Lima Barreto e a crítica


“Mesmo escrevendo para jornais e tendo publicado recordações do escrivão Isaías Caminha, a maior parte da crítica da época não manifestava opinião sobre Lima Barreto. Têm-se várias explicações para o silêncio da crítica, cada estudioso da obra do romancista apresenta uma opinião.

Na concepção de Martha, a pouca visibilidade de Lima Barreto diante da crítica se deu principalmente porque, no início do século XX, de 1907 a 1922, ainda havia resquícios do pensamento do século XIX, que foi muito influente na produção literária de tradição ocidental, como o Positivismo, Cientificismo, Determinismo. Essas correntes impunham um peso forte na postura dos críticos, fato que impediu o deslocamento do olhar para outras produções literárias. Tinha-se, à época, como referência de crítica literária: José Veríssimo – de longe a figura mais respeitada - Sílvio Romero, Araripe Júnior, Ronald de Carvalho, Nestor Vitor, João Ribeiro. Tais personalidades, entre outros, compunham um quadro múltiplo dos críticos das artes brasileiras até 1922, esses e outros nomes que se juntaram ao grupo serão as referências da crítica literária do país.

Os jornais e as revistas da época do eixo Rio-São Paulo eram os meios de comunicação que, responsáveis pela divulgação das críticas, eram o locus de apresentação das letras brasileiras e principalmente da obra de Lima Barreto até sua morte. As discussões literárias que os jornais e revistas apresentavam atingiam um público heterogêneo, desde os leitores da elite, instruídos, àqueles com pouca instrução. O crítico era o elo de ligação entre o produtor literário e o público. Normalmente, o profissional que exercia esta função estava ligando a uma estrutura de poder do Estado, logo era visto como autoridade.

O crítico, portanto, desfrutava de posição central dentro do campo do poder. Era ele quem fazia e desfazia sucessos, dando a palavra final sobre autores do presente e do passado. Este poder da crítica, que numa sociedade cordial como a nossa, em que a esfera pública é regida pelas regras da esfera privada, acabou sendo granulado ao longo das décadas.

A crítica feita nos jornais poderia apresentar duas facetas, eleger o autor e a obra ou, pelo contrário, confiná-los à marginalização. O caráter inovador da obra poderia ser algo sem sentido, pobre, sem propósito, tomando-se como parâmetro o modelo de literatura vigente; ou, ao contrário, a obra poderia ser avaliada sem levar-se em consideração o traço inovador do artista.

O crítico Alfredo Bosi considera Lima Barreto o grande escritor brasileiro após 13 de maio de 1888, pois ele conseguiu andar na contracorrente da história e tornou-se um intelectual negro que firmou seu lugar na sociedade, contrariando a situação em que vivia a maioria dos negros lançados à própria sorte, a qual transformou a situação desta população em uma grande incógnita. Paradoxalmente, estavam livres do trabalho escravo, mas presos a conceitos discriminatórios. Para o crítico, Lima Barreto “tinha consciência do seu lugar social e resistiu a diluir-se nas práticas e discussões dominantes.” O escritor enxergava as incursões nos discursos dos intelectuais brancos, os quais defendiam o outro para colocá-los na posição de dependentes, subalternos. O romancista sentia-se no lugar desse outro, sentia-se objeto de favor, e, através da metáfora do texto é que o escritor irá mostrar a condição do intelectual mestiço ou negro. Por meio dos personagens criados, como Clara dos Anjos, Ricardo Coração dos Outros e tantos outros, ele registra a condição de homem exilado sob a cor da pele, contrariando todas as normas de conduta tanto para os que dominavam as letras como para os brasileiros melanodermes do início do século XX.

Mas doía nele um desejo de que sua palavra de escritor, rompendo com os vezos florais da época, fizesse obra de transparência absoluta. A luta pela autenticidade da expressão, a ser conquistada custasse o que custasse, o compelia a desfazer, a partir da ética individual, o nó que armava o gosto e os preconceitos do seu tempo. Sabe-se o quanto seus textos de ficção sofreram sob o fogo da auto-análise. Um discurso confessional, sem reservas nem perífrases, toma corpo desde a abertura das Recordações do escrivão Isaías Caminha.

