O proletariado no romance "Os Maias"



Os Maias, na opinião dos críticos, ocupa o lugar de obra mais importante entre as criações do grande romancista português, por constituir, de forma resumida, um apanhado do modo de vida, em Portugal, no século XIX.

Do subtítulo Episódios da Vida Romântica, despontam diversos episódios da sociedade romântica da época da Regeneração. Muitos são os cenários onde passeiam personagens que retratam as qualidades, os defeitos e as mentalidades de certos grupos profissionais, sociais e culturais.

O grupo profissional e social analisado nesta pesquisa – “pessoal doméstico” – tem também importância no conjunto do romance.

Como patriarca da família, Afonso da Maia constituía para todos um valor de referência. Por amor a sua esposa deixou seu filho, Pedro da Maia, crescer e ser educado segundo cânones tradicionais portugueses. Porém, a educação de seu neto, Carlos da Maia, foi totalmente diferente. Educado à maneira inglesa, com normas rígidas, intensas atividades físicas, sem o tradicionalismo da cartilha católica, Carlos torna-se um belo homem, física e intelectualmente. O responsável por esta educação típica do sistema inglês é o preceptor Mr. Brown.

Brown, partidário de uma educação que concede primazia ao desenvolvimento e equilíbrio físicos, ensinara Carlos da Maia a remar e a fazer exercícios de trapézio, numa predominância de atividades de educação física. Sobre o assunto, discorre o mordomo Teixeira:

Deixava-o correr, cair, trepar às árvores, molhar-se, apanhar soalheiras, como um filho de caseiro. E depois o rigor com as comidas! Só as certas horas e de certas coisas... E às vezes a criancinha, com os olhos abertos, a aguar! Muita, muita dureza
(QUEIROZ, 2003, p. 40)

Visto como um “herético” e “protestante”, a presença de Brown causava desgosto, principalmente ao abade Custódio, que preconizava que “deve-se começar pelo latinzinho, deve-se começar por lá. É a base; é a basezinha”. Brown, sempre energético e possante, replica ao abade que “não! Latim mais tarde! Primeiro músculos, músculos!” (QUEIROZ, 2003, p. 43).

Afonso da Maia aprova esta orientação de Brown profundamente: “O latim era um luxo de erudito. Nada mais absurdo que começar a ensinar a uma criança numa língua morta. O primeiro dever do homem é viver. E para isso é necessário ser são, e ser forte. Toda a educação sensata consiste nisto: criar a saúde, a força e os seus hábitos, desenvolver exclusivamente o animal, armá-lo de uma grande superioridade física, tal qual como se não tivesse alma. A alma vem depois. A alma é outro luxo. É um luxo de gente grande” (QUEIROZ, 2003, p. 43).

De fato, Carlos cresce atlético, são, belo, magnífico, mas isso não quer dizer que esta criação foi em tudo eficaz, prova disto é que se torna um diletante e mais adiante, ao tomar conhecimento do terrível desfecho de sua história amorosa com Maria Eduarda, vê-se assombrado com a morte do avô e torna-se um fracassado da vida. Assim, jovem, bonito, inteligente, cobiçado e culto, com tudo para se tornar um vencedor, Carlos é destinado, tal como seu pai, a fracassar.

Através de Brown, D. Afonso traz para Portugal algo que ele achava que a Inglaterra tinha de bom, uma educação rígida, fora dos padrões portugueses, porém, agora vemos, nem tão eficaz assim.

Teixeira, o mordomo de Afonso, empregado tão antigo da casa que já era tratado familiarmente, sempre muito acolhedor para com os convidados do Ramalhete, servia D. Afonso com apreço e cuidava dos escudeiros com rigor, mas não aprovava o modelo de educação inglesa do preceptor Brown. A propósito afirmava:

Coitadinho dele, que tinha sido educado com uma vara de ferro! Não tinha a criança cinco anos já dormia num quarto só, sem lamparina; e todas as manhãs, zás, para dentro duma tina de água fria, às vezes a gear lá fora.. E outras barbaridades
(QUEIROZ, 2003, p. 40).

Outra que também não aprovava a educação ministrada por Brown é a governanta Gertrudes, administradora do Ramalhete. Recebera o menino dos braços da ama na noite em que seu pai, Pedro da Maia, suicidou-se. Terna, amável e familiar, tratava Carlos por “o menino”, praticamente como filho. Tanto Gertrudes, como Teixeira recebiam acolhedoramente os hospedes do Ramalhete, principalmente o administrador da família Maia, Sr Vilaça, por quem tinham grande apreço. Viviam atarefados com os serviços do Ramalhete: “A Gertrudes toda atarefada entrara com os braços carregados de roupa de cama: o Teixeira bateu vivamente os travesseiros...” (QUEIROZ, 2003, p. 35).

