Clarice Lispector e Franz Kafka



“De acordo com nossa história literária observo que duas têm sido a maneira de fazer literatura na Brasil, desde a colonização: uma voltada para a aceitação desta condição cultural, ideológica portanto e outra, contra-ideológica que busca questioná-la. No primeiro caso temos o que os teóricos chamam mímesis da representação e no segundo caso a mímesis da produção.

Usando a terminologia de BARTHES (2006), a primeira resulta no “texto de prazer” e a segunda no “texto de fruição”. Este é aquele tipo de texto que sugere um estado de perda, aquele que promove o desconforto, e que, por isso mesmo “faz vacilar as bases históricas, culturais, psicológicas do leitor, a consistência de seus gostos, valores e de suas lembranças, faz entrar em crise sua relação com a linguagem” (BARTHES, 2006, p. 20-1), aquele é o tipo de texto “que contenta, enche, dá euforia; aquele que vem da cultura, não rompe com ela, está ligado a uma prática confortável de leitura” (BARTHES, 2006, p. 20).

Alguns escritores trabalham com essas duas escritas ao mesmo tempo. É o caso de Clarice Lispector que nos faz entender que a literatura tem sua maneira peculiar de promover este encontro com o passado, a partir do tema e principalmente de sua forma de escrever. Qualquer acontecimento no presente que aponte para um malogro do passado pode servir de pretexto para que este passado seja revisitado como acontece no conto “A menor mulher do mundo”. Este conto parte de uma informação que o narrador leu no jornal. Entendo-o como uma alegoria do processo, real e lingüístico, com que se efetivou o processo de colonização dos índios. Coerente com o tema e com as linguagens que encena, seu narrador/focalizador entra na selva africana armado com uma linguagem totalmente camuflada e com um “machado pequeno” (LF, p.79), única forma de sobreviver naquele espaço entre “feras” (LF, p.79).

É assim que cá do Brasil ela contribui para que “[a] América Latina institu[a] seu lugar no mapa da civilização ocidental” (SILVIANO SANTIAGO, 1978, p. 11-28). Isso “graças ao movimento de desvio da norma, ativo e destruidor, que transfigura os elementos feitos e imutáveis que os europeus exportavam para o Novo Mundo” (SILVIANO SANTIAGO, 1978, p. 11-28).

A atitude literária de Franz Kafka em muito se aproxima de Clarice Lispector. A partir do seu conto alegórico, percebemos com maior lucidez o esforço do ser humano ao atravessar da natureza para a cultura. Um dos motivos deste esforço encontra-se na necessidade de apreensão da linguagem instrumental para fins de comunicação. Sua limitação acaba atingindo os que dela se servem, tornando-os limitados também.

A partir deste texto de Silviano Santiago e outros afins observo que toda sociedade que atravessa da natureza para a cultura experimenta esta alteração do nome para o discurso opressor e da identidade ligada aos elementos autoctones para outra através dos seus sistemas genderizadores. Por isso acredito que realçar este aspecto da linguagem, a existência do nome prescindindo à do discurso, limitado em sua função representativa - é importante, porque a arte literária e o materialismo histórico andam em busca de uma marca primeira de “outrora” da linguagem que possa ser abstraída de sua função instrumental, para fins de comunicação, que resulta na organização dos Sistemas de representação.

Esta busca que só pode acontecer na contramão da linguagem discursiva e a “contrapelo” da História que lhe é tributária, é bastante produtiva. Sendo o homem atual o resultado de uma construção histórica é importante que ele reflita sobre o processo de construção da sua identidade e da de seu país, sobre as ideologias dos Sistemas de representação que o constitui como ser e sobre o modo como esta ideologia é
incutida e incorporada nele e por ele. Já se sabe que tanto a linguagem quanto a identidade encontram-se alteradas e isto se dá para fins de ajustamentos sociais que intencionam construir e manter a Ordem estabelecida cimentada em torno da relação centro/margem que caracteriza a História.

No caso de países que foram colonizados, como o Brasil, por exemplo, essa busca torna-se condição sine qua non para que reflitamos sobre a formação da nossa identidade e sobre pontos a partir dos quais malogros históricos, como a relação dominante/dominado, que encontra suas origens na relação colonizador/colonizado, por exemplo, tomaram forma.

Assim, revelar o aspecto cultural desta Ordem estabelecida é o primeiro passo para a busca de uma forma mais humana e menos perspectivista de organização de qualquer Sistema de representação, berço daqueles que fazem acontecer e também daqueles que escrevem a história.

