Lima Barreto entre as letras e os subúrbios



“A análise dos motivos que levam um sujeito a desenvolver uma determinada atividade na sociedade em que atua está relacionada às experiências que vivenciou ao longo de sua jornada. Em outras palavras, o acompanhamento dos diferentes momentos da sua existência é o que nos oferece os indícios indispensáveis para compreendermos as suas escolhas dentre as possibilidades que existiam na época em que viveu. A partir dessa perspectiva, vamos observar o caminho percorrido pelo escritor Lima Barreto, tendo como ponto de saída o convívio, durante a sua infância, com o seu ambiente familiar.

Segundo o seu biógrafo, Francisco de Assis Barbosa, Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu em 1881 na cidade do Rio de Janeiro. Os seus pais foram os mulatos João Henriques de Lima Barreto e Amália Augusta Barreto. Estes dois personagens tiveram, de certo modo, uma trajetória diferenciada da maior parte das pessoas de mesma descendência daquele Rio de fins do século XIX no qual a escravidão, embora já apresentando sinais de decadência, ainda marcava profundamente a sociedade. João Henriques, filho de uma escrava (Carlota Maria dos Anjos) e de um português que não reconhecera a sua paternidade, teve uma instrução considerável com estudos de humanidades e francês realizados no Instituto Comercial da Corte, chegando a realizar estudos preparatórios, durante as folgas de seu trabalho como tipógrafo, a fim de entrar na Escola de Medicina.

Já Amália Augusta era filha de uma liberta que trabalhava para a família Pereira de Carvalho cujo chefe era o cirurgião Manoel Feliciano. Este, afirma Francisco Barbosa a partir de informação cedida pela irmã de Lima D. Evangelina, era o provável bisavô de Lima Barreto, pois suspeitavam que Amália e seus três irmãos fossem “filhos dos varões da casa”.

Aquela família auxiliou a criação de Amália, dando-lhe condições para que se diplomasse em professora pública, o que, após o casamento com João Henriques, permitiu a abertura do seu colégio para meninas chamado Santa Rosa em 1878 no bairro das Laranjeiras.

Essa origem dos seus pais marcaria profundamente a formação de Lima Barreto não só pela contribuição que eles puderam dar nos seus estudos como no que se refere ao tema do preconceito racial presente na sua produção literária. Ao observamos a primeira versão (incompleta) do romance Clara dos Anjos de 1904 e a definitiva, publicada inicialmente em 1922, bem como o conto homônimo presente na obra Histórias e Sonhos de 1920, percebemos um enredo construído em torno de uma personagem mulata seduzida por um branco que não assume a relação e a abandona.

Em linhas anteriores, vimos que o sobrenome Anjos era também o da sua avó paterna abandonada por um português e havia a “suspeita” de que Amália era filha de um Pereira de Carvalho. O contato com essa história familiar pode ter sido um dos primeiros momentos que levaram Lima Barreto a perceber as desigualdades presentes na sua sociedade, principalmente o tratamento e a visão estereotipada da mulher negra, representada como passiva, relegada à derrota biológica e ao abandono social.

O aprofundamento da sua percepção de homem de origem negra e pobre também se deu a partir do convívio com sujeitos de sua condição e de outras camadas sociais, tanto inferiores quanto superiores. Dentre esses convívios, merece destaque a relação de amizade com o preto velho Manuel de Oliveira. Este, “cabinda de nação”, após a sua vinda ainda menino da Costa da África foi comprado por um português que lhe ensinou “o ofício de plantar couves”.

Já liberto, foi abandonado pela sua companheira e “ficou pateta”, vagando pelas ruas da cidade do Rio até ser apanhado pela polícia e levado para o Asilo dos Mendigos. Desse local foi enviado à Ilha do Governador para uma “espécie de colônia de pedintes” fundada nos últimos anos do Império, segundo nos informa o próprio Lima Barreto em artigo publicado na Revista Souza Cruz (01/05/1921).