Tinham a função de gerenciar o lar de Afonso da Maia, supervisionar o restante dos criados, acolher e bem tratar os hospedes, manter a ordem e limpeza da casa, enfim, trabalhadores competentes que, com o passar dos anos, são tratados familiarmente por todos que preenchem, de alguma forma, o Ramalhete:

O mordomo, o Teixeira, que ia já embranquecendo, mostrou-se todo satisfeito de ver o Sr. administrador, com quem às vezes se correspondia, e o conduziu à sala de jantar onde a velha governanta, a Gertrudes, tomada de surpresa, deixou cair uma pilha de guardanapos, para lhe saltar ao pescoço
(QUEIROZ, 2003, p. 37).

Eça não relata com detalhes o falecimento desses estimados trabalhadores domésticos, mas em poucas palavras descreve uma lastimável perda que, involuntariamente, muda o cenário de um ambiente outrora familiar:

Mas a existência neste meio rico não era agora tão alegre: O Teixeira primeiro, a Gertrudes depois, tinham morrido, ambos de pleurises, ambos no entrudo. Agora, as férias, realmente, só eram divertidas para Carlos quando trazia para a quinta o seu íntimo, o grande João da Ega, a quem Afonso da Maia se afeiçoara muito...
(QUEIROZ, 2003, p. 64).

Batista, conhecido familiarmente por “Tista”, criado absorvido pela família, vivendo inteiramente ao serviço dos seus interesses, é nomeado no romance como “o famoso criado de quarto de Carlos” (QUEIROZ, 2003, p. 66). Este viera com o preceptor Brown para Santa Olávia e acompanhou Carlos da Maia desde os seus onze anos de idade. Tinha um ar excessivamente gentleman e servia a Carlos acompanhando-o a Coimbra durante o curso de Medicina. Por ter viajado muito com Carlos, tornou-se um amigo confidente, a ponto de colaborar nas suas aventuras amorosas:

Foi em Coimbra, nos paços de Celas, que Batista começou a ser um personagem: Afonso correspondia-se com ele de Santa Olávia. Depois viajou com Carlos; enjoaram nos mesmos paquetes, partilharam dos mesmos sandwichs no bufete das gares; Tista tornou-se um confidente.Tinha a considerável aparência de um alto funcionário. Mais tarde, durante as férias de Coimbra, acompanhava Carlos a Lamego e o ajudava a saltar o muro do quintal do sr. Escrivão da fazenda – aquele que tinha uma mulher tão garota
(QUEIROZ, 2003, p. 95).

O surgimento de um criado de quarto aproxima formidavelmente diferentes classes sociais. Batista solícito organiza o quarto de Carlos, cuida de suas roupas, da agenda, lê o jornal para transmitir-lhe os noticiários, cuida das correspondências amorosas, descalça-o, serve-o... Enfim, era seu braço direito, confidente e amigo, mas acima de tudo serviçal. Jamais tratamento será de igual para igual.

Mas não só Carlos da Maia possuía um criado confidente. Maria Eduarda tem em Melanie, sua criada francesa – “rapariga magra e sardenta, de olhar petulante” – (QUEIROZ, 2003, p. 238), que desde pequena lhe prestava serviços, uma confidente e amiga que se encarregava de empenhar suas joias quando a patroa se apaixona por Carlos da Maia e não quer mais receber ajuda de Castro Gomes, com quem até aí vivia:

A senhora levara o seu escrúpulo a ponto de que, desde que viera para os Olivais, nunca mais gastara um centil das quantias que lhe mandava o sr. Castro Gomes. As letras para receber dinheiro conservava-as intactas, entregara-lhas nessa tarde... Não se lembrava ele de ter a encontrado uma manhã à porta do Montepio? Pois bem! Fora lá, com uma amiga francesa, empenhar uma pulseira de brilhantes da senhora. A senhora vivia agora das suas jóias; tinha já outras no prego
(QUEIROZ, 2003, p. 335).

Sem dúvida, era comum, no século XIX, as Madames possuírem criadas de quarto para fazer o trabalho mais pesado. Maria Monforte tinha a arlesiana – sua criada francesa –, uma bela moça que via no amante italiano Tancredo uma “pintura de Nosso Senhor Jesus Cristo”:

A arlesiana, criada francesa de quarto de Maria Monforte, a cada momento aparecia lá a levar toalhas de rendas, um açucareiro que ninguém reclamara, ou algum vaso com flores para alegrar a alcova...
(QUEIROZ, 2006, p. 28).

Miss Sara, a governanta de Maria Eduarda e preceptora inglesa de sua filha Rosa, era natural de York. Ostenta uma aparência correta e aos olhos da patroa era rapariga muito séria, porém Rosa não lhe tinha afeição:

Vestia-se sempre de preto, com uma ferradura em broche sobre o colarinho direito de homem. Recuperara as suas cores fortes de boneca, e as pestanas baixas tinham uma timidez mais virginal sob o liso dos bandos puritanos, Gordinha, com o peito de pomba farta estalando dentro do corpete severo, mostrava-se toda contente da vida calma e lenta de aldeia
(QUEIROZ, 2003, p. 308).