Lima Barreto achava que a contribuição da crítica literária estava em ela exercer seu papel e emitir opinião sobre as produções, quer fossem essas boas ou ruins, a literatura se faz dessa dicotomia. Para o literato, não cabia ao papel do crítico considerar elementos que não fossem estritamente ligados à produção artística; não havia espaço nesse contexto que as afinidades entre autor e crítico interferissem na emissão de opinião sobre a obra.

Triste fim de Policarpo Quaresma
é publicado em forma de folhetins no Jornal do Comércio, o livro que irá, no futuro, consagrar a vida literária de Lima Barreto foi escrito em menos de três meses. A essa altura de sua vida, o escritor já havia buscado a bebida como uma forma de fugir dos problemas por que passava. O álcool era para Lima Barreto um subterfúgio, uma forma de fazê-lo esquecer das barreiras que lhe surgiam no dia-a-dia, por mais que isso o incomodasse. Assim, ele registra em seu diário, relatando uma conversa que tivera com o médico:

Não me achou muito arruinado e, muito polidamente, deu-me conselho para reagir contra meu vício. Oh! Meu Deus! Como eu tenho feito para extirpá-lo e, parecendo-me que todas as dificuldades de dinheiro que sofro são devidas a ele, e por sofrê-las, é que vou à bebida. Parece uma contradição; é, porém, o que se passa em mim. Eu queria um grande choque moral, pois físicos já os tenho sofrido, semimorais, como toda espécie de humilhação também. Se foi o choque moral da loucura progressiva do meu pai, do sentimento de não poder ter a liberdade de realizar o ideal que tinha na vida, que me levou a ela, um outro bem forte, mas agradável, que abrisse outras perspectivas de vida, talvez me tirasse dessa imunda bebida que, além de me fazer porco, me faz burro.

Somado às questões familiares, estava profundamente decepcionado com o pouco sucesso de Recordações do escrivão Isaías Caminha. Novamente sente que as portas estavam fechadas para ele. Mesmo buscando consolo no álcool, e sofrendo as consequências que essa atitude lhe trazia, o romancista não se afastava da vida intelectual. No período de lançamento de Triste fim de Policarpo Quaresma, a crítica e os jornais da época simplesmente silenciaram-se. O criador do major Quaresma tinha consciência do que significava a recusa dos principais meios de comunicação em falar sobre seu livro. Sua condição de escritor pobre, mulato, que não podia contar com a ajuda de poderosos, contribuía muito para aquele silêncio.

Em 1914 participou da fundação da Sociedade dos Homens de Letras, da qual para sua frustração não fez parte da diretoria. É ainda nesse ano que Lima Barreto é internado no Hospital Nacional dos Alienados. Depois de recuperado e saído do Hospital, em vinte e cinco dias, Lima Barreto escreve Numa e Ninfa, mas a preocupação do autor no momento era com a publicação do romance Triste fim de Policarpo Quaresma. A recepção do romance foi diferente da primeira experiência, essa agora era alvo de melhores críticas. Alguns jornais como Jornal do Comércio, O País, Gazeta de Notícias, A Notícia, A Noite, A Época, teceram elogios à obra. O crítico Vítor Viana, no Jornal do Comércio, colocou Lima Barreto à altura de escritores nacionais como Machado de Assis. Jackson de Figueiredo diz que o autor supera o criador de Dom Casmurro. Monteiro Lobato também acredita que os livros de Lima superarão os de Machado de Assis:

Que obra preciosa que estais a fazer! Mais tarde será nos teus livros e em alguns de Machado de Assis, mas sobretudo nos teus, que os posteros poderão sentir o Rio atual com todas as suas mazelas de salão por cima e Sapucaia por baixo. Paisagens e almas todas, está tudo ali.

Finalmente é chegada a tão esperada glória do escritor da periferia do Rio de Janeiro. Havia alcançado o reconhecimento de alguns intelectuais brasileiros. Apesar de feliz com o reconhecimento de seu talento, Lima Barreto não gosta da comparação que lhe é feita com o presidente da Academia Brasileira de Letras (ABL), pois dizia ser diferente de Machado no tocante a não ter medo de falar de suas origens e temas ligados à mesma. Pereira, no entanto, diz que por maiores que tenham sido as diferenças entre Machado e Lima Barreto, havia algo que os aproximava: a vocação de romancista, pois ambos têm a capacidade de extrair a essência da vida, e conhecer seus mistérios. Machado, na época, consagrado como um dos maiores nomes da literatura. Lima Barreto, a voz que reverbera e mostra, enfim, o surgimento de um romancista para romper o léxico, a estagnação, o conceito de literatura no Brasil do início do século.