O início dessa amizade se deu quando a família de Lima passou a residir na Ilha do Governador por conta da nomeação de seu pai para o cargo de almoxarife das Colônias dos Alienados em 1891, instituição que, com a República, substituiu aquele Asilo dos Mendigos. Em anotações pessoais do ano de 1916, Lima confirma que Manuel viveu com a sua família cerca de mais de vinte anos e possuía “de sua nação um orgulho inglês”. Esse orgulho de Manuel chamou bastante atenção de Lima Barreto que assim narra sua conversa com o preto velho:

Coisa curiosa! Oliveira tinha em grande conta a sua dolorosa Costa d’África. Se eu motejava dela, o meu humilde amigo dizia-me:
- “Seu Lifonso”, o senhor diz que não quem saiba ler. Pois olhe: os doutores daqui, quando querem saber melhor, vão estudar lá.
Além de ter esse singular e geral orgulho pela África, ele tinha um particular pela sua “nação”. Para ele, cabinda era nacionalidade mais perfeita e superior da Terra. Nem todo negro podia ser cabinda.
[...]
As suas opiniões políticas eram curiosas. [...]
[...] ele informava que o governo de sua terra era melhor que o daqui, porque lá havia, ao mesmo tempo, imperador e presidente da República.

Esse diálogo deve ter sido de grande aprendizado para Lima Barreto, pois Manuel com suas afirmativas invertia toda uma escala de valores que tinha o homem branco europeu como culto e superior em relação aos demais povos. Algo extremamente significativo para um escritor que vivenciou discriminações ao longo de sua vida e possuía a pretensão de, em inícios de sua vida literária, escrever “a História da Escravidão Negra no Brasil e sua influência na nossa nacionalidade”.

A sua passagem por instituições de ensino possibilitou o contato com sujeitos de camadas mais elevadas da sociedade carioca e o acesso à cultura letrada de sua época que era extremamente alicerçada na cultura européia. Depois de freqüentar a Escola Pública, Lima Barreto vai estudar, graças ao apoio financeiro de seu padrinho Afonso Celso de Assis Figueiredo, o Visconde de Ouro Preto, no Liceu Popular Niteroiense em 1891 que era dirigido pelo educador de origem escocesa William Cunditt e tinha por estudantes jovens de famílias ricas.

Nesse período, Lima Barreto recebe seus primeiros estímulos para a leitura. Inicialmente por meio de um prêmio escolar concedido durante a sua estada na Escola Pública que foi um volume de As grandes invenções de Luís Figuier e, em seguida, uma coleção de Júlio Verne dada por seu pai quando da sua entrada no Liceu.

Contudo, foi na Escola Politécnica que Lima Barreto ampliou seu leque de leituras e adquiriu mais noção da discriminação sofrida pelos sujeitos pobres e de descendência negra. A sua trajetória nessa instituição, localizada no Largo de São Francisco, teve início em 1897 e, segundo o próprio Lima, era um ambiente que o asfixiava, pois “todos os meus colegas, filhos de graúdos de toda sorte, que me tratavam, quando tratavam, com um compassivo desdém, formavam uma ambiência que me intimidava, que me abafava [...]”.

O jovem Lima procurava, então, refúgio na Biblioteca Nacional ou na da própria Politécnica, lendo obras de pensadores europeus como Kant, Spencer e Comte como também literatos nacionais do porte de José de Alencar e Gonçalves Dias e autores que se debruçavam sobre a História do Brasil a exemplo de Capistrano de Abreu e Francisco Varnhagen que, como veremos, auxiliariam na definição dos rumos da sua literatura.

A dedicação nos estudos para se tornar “doutor” parece ter sido um desejo mais do pai João Henriques que do filho Afonso. Este afirmou, em 1919, a respeito de sua passagem pela Politécnica:

Fui perdendo o estímulo; mas a autoridade de meu pai, que me queria ver formado, me obrigava a ir tenteando... [...] Teoria do pêndulo... Teorema das áreas... Que sei eu mais? Nada!... Desgostava-me e era reprovado; e as minhas reprovações desgostavam meu pai, tanto mais que, a bem dizer, até aí, não tenha sido reprovado.

Ao lado do preconceito e da discriminação que percebia nos seus colegas, havia ainda a insatisfação com a área que estudava com objetivo de exercer atividade profissional. Essa situação se agravou mais com a doença do pai que acaba enlouquecendo em 1902.

Isso levou a família Barreto a deixar a Ilha do Governador para residir, inicialmente de forma temporária, no subúrbio carioca do Engenho Novo, pois o médico e amigo da família Dr. Braule Pinto recomendou que afastasse o pai do ambiente das Colônias de Alienados com a esperança de que seu estado melhorasse. Entretanto, João Henriques não melhorou, sendo decretada a sua aposentadoria em 2 de março de 1903 do cargo de administrador das Colônias e expedido o seu título de aposentado só em 12 de julho do mesmo ano.