A literatura, “além do bem e do mal”, quando descomprometida com a representação “tal qual” da realidade, e com a manipulação severa e perversa deste discurso político, genderizador empenha-se na travessia do atual estágio deste discurso para a sua condição primeira que, para Walter Benjamin é a língua adâmica. Para ele quando esta língua reconhece o objeto como criado, “ela o conhece na sua essência imediata” (GAGNEBIN, 2007, p. 17-8), razão pela qual “os nomes adâmicos só dizem de si, isto é, já do objeto na sua plenitude” (GAGNEBIN, 2007, p. 17-8).

É assim que “a cegonha, tão louvada por causa de sua caridade para com seus pais, é denominada em hebraico Chasida, quer dizer, bondosa, caridosa, dotada de piedade” (DURET: apud. FOUCAULT, 1966, p. 59), da mesma forma que “Sus, o nome do cavalo, deriva do verbo Hasas... verbo que significa educar-se, porque, entre os animais que têm quatro pés, o cavalo é o único altivo e bravo, como Job o descreveu no capítulo 39.” (DURET: apud. FOUCAULT, 1966, p.59).

Neste ensaio de 1916, estou observando que é a plenitude do nome que o resguarda, é a sua condição de não ser designado e sim de ser um sinal certo e transparente do objeto ou seja de significar. Vê-se que essa forma motivada de organização do signo é menos passível de equívocos e ambigüidades no ato de sua manipulação porque direta, quase literal. O narrador/focalizador do conto clariceano está um busca de um nome que devolva para uma mulher sua identidade alterada, por uma nomeação imprópria. O narrador/focalizador de Franz Kafka, por sua vez, repele o nome recebido e, ao se colocar em busca de sua “palavra plena”, manifesta sua necessidade de devolver à palavra, qualquer que seja, sua condição adâmica.

Todavia, essa transparência foi destruída a partir de uma manobra que, substituindo o significado motivado pela designação, racionalizou o signo, convertendo-o em “signo do conhecimento” (FOUCAULT, 1966). Este procedimento desmotivador do signo só foi possível por conta da arbitrariedade estabelecida entre o significante e o significado. Isso não seria um problema se o signo resultante deste processo não reivindicasse a capacidade de representar com exatidão a realidade e o pensamento para fins de comunicação e de organização social. Mas ele reivindica e devido à arbitrariedade a que me referi, ele forja esta realidade, porque não é suficiente para representá-la. É neste “forjar” que o ser humano é “enredado”.

Los signos complementan la realidad y la interpretan arbitrariamente mediante el efecto de señalar diferencias, de forma que nos permiten crear significado a partir de esas diferencias, (TRIFONAS, 2007, p. 55), tudo isso “com la intención de identificar y compreender a que se refieren los signos em el mundo externo
(TRIFONAS, 2007, p. 55).

Decerto que a realidade existe ainda que construída. Nós estamos aqui para confirmarmos isso. Acontece que não estamos sós no mundo, por isso ele precisa ser organizado. O processo de organização desta sociedade é registrado pelos signos de distintas naturezas. No Ocidente eles são organizados em termos opositivos que assinalam diferenças, poderiam ter sido organizados de outra forma, certamente. Assim nós acessamos a realidade a partir dessas diferenças.

Agora, a realidade não é a mesma em países diferentes, mas os signos que utilizamos para acessá-la são os mesmos. O binômio branco e negro parece pertinente para o europeu, antigo colonizador. Qual seria a nomenclatura para os não brancos e os não negros? Mestiços? Pardos? Amarelos? Nenhum desses termos parece natural. Todos carregam um estigma herdado do passado.

Por este caráter binário bem marcado, o ser humano fica rendido em seu pensamento entre o ou isso, ou aquilo. Além disso existe todo um pensamento ocidental referendando e solidificando este princípio. Não é novidade afirmar que o “‘valor`” mais fundamental de todos seja “o princípio da não-contradição” (DE MAN, 1993, p.143). Como afirmar e negar uma mesma coisa ao mesmo tempo? Todavia uma observação desta realidade nos faz entender que as coisas não são bem assim. Não termos habilidades para afirmarmos duas coisas ao mesmo tempo não significa que as duas coisas ao mesmo tempo não possam existir.