Hoje em dia, Triste fim de Policarpo Quaresma é considerado uma das obras-primas da literatura brasileira. Para constatar, basta folhear os manuais de literatura. É considerada a obra de ficção de melhor composição ficcional do autor desde 1911, na concepção do crítico Silviano Santiago. O crítico carioca elogia a construção da obra pela capacidade do autor em transformar em romance uma publicação antes feita em folhetins sem com isso perder o fio da meada ficcional. uma enorme bibliografia sobre Lima Barreto, muitas e muitas teses defendidas sobre os mais variados temas, prova de que o autor transitou por contextos diversos no mundo literário.

Passeando por esta bibliografia a respeito do escritor carioca, encontram-se algumas contradições a respeito da obra, algumas delas apresentadas aqui neste texto. Por exemplo, quando se trata da recepção de Triste fim de Policarpo Quaresma pela crítica da época em que este foi publicado. A autora Martha fala da repercussão da publicação em 1911, quando essa foi feita em forma de folhetim no Jornal do Comércio e que a crítica não deu importância. A autora não menciona o modo como foi recebida a mesma obra publicada quatro anos depois em forma de romance. Já Francisco de Assis Barbosa, diz que Lima Barreto já havia, a essa época, conquistado lugar de respeito na comunidade literária, quer fossem os jovens escritores à procura de uma opinião do escritor, quer fossem os críticos já citados aqui. Cabe a pergunta: a quem a autora está se referindo quando diz que houve silêncio diante da publicação? Será que o reconhecimento só era válido se recebesse o aval dos autores canonizados?

Após o lançamento de Numa e Ninfa, Lima Barreto está completamente entregue ao álcool, some por dias, tem alucinações, entretanto, nunca deixa de contribuir com os jornais. A voz do jornalista escritor, não ecoava na imprensa carioca, sua postura crítica, sincera e irônica, havia transposto as fronteiras do Rio de Janeiro. Como mostra Barbosa:

Mesmo doente, Lima Barreto continua a escrever na imprensa libertária. Com o desaparecimento de O Debate, logo depois da declaração da guerra da Alemanha, comparece frequentemente nas colunas do A.B.C., de Brás Cubas, da Revista Contemporânea, panfletos políticos ou revistas literárias, que dão guarida às suas idéias maximalistas. Escreve também nos jornais revolucionários do Rio, São Paulo e até Porto Alegre, como Lanterna, O cosmopolita, O Parafuso, A Patuléia, porém com menos assiduidade.

Em dezembro de 1918, acontece algo muito importante na vida de Lima Barreto. Finalmente o escritor firma contrato com Monteiro Lobato para publicação do seu livro Vida e morte M .J. Gonzaga de Sá. Monteiro Lobato editor trouxe ao Brasil do início do século XX uma mudança muito importante no que concerne ao contexto editorial. Devido ao episódio com Anita Malfati, o criador de Emília ganhou fama de estar contra “inovações literárias” e os modernistas. No entanto, só uma pessoa que acreditava no novo, no moderno, poderia competir num campo onde os adversários eram aqueles considerados da elite e primavam por uma escrita acadêmica, logo desprezando qualquer coisa que fugisse dessa tônica. E foi com essa postura que Lobato mudou a história do mercado editorial brasileiro.

Muitos dos livros dos nossos melhores escritores da época foram publicados no exterior, só para citar alguns desses escritores, temos Lima Barreto, Machado de Assis, Graça Aranha, Coelho Neto. Lobato, com atitudes inovadoras e inteligentes, conseguiu imprimir uma nova dinâmica ao ramo de edição de livros. Ao constatar que no Brasil só havia trinta casas para distribuir os livros editados, o autor usa os correios, como meio de alcançar os mais variados lugares do Brasil em que um estabelecimento comercial pudesse comercializar seu produto em regime consignado. A idéia foi um sucesso. Nunca se produziu tantos exemplares de um mesmo livro no país. Edições que antes não passavam de 500 exemplares, após a incursão de Lobato passaram de 3.000 exemplares. Outra característica que diferencia o editor é sua preferência por autores não canonizados, pouco conhecidos da crítica, e, principalmente, que apresentassem uma linguagem diferenciada, mais simples, menos academicista.