A preceptora, por transparecer uma obsessão compulsiva pela ordem, sempre grave, astuta, metódica, puritana, laboriosa, sugere uma forte repressão sexual, expressa na comoção face às atenções de Carlos, deixando subtendida uma forte carência afetiva.

Encena-se, nos jardins da “Toca”, sob as ramagens, entre as relvas, no chão, um ato sexual entre a preceptora e um trabalhador qualquer. Carlos a surpreende rugindo, estirada na relva, sujando brutalmente o poético retiro dos seus amores... e treme de indignação. Não queria mais a presença desta “impura fêmea” junto de Rosa:

Bem lavada, toda correta, com os seus bondós puritanos, aceitava um qualquer, rude e sujo, desde que era um macho! E assim os embaíra, meses, com aquelas suas duas existências, tão separadas, tão completas! De dia virginal, severa, corando sempre, com a Bíblia no cesto da costura: à noite a pequena adormecida, todos os seus deveres sérios acabavam, a santa transformava-se em cabra, xale aos ombros, e lá ia para a relva, com qualquer!
(QUEIROZ, 2003, p. 313).

Esta personagem retrata, a princípio, a legítima inglesa, tal qual a literatura, o romantismo, a ociosidade, a riqueza, o abuso da domesticidade fixaram. Miss Sara vem de uma sociedade, que aparentemente não satisfaz às aspirações de sua “sentimentalidade”. Por fim, rende-se ao desejo sexual, ao que, aos olhos de Carlos, é imoral.

Eça de Queirós, em março de 1875, escreve de Newcastle ao amigo Ramalho Ortigão, aludindo “a besta que estes anjos têm dentro de si”. Explica ao amigo que se estas não fossem contidas, reservadas e limitadas, cairiam no delírio amoroso. Adverte a propósito, ao amigo: “Não se iluda na ilusão geral que toma a inglesa como a mulher ideal. Não: é, uma mulher excessivamente filha d’Eva e do pecado.

A força do desejo em Miss Sara revela o sexual enquanto vício e bestialidade. Ao ser surpreendida num ato sexual nos jardins da “Toca”, cria involuntariamente uma nota realista contrastante com o amor cheio de requintes de Carlos da Maia e, de certa forma, como comenta Eça sobre este episódio, “um reflexo da sua própria culpa”. Mais uma vez, o olhar é masculino. Miss Sara é vista “por fora”, ou seja, pelos olhos de Carlos, pelo ponto de vista dominante à época (machista), como “mulher indigna”.

Eça de Queirós trouxe, vemos isto neste episódio, para Os Maias, através também destas personagens secundárias, a discussão que se travava à época: o embate entre o dado particular da sociedade portuguesa e o universal, que viria da França e da Inglaterra, supostamente “civilizadas”.

Eça de Queirós abraça a idéia do romance como um elemento crucial na reforma de costumes. Mas o que queria o romancista com o Realismo? “Fazer o quadro do mundo moderno, nas feições em que ele é mau, por persistir em se educar segundo o passado?” O ideal prefixado pelo espírito realista inspira em Eça o desejo de criar e, ao mesmo tempo, fazer a “a anatomia do caráter” e “a crítica do homem”.

É imbuído deste princípio, embora já com algumas ambiguidades que começam a separá-lo das propostas estéticas dos anos 70, que o autor escreve Os Maias. Portanto, o que se faz ao longo deste romance é a dissecação da sociedade portuguesa do século XIX, que ele esmera por expor para apontar-lhe os males e a degeneração. A literatura de Eça tem uma maneira própria de recriação e de crítica dos males sociais e é caracterizada por traços bem particulares de apreender e tratar a realidade que a inspira.

Este novo modo de encarar a arte e a literatura se ocupa também de tipos populares, também da dinâmica das classes e do choque de interesses entre elas, embora isto não se dê diretamente, explicitamente. Porém, parece-nos, tudo adquire uma capa de “corrupção da sociedade” cujo responsável seria a mentalidade romântica e beata. O último capítulo do romance bem mostra isto, quando Carlos e João da Ega andam por Lisboa para notarem que, efetivamente, talvez nada tivesse mudado, apesar de décadas de luta dos liberais. Imersos nas transformações, sem o distanciamento tantas vezes necessário para se ver bem a história, erram, erram muito: o Portugal liberal, apesar dos pesares, já ia longe do velho Portugal de D. João VI.”

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Fonte:
Elaina Carla Silva Xavier: “Ninguém morre de fome em Portugal? – Pobreza e mobilidade social na obra de Eça de Queirós (1878 – 1888)”. (Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Letras, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Literatura Portuguesa. Orientador: Prof. Dr. Sérgio Nazar David). Rio de Janeiro, 2010.

Nota
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Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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