Sendo assim movemos e acessamos a nossa “realidade” a partir desses dois princípios organizados para acessar a “realidade” do colonizador em seus fins políticos. De qualquer forma, ainda que postulados, são os signos que nos permitem organizar o mundo, formatá-lo, torná-lo real para nós. Mas se não nos damos conta desses aspectos, dessas contingências, tomamos o mundo, o nosso em torno pelo signo que o representa e não por ele mesmo. As mentes iluminadas pelo brilho da moeda estão de posse desse segredo e sabem muito bem como utilizar-se dele.

O neo - bezerro de ouro
Hoje qualquer significado pode ser colado, sobreposto, num determinado significante e depois fixado para qualquer fim. Esses fins numa sociedade capitalista sempre favoreceram a classe dominante, herdeira de todos os vencedores precedentes. Não podendo por isso serem vistos sem certa desconfiança. O novo significado ganha vida e se faz valer através de sua fixação que se dá pela repetição, com isto cria-se o hábito que automatiza o pensamento. Tanto Clarice Lispector quanto Franz Kafka procuram desgastar o peso do significado da palavra a fim de devolver-lhe o frescor.

É assim que o significante “Fantástico” que tradicionalmente significa algo maravilhoso, inocente, próprio para o imaginário, pode servir de isca para nomear um programa da “Rede Globo” que exibe em horário nobre, informações que nada têm a ver com o imaginário, posto já virem explicadas. Fatos reais, geralmente catastróficos e violentos, com cenas hediondas, que em certos filmes de ficção seriam censuradas por acreditarem-nas nocivas à personalidade. Em ambos os casos perde-se a significação primeira do nome tradicional e um novo significado vai sendo construído e este pode ser conduzido para outro, infinitamente. Assim a inocência evocada pelo primeiro código serve para atrair o olhar do telespectador, para fins diversos, dentre os quais, a colonização de seus gostos, a partir de anúncios que entremeiam os quadros apresentados e também a partir dos próprios quadros. Poderíamos perguntar até que ponto as cenas de reconstituição dos crimes não instigam o gosto para o consumo de filmes que exibem temas afins e os males sociais advindos destes “gostos”.

Assim também os nomes “Alfa”, “Ômega”, “Pálio” do imaginário mítico-cristão europeu, mas agora nosso também, pode referir-se tanto a Deus e ao tecido amarelado- creme que cobre o “Santíssimo Sacramento” nas procissões da igreja Católica na Itália, quanto a um tipo de carro da marca “Fiat”, esta italiana, e “Chevrolet
”. Esse nome “Fiat”, por exemplo, refere-se, no referido imaginário, ao “Sim” de Maria – é de Maria mãe de Jesus que falo. Observe a facilidade com que os nomes, símbolos de proteção, já cristalizados e fixados, no e pelo imaginário mítico-cristão-europeu foram transladados para os carros.

Toda a autenticidade primeira dos nomes, marcada pelo seu caráter ritual, a fim de elevar o ser à esfera do sagrado, vem servindo a propósitos políticos. A função social dos símbolos vem sendo radicalmente alterada. A linguagem não nasceu para subjugar o ser humano e sim para conduzi-lo à plenitude. E para isso ele precisa ser reintroduzido no uso de seu livre arbítrio. Um pensamento automatizado não é capaz disso.

No entanto, é graças à arbitrariedade do signo nesta relação significante/significado, possibilitando a migração dos sentidos que a literatura moderna vem conseguindo despertar o leitor para este aspecto violento e colonizador da linguagem, ou seja, que “[l]a história es um texto. Uma superfície brillante. Um conjunto de signos” (TRIFONAS, 2007, p. 36) e que a sua identidade é criada a partir da manipulação destes signos.

Diante de um texto bem escrito, alegórico, acontecem então ininterruptas metamorfoses: da linguagem, da História e do ser. Todo o mundo ou todo um mundo pode ser (re) visitado, (re) criado, (re) pensado. A alegoria assim o possibilita. Nesse sentido este tipo de texto pode promover o “apocalipse” da linguagem e, além disso fazê-la renascer, incessantemente, assim como o demonstrei com a palavra “fantástico”. Até porque a alegoria tende para este apagamento – escritura e letra - como forma de reconhecimento da impossibilidade da linguagem representar fidedignamente o real, qualquer que seja ele, e como forma de sugerir uma nova condução e concepção de escrita deste real pelo viés da mímesis da produção.

Entendo que na nossa condição de país pós-colonial, latino-americano e subalterno é esta a reação que um bom texto deve causar no leitor. É o seu posicionamento contra-ideológico, em todos os sentidos, que pode devolver-nos a capacidade de pensar o pensamento, perdida com a automatização e fixidez da linguagem, resultante de sua forma linear e de sua função instrumental.

