A civilização: o grotesco de Eça



“Nos textos não-ficcionais Os ingleses no Egipto, encontra-se também o grotesco. O riso, ora diminuído, continua a existir com humor leve, com ironia e com sarcasmo. O grotesco o arrasta para o lado do riso e da repulsa, pelo seu aspecto bizarro e caricato. Em um exagero caricaturesco, transforma os envolvidos no conflito político franco-inglês e egípcio em tipos, caracterizados pela hipérbole para somarem-se à crítica ao mundo inglês.

[...] onde os soldados egípcios, de fardeta de linho branco, davam o braço à marujada de Marselha e de Liverpool, onde as filas de camelos, conduzidos por um beduíno de lança ao ombro, embaraçavam a passagem dos tramways americanos, onde os sheiks, de turbante verde, trotando no seu burro branco, se cruzavam com as caleches francesas dos negociantes, governadas por cocheiros de libré [...].
(QUEIRÓS, 1882)

Seria talvez desonesto, decerto seria desproporcionado, o juntar aos nomes dos homens fortes que nestes últimos dois mil anos se têm arremessado sobre Alexandria e a têm deixado em ruínas - aos nomes de Caracala o pagão, de Cirilo o santo, de Diocleciano o perseguidor, e de Ben-Amon o sanguinário - o nome do Sr. William Gladstone, o humanitário, o paladino das nacionalidades tiranizadas, o apóstolo da democracia cristã.
(QUEIRÓS, 1882)

Segundo as pressuposições apresentadas por Said nesse campo de estudo, tanto o artista quanto suas obras são irrestritamente influenciados pela sociedade e, principalmente, por suas tradições culturais. Ele enfatiza que tanto os escritos eruditos quanto os imaginativos não são, em absoluto, livres; ao contrário, suas imagens e suas intenções estão previamente limitadas. Nesse sentido, um importante aspecto a ser considerado é o olhar humanista apresentado por Eça de Queirós, alinhando-se a uma visão que está além do seu tempo, uma espécie de antiorientalista. Segundo Said,

os progressos feitos por uma “ciência” como o Orientalismo na sua forma acadêmica são menos objetivamente verdadeiros do que muitas vezes gostamos de pensar. Em suma, meu estudo até agora tentou descrever a economia que torna o Orientalismo um tema coerente, mesmo admitindo que, como idéia, conceito ou imagem, a palavra Oriente possui uma grande e interessante ressonância cultural no Ocidente
. (SAID, 2007, p. 274)

pressuposições naturais que acabam por ser controversas no estudo do Orientalismo. Seria natural pensar que os estudos e a erudição seguem um curso de progresso, que eles melhoram a cada acúmulo de informação carregado pelos anos e que um aprimoramento de métodos através das gerações de eruditos que se aperfeiçoam com a geração anterior:

Assim, o Orientalismo pode ser considerado um modo de escrita, visão e estudos regularizados (ou orientalizados), dominados por imperativos, perspectivas e vieses ideológicos ostensivamente adequados para o Oriente. O Oriente é ensinado, pesquisado, administrado e comentado segundo maneiras determinadas
. (SAID, 2007, p. 275)

Ao contrário está Eça, visto que para o Orientalismo há um consenso de que toda e qualquer afirmação sobre o Oriente não muda em sua essência e de que somente esses tipos de obra parecem honestos ao orientalista. Sua pesquisa concerne nas bases dos textos orientalistas anteriores, os quais imprimem uma inimaginável pressão sobre a formação ideológica e sobre os novos escritores e eruditos.

Retornando ao grotesco, em artigo publicado em 8 de fevereiro de 1892, na Gazeta de Notícias, com o título A decadência do riso, temos uma ideia da espécie de grotesco que está presente nos textos de Eça. O artigo abre com uma citação, em francês, do “grande Mestre Rabelais” e decorre no sentido de expor o abatimento do riso nos homens da sua época; a gargalhada rabeleriana não existia mais na avaliação do jornalista. Para ele, o século XIX não tem mais “o dom divino do Riso” e conclui: “Ninguém ri - e ninguém quer rir”. E, em um tom que profetiza, acaba por prever o mundo de hoje quando escreve: “por causa da sua imensa civilização. Quanto mais uma sociedade é culta – mais a sua face é triste”. E dialoga com o leitor:

Abandona o teu laboratório, reentra na natureza, não te compliques com tantas máquinas, não te sutilizes com tantas análises, viva uma boa vida de pai provido que amanhã a terra, e reconquistarás com a saúde e a liberdade, o dom augusto de rir. Mas como escutar estes conselhos de sapiência um desgraçado, que tem, nos poucos anos que ainda restam ao século, de descobrir o problema da comunicação inter-astral, e de assentar sobre bases seguras todas as ciências psíquicas?
(QUEIRÓS, 1882, p. 46)

É possível encontrar o grotesco também na ficção queirosiana, como nas personagens do conselheiro Acácio, do Damaso Salcede dos Maias, do conde de Abranhos e do seu secretário, estes últimos representantes do corrupto mundo político pequeno burguês. O povo – como os trabalhadores rurais que serviam para grandes e médias propriedades e os serviçais domésticos não tinham representação numérica de destaque na nação. Por isso o grotesco queirosiano não poderia se servir do popular, ao contrário dos textos de Rabelais. Desse modo, o alvo da crítica dura de Eça se encontra na média e alta burguesias.

No seu Jornalismo, outro exemplo do grotesco encontra-se em uma publicação de 1897, na Gazeta de Notícias, a respeito de Sarah Bernhardt. O teor da crônica é o fato de que, julgando-se uma deusa, a famosa atriz concedeu uma entrevista ao periódico francês Fígaro. Ela se autointitulava uma magnífica atriz e dava detalhes das homenagens recebidas por seus admiradores do mundo. Personagens como essa e situações risíveis e caricatas, as quais, segundo Eça, chegam a beirar o inverossímil, como a dos estudantes brasileiros que abandonaram seus deveres e ficaram histéricos com a presença da atriz, afirmam a presença do grotesco em grande parte de seus textos, a salvaguardar seu inconformismo.

Como se pode perceber, o escritor e jornalista, com sua visão crítica, voltou-se contra a sociedade burguesa e questionou os novos valores materiais, como o dinheiro, que, para ele, era capaz de comprar consciências. Nas suas páginas não-ficcionais, na verdade, Eça reflete a imagem daquela sociedade que, em sua opinião, era covarde, discursando sobre seus valores como tradições e honra, estabelecendo uma espécie de paródia da sociedade.”

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Fonte:
PATRÍCIA AYRES PEREIRA: “O OLHAR QUEIROSIANO ENTRE CENTRO E PERIFERIA: “OS INGLESES NO EGIPTO”, EÇA DE QUEIRÓS (GAZETA DE NOTÍCIAS – 1882)”. (Dissertação apresentada à Universidade Estadual de Maringá, como requisito para obtenção do grau de Mestre em Letras, área de concentração: Estudos Literários. Orientador: Prof.ª Dr.ª Marisa Corrêa Silva). Maringá, 2009.

Nota
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As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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