Lobato também acolhia a indicação dos amigos para publicação de obras de escritores novos, como se pode perceber através da correspondência do empresário com Lima Barreto, em que este responde a uma carta:

“30/06/1920
Meu caro Lobato.
Recebi dias uma carta tua. Pela leitura dela, vi que havias lido o que escrevi na Gazeta sobre Mme. Pommery. Também do Toledo Malta, recebi uma carta de agradecimento sobre o que disse a respeito do interessante livro dele.”

Era um fato inédito o escritor receber pela publicação de um romance seu; até então, ele próprio havia custeado as edições ou, quando não, vendeu os direitos autorais como fez com Bruzundangas. A publicação de Vida e morte de M J Gonzaga de Sá trouxe a Lima Barreto a sensação de um justo reconhecimento pelo seu trabalho literário. Esse reconhecimento se solidificou também porque, a essa altura, sua obra era recebida pela crítica, não como a de um novato, ou coisa do gênero, como aconteceu com Recordações do escrivão Isaías Caminha. Agora o autor já estava maduro, tinha um perfil próprio e era conclamado por isso. Assim, vários expoentes da crítica, a exemplo de João Ribeiro e Tristão de Ataíde, vêm a público elogiar a última produção do autor. Ainda que houvesse alguns críticos que elogiassem Lima, os comentários eram poucos em comparação à dimensão de sua obra. O romancista responde a esse silêncio ao continuar produzindo, escrevendo, falando contra uma crítica tendenciosa e academicista. Nos três últimos anos de sua vida, 1920 a 1922, Lima Barreto, como que sentindo que o fim estava próximo, escreve cinco obras: Histórias e sonhos, Marginalia, Feiras e Mafuás, Bagatelas e Clara dos Anjos. Dessas, só veria pronta Histórias e sonhos. Depois que deixou o Hospital dos Alienados pela segunda vez, o jornalista escritor escreveu Cemitérios dos vivos. Diferente das demais obras, essa já encontra um Lima Barreto mais aprazado, posto que, a essa altura de sua vida, já estava circunscrito o valor de sua obra, ainda que muitos resistissem em admitir.

Cônscio de sua potencialidade e também encarando como mais um desafio em sua vida, Lima Barreto se candidata à Academia Brasileira de Letras na vaga de Emílio Menezes. Ainda que contasse com voto de João Ribeiro que, na véspera da eleição, declara sua admiração ao autor e seu merecimento à vaga, segundo Martha, a ABL também é mais uma das instituições que não deram visibilidade a Lima Barreto. As revistas da Academia nunca fizeram menção ao escritor, nem mesmo quando começou, a partir de 1910, a publicar textos dos escritores contemporâneos de Lima, como Euclides da Cunha, Afrânio Peixoto, Raul Pompéia, Humberto de Campos. Além dos textos dos autores, nas mesmas revistas circulavam críticas às obras elevando-as ao posto de verdadeiras produções literárias brasileiras. Para não dizer que não falou do escritor, em 1921, ao trazer a lista dos vencedores de um concurso promovido pela própria instituição, consta nela o nome de Lima Barreto, que recebera homenagem honrosa pelo romance Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá. O romance não fora escolhido como melhor livro do ano, mas como “consolo”, recebeu uma crítica um tanto amarga da ABL que vale a pena apresentar:

Seu [de Lima Barreto] último romance, último tão somente na ordem cronológica, é Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá (ele tem o gosto demodé dos títulos extensos, à século XVIII).[...].Pena é que a história do raté de nova espécie, onde há páginas de saudade melancólica e de ironia repulsiva, se alongue demasiado por processos mecânicos, que lhe diminuem o interesse da leitura. (REVISTA DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS, 1921).