Essa situação gerou mais dificuldades para a família Barreto. Assim, Lima, como era o filho mais velho, tornou-se o seu chefe, o que o levou a abandonar de uma vez a Politécnica, assumir o cargo de amanuense da Secretaria da Guerra em 1903 e a se mudar definitivamente para o subúrbio de Todos os Santos onde residiria até o fim de sua vida em 1922.

Mas enquanto esteve na Politécnica, Lima Barreto experimentou situações que lhe dariam subsídios interessantes para a sua futura produção literária. Em primeiro lugar, a experiência de viver no Rio como estudante sem ser interno, morando em pensão para estudantes. Além da oportunidade de conhecer melhor a cidade, havia a condição de ampliar suas relações apesar de sua timidez e das horas que dedicava às suas leituras nas bibliotecas.

Dessa forma, acabou participando da Federação de Estudantes que, fundada em 1901, justificava sua existência social pela “ação inteligente”, combatendo o regionalismo e propagando a instrução do operariado o que, segundo o seu manifesto, talvez facilitasse “a solução do problema social”. Lima, demonstrando independência, afastou-se logo depois da Federação por não concordar com a representação enviada por esta ao “Congresso Nacional favorável ao serviço militar obrigatório”.

A sua participação na Federação de Estudantes nos permite vislumbrar alguns possíveis anseios do jovem Lima naquele início de século XX. A preocupação da Federação com a “solução do problema social” talvez tenha atraído o estudante mulato pela possibilidade da articulação de ações que visassem a diminuição das diferenças entre os homens; já o motivo de seu afastamento talvez revele sua indignação frente a qualquer medida que viesse a limitar a liberdade do sujeito.

Já vimos como Lima Barreto se sentia intimidado e sufocado naquele ambiente da Politécnica tanto pelo preconceito de seus colegas quanto pelas sucessivas reprovações na disciplina Cálculo da responsabilidade do professor Licínio Cardoso, o que possivelmente lhe despertava o desejo de mudanças. Ao retornarmos para sua infância, encontramos dois momentos que muito lhe marcaram.

O primeiro foi o dia da abolição da escravidão. O simples início do mês de maio era para Lima Barreto como um “renovamento” de sua alma e desabrochar de suas ambições, a chegada de “revoadas de sonhos”. Lima narra que seu pai foi quem lhe avisou que “a lei da abolição” ia “passar no dia” de seu aniversário, levando-o para o Largo do Paço para esperar a assinatura. Assim relembra o escritor daqueles dias de maio de 1888:

Fazia sol e o dia estava claro. Jamais, na minha vida, vi tanta alegria. Era geral, era total; e os dias que se seguiram, dias de folganças e satisfação, deram-me uma visão da vida inteiramente festa e harmonia.
[...]
Quando fui para o colégio, um colégio público, à Rua do Resende, a alegria entre a criançada era grande. Nós não sabíamos o alcance da lei, mas a alegria ambiente nos tinha tomado.
A professora, Dona Tereza Pimentel do Amaral, uma senhora muito inteligente, a quem muito deve meu espírito, creio que nos explicou a significação da coisa; mas com aquele feitio mental de criança, só uma coisa me ficou: livre! livre!
Julgava que podíamos fazer tudo que quiséssemos; que dali em diante não havia mais limitação aos propósitos da nossa fantasia.

Contudo, quando retorna ao momento de escrita dessas recordações, Lima escreve esse texto em 1911, assinala: “Mas como estamos longe de ser livres! Como ainda nos enleamos nas teias dos preceitos, das regras e das leis!” Nas linhas seguintes, após apontar “os sonhos” que são mortos ao longo do tempo, Lima Barreto enfatiza novamente o aspecto regenerador daqueles mesmos sonhos presentes a cada entrada do mês de maio.

Lima demonstra, nesse texto, sua frustração diante da situação em que se encontrava, percebendo o quanto os seus desejos e os daqueles de sua mesma descendência surgidos com a abolição da escravidão não haviam sido contemplados. Essa perspectiva é novamente apresentada por Lima numa crônica do ano de 1921 na qual comenta a data da proclamação da República, afirmando que não quis ler nos jornais notícias das festas comemorativas da referida proclamação. Seu olhar, no entanto, voltou-se para a triste notícia da morte da princesa Isabel e a constatação de que nas suas leituras de jornais daquele dia “não se discutia uma questão econômica ou política, mas um título do Código Penal” o qual representava para o autor a negação da tão proclamada liberdade consentida pela Lei Áurea assinada por aquela princesa em 1888.

