"Um ponto para o qual já chamamos a atenção, e para onde nos voltamos novamente, diz respeito à política eleitoral e à atuação dos poderes constituídos no cotidiano representado
Em ambos os casos, temos presente o que chamamos de regionalização do mundo, ou seja, a absorção, em uma determinada concentração espaço-cultural, de uma prática consolidada em outro âmbito – o nacional, desta vez – e adaptada às suas estruturas relacionais peculiares. Essa situação enfatiza, em concordância com os conceitos de região há pouco abordados, que ela, a região, é o palco mais adequado para a representação suprarregional, seja como referência à nacionalidade – como permite a leitura superficial que ora desenvolvemos – ou à universalidade (como princípio político), se entendermos, mais profundamente, que a manipulação eleitoral seja uma denúncia ao sistema democrático como um todo; ou que a ambiguidade do juiz-fazendeiro representa como utópica a crença na isenção do Poder Judiciário, ou até mesmo de todos os poderes constituídos.
Uma vez que nos referimos a eles, vale lembrar que verificamos, anteriormente, que o posicionamento dos homens e das instituições sociais perante esses poderes é o ponto de partida de vários dos arcos componentes do feixe de relações regionais
Costa Brito representa um jornal da capital do Estado, Maceió, e deixa claro que seu negócio não é exatamente o de informar, mas o de adequar discursos à conveniência das situações, de modo a orientar a opinião pública. Pelo menos, é isso o que se compreende da confissão que faz ao admitir que abre mão da verdade em favor de determinados líderes:
– Querem jornal de graça. Para o inferno! A vida inteira escrevendo como um condenado, mentindo, para esses moços subirem! Só a despesa que se tem! só o preço do papel! E na eleição, coice. Nem uma porcaria, uma desgraça que qualquer prefeito analfabeto consegue com facilidade. Querem elogios. Está aqui para eles. (p. 71).
Uma observação de Paulo Honório, imediatamente anterior à fala do jornalista, não apenas contraria as queixas de falta de contrapartida na relação da Gazeta com entes governativos como também revela a eficácia do método, constatada pela aceitação, por parte de Costa Brito, de um emprego público em troca da mudança de ponto de vista do jornal: “A Gazeta, que sempre louvara furiosamente o governo, fugira para a oposição, por causa de um emprego de deputado estadual, e achava a administração pública desorganizada, entregue a homens incompetentes” (p.70).
Nesse mesmo sentido, o periódico Cruzeiro, de Viçosa, capitaneado pela personagem Azevedo Gondim, acostumou-se a receber subvenção de cento e cinquenta mil-réis por mês da prefeitura local. É por isso que Gondim indigna-se com o sucesso da revolução de
Gondim detestava acordos. Dente por dente, percebíamos? Dava-nos conselhos violentos, a mim, ao Nogueira, às árvores do pomar, e instigava-nos a uma contra-revolução (quanto mais depressa melhor) que varresse do poder aquela cambada de parlapatões. Queria um governo enérgico, sim senhor, duro, sim senhor, mas sensato, um governo que trabalhasse, restabelecesse a ordem, a confiança do credor e a subvenção de cento e cinqüenta mil-réis mensais ao Cruzeiro. Como íamos é que não podíamos continuar. (p. 207-208).
O que temos de comum entre as relações desempenhadas por essas duas personagens é a clara noção, que ambos possuem, da existência de uma espécie de sistema de trocas entre seus meios de comunicação e as esferas locais de poder constituído. Em troca de elogios – ou de ausência de críticas – espera-se, como recompensa, uma subvenção pecuniária ou um emprego público qualquer. Com isso, é inevitável a lembrança da sobrevivência do estatuto colonial, que, desde a fundação da imprensa no Brasil, acostumou a todos com práticas semelhantes; lembremos sempre de José Hipólito da Costa e seu Correio Braziliense (vide capítulo A memória social do narrador), o que nos permite chamar outra vez a atenção para o efeito de regionalização do mundo obtido por Graciliano Ramos.
Após esta breve revisão, temos novamente, ao fim e ao cabo, a presença do capital – na forma da colaboração financeira ou do salário fácil de um emprego público arranjado – como um importante vetor sobre a curva dos arcos de regionalidade, fato que, por si só, garantiria a inclusão de qualquer região na rede mundializada de relações humanas afetadas pelo capitalismo. Isso, entretanto, já foi dito no capítulo A memória social do narrador, e não será mais motivo de análise, a não ser para reforçar a ideia de que, independentemente de ter origem na esfera pública ou privada, a força do capital pesa muito sobre o rumo das relações humanas na regionalidade de São Bernardo, tornando necessário o desenvolvimento, para sobrevivência e ascensão social em tão competitivo ambiente, e em lugar dos valores éticos pregados pela própria burguesia, de um padrão malicioso de comportamento entre os que ambicionam, em maior ou menor grau, a possessão econômica: repare-se que a visão de mundo que norteia esses jornalistas – a exemplo do que ocorre com Paulo Honório – não é nem um pouco ingênua, orientando-se basicamente pela obtenção de vantagens econômicas; ardilosa, subverte conceitos e fatos para adaptá-los às necessidades ou ambições financeiras dos indivíduos, e é bastante comum nas relações de regionalidade daquele meio."
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Fonte:
Cristiano Paulo Pitt: "VIDA AGRESTE: MEMÓRIA E REGIONALIDADE
Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público
São Bernardo: região, regionalidade, regionalização
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