Sabe-se que as teias que sustam a política da Academia Brasileira de Letras formam um designe no qual só é permitido fazer parte do conjunto, aqueles que, direta ou indiretamente, gravitam ao redor do grupo dos “canonizados” e, como os membros oficiais, endossem o discurso do purismo gramatical. Neste aspecto, o autor de Triste fim de Policarpo Quaresma apresenta um discurso dissonante desse projeto da ABL. A atitude de Lima Barreto em sustentar uma postura em que primasse por uma escrita popular, num contexto em que a erudição da leitura era um fator decisivo para consagração do texto, o escritor se assume como um artista que não está preso às convenções do seu tempo. Aliado à questão da linguagem, há outros aspectos que distanciam ainda mais a obra do escritor carioca dos membros da Academia, entre eles pode-se considerar a preocupação com os acontecimentos político-sociais do contexto em que está inserido. Além dos aspectos ligados ao estilo de Lima Barreto, deve-se levar em conta também sua origem: pobre, mulato e sem amizades diretamente ligadas à instituição.

Após aposentar-se do serviço público, Lima Barreto não tinha motivos para se conter, em seus artigos e crônicas, quando fazia críticas às instituições públicas onde o autor “sentia-se amordaçado”, como escreve em seu diário. Daí em diante, passa a escrever sem reservas sobre o que pensava. Seu prestígio na imprensa estava consagrado. Escrevia em Careta, ABC, Hoje, Rio Jornal, A Notícia, O País e na Gazeta de Notícias. Sempre fiel aos seus princípios e polemista, suas críticas sarcásticas falam muito sobre o pensamento de Lima Barreto. Mesmo nos momentos mais difíceis de sua vida, o escritor jamais deixou de amar a literatura, esta era afinal a motivação para vencer as dificuldades da vida. Literatura que era muito mais que a contemplação do belo, deleite dos sentidos, Lima Barreto via nesta arte a manifestação mais profunda da linguagem com a qual se resgataria o homem; seria o elo que uniria passado, raças e pessoas. Pode-se perceber esse ideal do autor em um dos seus textos que escreveu para uma conferência sobre literatura:

Mais do que qualquer outra atividade espiritual da nossa espécie, a Arte, especialmente a Literatura, a que me dediquei e com que me casei; mais do que ela nenhum outro meio de comunicação entre os homens, em virtude mesmo do seu poder de contágio, teve, tem e terá um grande destino na nossa triste Humanidade. Os homens só dominam os outros animais e conseguem em seu proveito ir captando as forças naturais, porque são inteligentes. A sua verdadeira força e a inteligência; e o progresso e desenvolvimento desta decorrem do fato de sermos nós animais sociáveis, dispondo de um meio quase perfeito de comunicação, que é a linguagem, com a qual nos é permitido somar e multiplicar a força de pensamento do indivíduo, da família, das nações, das raças, e, até mesmo, das gerações passadas graças à escrita e à tradição oral que guardam as cogitações e conquistas mentais delas e as ligam às subseqüentes. (...)
Fazendo-nos assim tudo compreender; entrando nos segredos das vidas a das cousas, a Literatura reforça nosso natural sentimento de solidariedade com nossos semelhantes, explicando-lhes os defeitos, realçando-lhes as qualidades e zombando dos fúteis motivos que nos separam um dos outros. Ela tende a obrigar todos nós a nos tolerarmos e nos compreendermos; (...)

Lima Barreto colaborou por toda sua vida com a imprensa alternativa, ainda que tenha começado a escrever de forma profissional no Correio da Manhã. Mesmo após haver conquistado o respeito do público e da crítica, tendo textos, principalmente as crônicas, editados por revistas de prestígio como A Careta e Cruz e Sousa, continua colaborando com pequenas revistas que se opunham ao poder instituído. Recentemente, foram publicados por uma estudiosa de Lima Barreto, Beatriz Resende, dois volumes de crônicas que o escritor produziu durante sua carreira. A pena de Lima Barreto cronista trabalhava contra a europeização que vinha acontecendo no Rio de Janeiro, o cronista era contra a reurbanização da cidade e manifesta sua posição através de crônicas, a exemplo de O Convento na qual denuncia a ameaça de derrubarem o Convento da Ajuda para construção de um hotel e critica àqueles que queriam ver uma Rio-Paris.