Barreto, ao evocar o 13 de maio nesses textos, sugere a continuidade do preconceito em relação aos negros e seus descendentes bem como a constituição de novos mecanismos para restringir sua liberdade que nem a mudança de regime pôde dar fim. Além disso, ele indica a permanência do ideal de liberdade daqueles dias de 1888 e a tensão que isso criava no estabelecimento das relações entre os habitantes da cidade do Rio de Janeiro do início do século XX.

O outro momento vivenciado por Lima Barreto na sua infância que sinaliza uma possível compreensão de sua passagem pela Federação de Estudantes, ou melhor, para sua saída foi a Revolta da Armada de 1893. Durante uma das idas e vindas do continente à Ilha do Governador em companhia de seu pai, Lima presenciou o questionamento que aquele recebeu de um soldado. Assim João Henriques “confidenciou ao filho”:

- Você sabe o que aquele soldado queria?
- Não, papai!
- Queria que eu lhe dissesse por que esses dois homens (referia-se a Custódio e Floriano) estão brigando.
Afonso impressionou-se com a ignorância do soldado. “Nunca podia imaginar que um homem arriscasse sua vida sem saber por que nem para quê.” Isso lhe pareceu, então, apesar da pouca idade que tinha, “estúpido e indigno da condição de homem”.

Talvez aí esteja um dos motivos que levou Lima Barreto a romper com Federação dos Estudantes quando esta apoiou o serviço militar obrigatório. No entanto, ainda na Politécnica, ele vai ter a oportunidade de publicar seus primeiros textos, em decorrência de sua amizade com Bastos Tigre. Este o convenceu a tornar-se colaborador de um “jornalzinho de estudantes” denominado A lanterna em 1902 cuja redação funcionava em cima do Café Cascata. Era “um órgão oficioso da mocidade” das faculdades, dirigido por Júlio Pompeu de Castro e Albuquerque e que mantinha uma seção em cada faculdade. Com a saída de Bastos Tigre da seção da Escola Politécnica, Lima Barreto ficou sendo, além de colaborador, o responsável por essa seção.

Em seu artigo de estréia no qual assina Alpha Z, ele realiza um comentário sobre a recepção dada aos marinheiros chilenos pela Politécnica recheado de piadas sobre os professores e os estudantes, revelando o tom irônico e caricatural que tanto marcaria seus textos posteriores. Essa colaboração no pequeno periódico estudantil faz com que Lima se torne mais conhecido, ampliando sua rede de relações e, de certa forma, extravase sua indignação quanto àquele ambiente acadêmico.

Ainda na Politécnica, Lima Barreto vai ter contato com a doutrina positivista que lá predominava, favorecendo o interesse que já demonstrava pelo estudo da Filosofia e o conhecimento da forma como os seus colegas e professores se apropriavam do pensamento de Comte. Isso será de grande importância para o futuro escritor, pois muitos de seus colegas vão assumir cargos públicos como o seu desafeto o baiano Miguel Calmon du Pin e Almeida que se tornará ministro, servindo esse contato como “matéria-prima” para as suas interpretações da própria história do país realizadas em seus textos literários.

Diante disso, fica claro o fascínio de Lima Barreto pelo professor Oto Alencar apontado pelo biógrafo Francisco de Assis Barbosa. Esse professor era um “geômetra notável” com “requintado gosto literário”, sugerindo em suas aulas “idéias novas” e abrindo os “horizontes” para seus alunos. Ele deve ter chamado a atenção de Lima Barreto também pela crítica que fazia ao positivismo, principalmente em 1900 quando Lima repetia o primeiro ano do curso de Engenharia por causa de Cálculo, disciplina da responsabilidade do positivista Licínio Cardoso.

Em suas anotações pessoais - fontes reveladoras das suas hesitações, projetos de romances, opiniões sobre diversos assuntos tanto de cunho doméstico quanto de interesse público -, encontramos um plano de curso de Filosofia escrito em 1903 que nos fornece uma seleção de textos, realizada por Lima Barreto, acerca dos fins da construção dos conhecimentos filosófico e científico.