Das hipóteses
Com esta pesquisa pretendo examinar e demonstrar três hipóteses, a saber:
1. A nomeação do ser humano que prescinde do nome próprio é um ato de violência.
2. A palavra racionalizada utilizada para fins de comunicação e artístico não é capaz nem de comunicar nem de representar a realidade “tal qual”.
3. A palavra poética, que estou chamando palavra “adâmica”, é capaz de lançar luz sobre as duas hipóteses anteriores, porque além de ter licença para manipular a palavra racionalizada, de modo a deixar a descoberto as suas limitações, ainda é capaz de revelar novos sentidos ou de purificar sentidos velhos, em conformidade com a intenção do escritor.

Concentrarei as investigações nos seguintes textos de Clarice Lispector e Franz Kafka. De Clarice: o conto “A menor mulher do mundo” e “Amor” de Laços de família, publicado em 1960 e o romance A Paixão segundo GH publicado em 1964. De Kafka: o conto “Um relatório para uma academia” de Um médico rural, publicado em 1919.

Do aparato teórico
O aparato teórico tem por referente o estudo da alteração da estrutura do signo, de ternário a binário, ocorrido na Europa nos séculos XVI e XVII; as implicações desta alteração para o saber, da semelhança para a distinção e, finalmente, para as implicações destas alterações na forma de representação do mundo, através da linguagem para fins de comunicação e da linguagem literária.

Em sua organização eu parto dos estudos feitos por Michel Foucault no seu livro As palavras e as coisas: Uma arqueologia das ciências humanas, publicado em 1966. Neste estudo ele afirma que até os fins do século XVI, a semelhança desempenhou um papel construtivo no saber da cultura ocidental. Ele liga esta semelhança à concepção de mundo da época. Acreditava-se que o mundo “enrolava-se sobre si mesmo: a terra repetindo o céu, os rostos mirando-se nas estrelas e a erva envolvendo nas suas hastes os segredos que eram úteis aos homens” (FOUCAULT, p.34). Como tudo era semelhante, em cada coisa havia uma marca, um sinal, que indicava a sua serventia para o homem.

Cabia ao saber encontrar essas marcas e a decifrá-las, desta forma “[o] signo significa[va] na medida em que revela[va] semelhança com aquilo que indica[va]” (FOUCAULT, p. 49). Desta maneira a forma de representar este mundo primava pela semelhança das coisas porque “[o] que Deus depôs no Mundo são palavras escritas; Adão, quando impôs os seus primeiros nomes aos animais, não fez mais do que ler essas marcas visíveis e silenciosas (...)” (FOUCAULT, p. 62).

Era função do saber “fazer falar tudo” ou seja “em fazer nascer sobre todas as marcas, o discurso ulterior do comentário” (FOUCAULT, p. 64). Neste caso “[a] linguagem t[inha] em si mesma o seu princípio interior de proliferação.” (FOUCAULT, p. 64).

No início do século XVII a natureza entra na ordem científica, com isso,

[a] atividade do espírito (...) já não consistirá em aproximar as coisas umas das outras (...) mas pelo contrário, em discernir, quer dizer, em estabelecer as identidades, e a seguir a necessidade da passagem para todos os graus de diferenciação. Neste sentido, o discernimento impõe à comparação a procura primitiva e fundamental da diferença
(...)” (FOUCAULT, p. 82).

Esta nova concepção altera a forma de representação do mundo. O “saber já não tem de ir arrancar a Palavra aos lugares desconhecidos onde ela porventura esteja oculta; cumpre-lhe fabricar uma língua” (FOUCAULT, p. 91) neste caso “o signo não é mais do que um elemento separado das coisas e constituído como signo do conhecimento” (FOUCAULT, p. 90) “Doravante é no interior do conhecimento que o signo começará a significar, é ao conhecimento que irá buscar a sua certeza ou a sua probabilidade” (FOUCAULT, p. 87).

Muito próximo destes estudos de Michel Foucault estão os estudos de Adorno e Horkheimer em sua obra intitulada Dialética do esclarecimento escrita em 1947. A partir deles é possível compreender melhor a modificação ocorrida na Europa a partir das tentativas do Projeto Iluminista de classificar e ordenar o mundo. Esta tarefa impossível, bem o sei, é manifestada por esses autores da seguinte maneira “o que não se submete ao critério da calculabilidade e da utilidade torna-se suspeito para o esclarecimento” (ADORNO E HORKHEIMER, 2006, p. 19). As idéias desenvolvidas por esses autores e por Michel Foucault lançarão luz no texto de Clarice Lispector, uma vez que a mulher africana encontrada por Marcel Pretre escapole do real.