“O convento não tinha beleza alguma, mas era honesto; o tal hotel não terá beleza alguma e será desonesto, no seu intuito de surrupiar a falta de beleza com as suas proporções mastodônticas.
De resto, não se pode compreender uma cidade sem esses marcos de sua vida anterior, sem esses sinais de pedra que contam a sua história. Repito: não gosto do passado.
Não é pelo passado em si, é pelo veneno que ele deposita em forma de preconceitos, de regras, de prejulgamentos em nossos sentimentos.”

As crônicas falavam também sobre a utilização da cultura, a qual ele denominava coelhonetismo, referência a Coelho Neto e, por inferência, a demais intelectuais da época que também mantinham um estilo academicista, pensamento e escritas conservadores, a exemplo de José Veríssimo, Joaquim Nabuco, Olavo Bilac, entre outros. Seus livros são considerados verdadeiras crônicas do Rio de Janeiro. Conhecedor que era da cidade onde nascera e morrera, o autor se esmerava em exprimir a vida na cidade de maneira apaixonante.

O conto foi um gênero literário em que Lima Barreto demonstrou plena capacidade, pois era possuidor de grande sensibilidade e senso de observação. O autor apresenta uma tendência para narrativas curtas, uma vez que demonstrou capacidade para captar detalhes, e elementos essenciais dos fatos narrados, além, é claro, do fato de ter uma vida um pouco atribulada para concentrar-se em narrativas mais longas.

Faltava-lhe fôlego ou talvez, sobretudo, disposição e tranqüilidade de vida para trabalhos mais longos, exprimia-se melhor naqueles que exigiam o poder de concentrar a emoção de comunicá-la rapidamente, de captar somente os elementos essenciais, sem, entretanto, prejudicar a ambiência necessária à vida dos personagens. O acordo íntimo entre o cenário e as criaturas é nele sempre completo, e talvez provenha não do seu temperamento de escritor, que aliviava a introspecção à objetividade, como também de serem uns e outros cariocas.

Além de cronista, romancista, contista Lima Barreto ganha fama também como resenhista. Esta habilidade do escritor o coloca no mesmo espaço de muitos intelectuais do momento. No jornal A.B.C., tem um espaço que chama “crônica literária”, o escritor no qual publica seu parecer sobre livros que lhe eram enviados pelos próprios autores ávidos pela opinião do intelectual. Assim o foi com Théo Filho, romancista e jornalista que teve seus livros Do vagão-leito à prisão e 365 de boulevar resenhados por Lima Barreto. Mas não só de política e literatura se faziam as crônicas de Lima Barreto. O subúrbio, antes tão odiado pelo escritor, no fim de sua vida ganha outra conotação quando passa a ser personagem dos textos publicados diariamente em jornais; são bailes, enterros, passageiros de trem, pessoas comuns que, como o autor das histórias, também era parte da cidade do Rio de Janeiro.

Triste fim de Policarpo Quaresma
, hoje em dia, é considerado uma obra-prima da literatura brasileira. Em algumas circunstâncias, a vida do protagonista se confunde com a do escritor. Encontra-se em ambos a representação do intelectual dissidente: Quaresma, por amor à pátria, assume posturas que vão de encontro aos interesses sócio-políticos dos governantes. Lima Barreto, por entender que o texto literário é mais que um objeto de contemplação, assume um tom que já lhe era comum enquanto jornalista, contudo não coaduna com a produção literária da elite pensante do país. Lima Barreto rasura o discurso da literatura nacional quando apresenta o avesso de um nacionalismo, mostrando ao mundo e aos próprios brasileiros os problemas reais do país. Triste fim de Policarpo Quaresma consagra um estilo em que o jornalista Afonso Henrique faz da palavra literária um instrumento de encanto e denúncia."

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Fonte:
CLEIDINALVA CARNEIRO DA SILVA: "CANAÃ E TRISTE FIM DE POLICARPO QUARESMA: DOIS MOMENTOS DE REPRESENTAÇÕES DO NEGRO NO BRASIL". (Dissertação apresentada ao Programa Multidisciplinar em Estudos Étnicos e Africanos Mestrado, pela Universidade Federal da Bahia, e Doutorado como requisito para obtenção do grau de Mestre. Orientadora: Dra. Florentina da Silva Souza). Salvador 2009.

Nota
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O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
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Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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