silenciosa da carta e, não havendo nenhum segredo em questão, leu-a para os presentes. A referida carta continha elogios à atuação de Sancho e outros conselhos que seu amo havia julgado pertinentes.

Sancho ouviu com muita atenção a leitura da carta, à qual respondeu em seguida.

Na carta enviada a dom Quixote, o escudeiro realiza uma espécie de prestação de contas a seu amo. Logo no início, e fazendo referência a um conselho recebido dele, Sancho diz não estar tendo tempo sequer para coçar a própria cabeça ou cortar as unhas, as quais estavam extremamente crescidas. Lembremo-nos de que, nesse momento, Sancho se refere ao conselho de dom Quixote que fazia referência a determinados comportamentos inadequados, como coçar a cabeça ou manter as unhas compridas. Relata também a seu amo estar passando mais fome do que quando, juntos, andavam pelos campos. Apesar disso, em sua carta, Sancho mantém um tom bem-humorado, demonstrando que as adversidades que vêm enfrentando não têm sido suficientes para quebrantar seu espírito. Sua declaração também nos remete à visão que ele tinha sobre o poder antes de assumi-lo, a qual se mostra bem diferente da que pensava anteriormente. Para ele, o ato de governar parecia mais simples do que de fato é. Além disso, não tem provado de nenhuma regalia que pensava possível existir na condição de governador. Para Sancho, o exercício do governo produz uma espécie de desencanto, conforme atesta na declaração que dá a dom Quixote:

“— Finalmente, él [referindo-se ao doutor Pedro Recio] me va matando de hambre, y yo me voy muriendo de despecho, pues cuando pensé venir a este gobierno a comer caliente y a beber frío, y a recrear el cuerpo entre sábanas de Holanda, sobre colchones de pluma, he venido a hacer penitencia, como si fuera ermitaño, y como no la hago de mi voluntad, pienso que al cabo al cabo me ha de llevar el diablo.”
(Don Quijote de la Mancha, v. II, LI, p. 414.)

Devemos salientar em Sancho governador que o fato de o exercício do governo estar lhe causando grande desconforto não o impede de fazer o que pensa e sabe ser correto.

Sancho também não demonstra medo no exercício do governo. Na carta que envia a seu amo, diz-lhe que o Duque o avisara que havia alguém na ilha disposto a matá-lo. Sancho não só não se preocupa com a questão como também a trata de maneira bem humorada, quase irônica:

“— Escribióme el duque, mi señor, el otro día, dándome aviso que habían entrado en esta ínsula ciertas espías para matarme, y hasta ahora yo no he descubierto otra que un cierto doctor que está en este lugar asalariado para matar a cuantos gobernadores aquí vinieren; llámase el doctor Pedro Recio, y es natural de Tirteafuera: ¡porque vea vuesa merced qué nombre para no temer que he de morir a sus manos!...”
(Don Quijote de la Mancha, v. II, LI, p. 414.)

Nessa citação, vemos que Sancho estabelece uma relação entre a idéia de que alguém quer matá-lo e a idéia de morrer de fome, sendo esta última, evidentemente, uma metáfora de seu sofrimento devido à privação da alimentação.

Em seguida, faz mais algumas considerações sobre seu governo, sua situação com os duques e a forma como pensa deixar o cargo de governador. Nesse momento, retoma em tom jocoso o que havia dito sobre o doutor Pedro Recio:

“— Y con esto, Dios libre a vuestra merced de mal intencionados encantadores, y a mí me saque con bien y en paz deste gobierno, que lo dudo, porque le pienso dejar con la vida, según me trata el doctor Pedro Recio.”
(Don Quijote de la Mancha, v. II, LI, p. 416.)

O capítulo termina com a notícia de que as armações dos duques relativas ao governo de Sancho estavam prestes a se encerrar, e Sancho prestes a voltar ao convívio de seu amo. Apesar de tudo se tratar de uma grande farsa, o governo de Sancho foi marcado pela honestidade, moderação, justiça, interpretação adequada de conceitos e de idéias e de uma disposição implacável para fazer o bem. Enfim, um governo marcado pela discrição."

---
Fonte:
VALÉRIA TINI: “A (IN)DISCRIÇÃO: ASPECTOS DO DECORO EM DOM QUIXOTE DE MIGUEL DE CERVANTES”. (Trabalho apresentado ao Departamento de Letras Modernas da Universidade de São Paulo para a obtenção do título de Mestre, sob a orientação da Profª. Drª. Maria Augusta da Costa Vieira). São Paulo, 2007.

Nota
:
A imagem (ilustração de Sancho Pança) inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

Disponível digitalmente no site: Domínio Público

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Excetuando ofensas pessoais ou apologias ao racismo, use esse espaço à vontade. Aqui não há censura!!!