Todos os demais teóricos utilizados nesta pesquisa, aqui se encontram porque têm seus estudos voltados para o fazer literário. O terceiro capítulo esclarecerá melhor seus estudos e os motivos pelos quais eles se encontram aqui em diálogo.

Dos capítulos
No capítulo I intitulado “Do literário ao literal, a travessia do oposto”, procurarei demonstrar a partir da análise do conto “Amor”, de Laços de família (1960) e do romance A paixão segundo G.H. (1964), que a linguagem de Clarice Lispector apresenta três movimentos: a escrita fora de si, a escrita em si e a escrita de si. Esses três movimentos é que lhe confere um aspecto alegórico que possibilita movimentação da escrita e das personagens. Na organização desta urdidura, a linguagem é iniciada de forma mais literária, escrita fora de si. Nesta forma, ela apresenta pontos cegos que podem ser reconhecidos em cenas sem sentido. Estas cenas por sua vez podem ser ressensibilizadas a partir de outra linguagem que entrecorta a literária, escrita em si, e que, inicialmente é difícil de ser percebida. Paralelamente a este movimento acontece a travessia das personagens Ana, do conto e G.H., do romance. Quem ilumina a vida de Ana é um narrador que narra e focaliza, já a vida de G.H. é narrada e focalizada por ela mesma. Em ambos os casos o que é narrado/focalizado é a travessia do amor fusional para um amor sem reciprocidade e, conseqüentemente de um “eu” genderizado para um “eu” adâmico.

No capítulo II intitulado “O nascimento e o resguardo da palavra adâmica de Clarice Lispector e Franz Kafka”, procurarei demonstrar que a linguagem instrumental resultante do trabalho com a palavra racionalizada é limitada em sua função representativa. Os escritores partem desta linguagem e vão purificando-a até deixá-la em condição de escritura. Nesta condição eles criam para ela novos sentidos, só que provisórios. Noutras horas eles conservam-na em condição de sopro, acenando com isso para o fato de que o discurso não sendo natural está marcado pelas ideologias dos Sistemas de representação que os organizam.

No capítulo III intitulado “Ponto de apoio para esta pesquisa”, procurarei esclarecer as teorias sobre linguagem que iluminam esse corpus e ambos os contos. No capítulo IV intitulado “Linguagem e construção da alteridade”, procurarei demonstrar, a partir da análise do conto “A menor mulher do mundo”, de Laços de família (1960), que este conto pode ser lido como uma alegoria do processo de colonização do Brasil, iniciado a partir de representações religiosas. Neste caso, o explorador francês Marcel Pretre acena para a figura dos jesuítas e do colonizador que eu justifico a partir do título que o nomeia “espírito científico” (LF, p.84). O aspecto mais relevante que abordo neste espaço é o modo como Marcel Pretre conduziu a linguagem, a partir de uma forma fixa, para converter uma mulher que ele descobriu na África na alteridade.

No capítulo V intitulado “Poética do desagravo” procurarei demo nstrar que tanto Marcel Pretre quanto o narrador/focalizador nomeiam a mulher africana. Todavia, a nomeação de Marcel Pretre é feita a partir de uma forma estereotipada e também comparada, que anula o seu ser, e a nomeação feita pelo narrador/focalizador consegue identificá-la, ligando-a a seu lugar de origem. O primeiro anula, o segundo conserva a identidade da mulher. Este último realiza o desagravo cometido pelo primeiro.

No capítulo VI intitulado “Claritas” realizarei uma leitura da penúltima cena do conto “A menor mulher do mundo”, a fim de demonstrar que o “balbucio” e o “rumor” barthesianos fazem parte da configuração daquela cena, mas que, num certo momento, a linguagem fica totalmente entregue ao rumor. Hora em que os sentidos ficam todos à deriva e precisam ser ressensibilizados."

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Fonte:
Lídia Maria Nazaré Alves: “CLARICE LISPECTOR E FRANZ KAFKA EM CENA: NÃO TOMAR SEU SANTO NOME EM VÃO”. (Dissertação de Doutorado apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Letras – Literatura Comparada da UFF - , como requisito parcial à obtenção do título de Doutor (a) em Literatura Comparada. Área de concentração: Literatura Comparada. Linha de Pesquisa: Literatura e vida cultural Orientadora: Dra. Lúcia Helena. Niterói – RJ, 2009.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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