Nessa seleção, podemos perceber alguns pontos contrários às proposições positivistas que, possivelmente, são resultados das observações feitas por Lima Barreto a partir daquelas leituras nas bibliotecas e da sua experiência na Escola Politécnica, como, por exemplo, as seguintes anotações :

[...] O que define uma ciência não é o objeto que ela considera, é o ponto de vista em que ela o considera. Se se propõe definir uma ciência pelo seu objeto, é preciso dizer-se que esse objeto não é tal qual existe nas cousas, mas tal qual ele é para a ciência. A ciência vem a ser, portanto, um ponto de vista sobre as cousas. [...]

Mais adiante a respeito do método filosófico, ele destaca:
[...] Usa da abstração, da determinação, da síntese e da análise, da indução e da dedução. Mas, mesmo assim, o seu método possui caracteres específicos, tanto mais que o filósofo sabe que, além de tais processos de chegar à verdade, a inteligência possui outros que o cientista não admite nem emprega, o sentimento, a intuição.

Vemos nesses trechos idéias contrárias à objetividade do conhecimento científico propagado pelo positivismo e a refutação de uma das suas máximas que considera todo conhecimento dito “transcendente”, situado além de qualquer possibilidade de verificação prática como tendo que ser descartado. Além disso, essas anotações nos possibilitam o contato com os primeiros indícios dos estudos que Lima Barreto realizava e algumas idéias apropriadas para a criação de suas obras.

O último aspecto dessa pequena trajetória do jovem Lima que merece ser destacado por ter uma importância considerável para os objetivos desse trabalho é a sua experiência como suburbano. Vimos que após se tornar o chefe da família com a loucura do pai e iniciar sua vida no funcionalismo público, ele se muda para o subúrbio de Todos os Santos em 1903.

Nesse local viviam, predominantemente, negros e pobres. Muitos deles, possivelmente, foram aí residir por conta da desaproriação e demolição de casarões e outras edificações antigas do centro da cidade que marcou os trabalhos iniciais da reforma urbana do prefeito Pereira Passos. Lima, que nesse momento passava por dificuldades financeiras, alugou uma casa nesse subúrbio e passou a ter um contato maior com as camadas populares.

Dessa convivência, Lima Barreto pôde observar as dificuldades pelas quais passava essa parcela da população, suas aspirações e seus costumes que se transformariam, pelas suas mãos, em matéria literária. Essa nova experiência para Lima, contudo, fez com que se sentisse, de certo modo, mais deslocado.

Se na Politécnica e na Secretaria de Guerra em que trabalhava sofria com o preconceito de seus colegas, no subúrbio não via o reconhecimento e respeito pela sua “superioridade intelectual”, não tendo com quem travasse as discussões a que estava acostumado realizar. Assim ele escreve em seu diário no dia 3 de janeiro de 1905:

Eu tenho muita simpatia pela gente pobre do Brasil, especialmente pelos de cor, mas não me é possível transformar essa simpatia literária, artística, por assim dizer em vida comum com eles, pelo menos com os que vivo, que sem reconhecerem a minha superioridade, absolutamente não têm por mim nenhum respeito que lhes fizesse obedecer cegamente. [...]

Nessa confissão, percebemos Lima Barreto estabelecendo limites para suas relações sociais como também explicitando o que, naquele momento, parecia interessante como tema para produção literária, uma vez que no ano anterior ele já havia escrito a versão incompleta de Clara dos Anjos que denunciava o preconceito contra as mulheres negras e suburbanas. Ele se mostrava, dessa forma, ao lado da defesa e valorização das camadas pobres, mas se sentia, ao mesmo tempo, distanciado daquele mundo suburbano pela educação que teve acesso, o que contribuía ainda mais para sua reflexão acerca das contradições da sociedade carioca do início do século XX.

Diante dessa visita pela trajetória do jovem Lima Barreto, observamos situações em sua vida de grande ressonância para as suas escolhas posteriores, principalmente para a sua atividade literária. A fim de que possamos ter uma melhor condição para avaliarmos a sua constituição como escritor e os desafios que vai lançar para a sociedade de sua época, temos agora que estudar, na sua trajetória, as condições materiais encontradas para publicar seus textos bem como as novas relações que estabeleceu naquele momento."

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Fonte:
Carlos Alberto Machado Noronha: “Lima Barreto entre lutas de representação: Uma análise da modernização da cidade do Rio de Janeiro no início do século XX”. (Dissertação apresentada à banca examinadora da Universidade Estadual de Feira de Santana como exigência para a obtenção do grau de Mestre em História. Orientador: Prof. Dr. Rinaldo Cesar Nascimento Leite). Feira de Santana, 2009.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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