São Bernardo: região, regionalidade, regionalização

"Um ponto para o qual já chamamos a atenção, e para onde nos voltamos novamente, diz respeito à política eleitoral e à atuação dos poderes constituídos no cotidiano representado em São Bernardo, que, com forte relevância para a estruturação do romance, trazem consigo uma série de discussões de âmbitos nacional e internacional. Por exemplo, é ponto pacífico – e fundamental para o engajamento político que consensualmente se atribui à obra – que a figura de Paulo Honório sintetiza a classe dos coronéis, tão influente na definição dos rumos políticos do país durante a República Velha. A prática do voto-de-cabresto protagonizada pelo fazendeiro, evidenciada em já citadas passagens de São Bernardo, é apenas um caso explícito dos vários modos de exercício desta influência tacitamente aceita em uma sociedade que, se tem suas peculiaridades quanto às práticas de coação de votantes, não faz mais do que repetir o que se verifica, conforme também já citamos, sob a forma das mais diversas fraudes eleitorais naquele período da história brasileira (FAORO, 2001), todas visando ao atendimento das vontades dos dirigentes políticos. Igualmente, o coronelismo desenvolve outros mecanismos de dominação também expostos no romance, como quando promove a existência ambígua do jurista – caso do dr. Magalhães – que se desdobra em proprietário rural, evidenciando flagrante desarmonia de interesses entre tão dissonantes papéis sociais.

Em ambos os casos, temos presente o que chamamos de regionalização do mundo, ou seja, a absorção, em uma determinada concentração espaço-cultural, de uma prática consolidada em outro âmbito o nacional, desta vez e adaptada às suas estruturas relacionais peculiares. Essa situação enfatiza, em concordância com os conceitos de região pouco abordados, que ela, a região, é o palco mais adequado para a representação suprarregional, seja como referência à nacionalidade – como permite a leitura superficial que ora desenvolvemos ou à universalidade (como princípio político), se entendermos, mais profundamente, que a manipulação eleitoral seja uma denúncia ao sistema democrático como um todo; ou que a ambiguidade do juiz-fazendeiro representa como utópica a crença na isenção do Poder Judiciário, ou até mesmo de todos os poderes constituídos.

Uma vez que nos referimos a eles, vale lembrar que verificamos, anteriormente, que o posicionamento dos homens e das instituições sociais perante esses poderes é o ponto de partida de vários dos arcos componentes do feixe de relações regionais em São Bernardo. Exemplo disso é o que relatamos, no capítulo A memória social do narrador, sobre o comportamento da mídia perante o poder informal dos capitalistas. Agora, mediante a análise das ações protagonizadas pelas personagens Costa Brito e Azevedo Gondim, podemos ver como procede a imprensa diante do poder formalmente reconhecido.

Costa Brito representa um jornal da capital do Estado, Maceió, e deixa claro que seu negócio não é exatamente o de informar, mas o de adequar discursos à conveniência das situações, de modo a orientar a opinião pública. Pelo menos, é isso o que se compreende da confissão que faz ao admitir que abre mão da verdade em favor de determinados líderes:

Querem jornal de graça. Para o inferno! A vida inteira escrevendo como um condenado, mentindo, para esses moços subirem! a despesa que se tem! o preço do papel! E na eleição, coice. Nem uma porcaria, uma desgraça que qualquer prefeito analfabeto consegue com facilidade. Querem elogios. Está aqui para eles.
(p. 71).

Uma observação de Paulo Honório, imediatamente anterior à fala do jornalista, não apenas contraria as queixas de falta de contrapartida na relação da Gazeta com entes governativos como também revela a eficácia do método, constatada pela aceitação, por parte de Costa Brito, de um emprego público em troca da mudança de ponto de vista do jornal: “A Gazeta, que sempre louvara furiosamente o governo, fugira para a oposição, por causa de um emprego de deputado estadual, e achava a administração pública desorganizada, entregue a homens incompetentes” (p.70).

Nesse mesmo sentido, o periódico Cruzeiro, de Viçosa, capitaneado pela personagem Azevedo Gondim, acostumou-se a receber subvenção de cento e cinquenta mil-réis por mês da prefeitura local. É por isso que Gondim indigna-se com o sucesso da revolução de 1930, a qual redunda em mudança no comando político municipal e consequente suspensão daquela ajuda financeira, para o sarcasmo do correligionário Paulo Honório:

Gondim detestava acordos. Dente por dente, percebíamos? Dava-nos conselhos violentos, a mim, ao Nogueira, às árvores do pomar, e instigava-nos a uma contra-revolução (quanto mais depressa melhor) que varresse do poder aquela cambada de parlapatões. Queria um governo enérgico, sim senhor, duro, sim senhor, mas sensato, um governo que trabalhasse, restabelecesse a ordem, a confiança do credor e a subvenção de cento e cinqüenta mil-réis mensais ao Cruzeiro. Como íamos é que não podíamos continuar
. (p. 207-208).

O que temos de comum entre as relações desempenhadas por essas duas personagens é a clara noção, que ambos possuem, da existência de uma espécie de sistema de trocas entre seus meios de comunicação e as esferas locais de poder constituído. Em troca de elogios – ou de ausência de críticas espera-se, como recompensa, uma subvenção pecuniária ou um emprego público qualquer. Com isso, é inevitável a lembrança da sobrevivência do estatuto colonial, que, desde a fundação da imprensa no Brasil, acostumou a todos com práticas semelhantes; lembremos sempre de José Hipólito da Costa e seu Correio Braziliense (vide capítulo A memória social do narrador), o que nos permite chamar outra vez a atenção para o efeito de regionalização do mundo obtido por Graciliano Ramos.

Após esta breve revisão, temos novamente, ao fim e ao cabo, a presença do capital – na forma da colaboração financeira ou do salário fácil de um emprego público arranjado – como um importante vetor sobre a curva dos arcos de regionalidade, fato que, por si só, garantiria a inclusão de qualquer região na rede mundializada de relações humanas afetadas pelo capitalismo. Isso, entretanto, já foi dito no capítulo A memória social do narrador, e não será mais motivo de análise, a não ser para reforçar a ideia de que, independentemente de ter origem na esfera pública ou privada, a força do capital pesa muito sobre o rumo das relações humanas na regionalidade de São Bernardo, tornando necessário o desenvolvimento, para sobrevivência e ascensão social em tão competitivo ambiente, e em lugar dos valores éticos pregados pela própria burguesia, de um padrão malicioso de comportamento entre os que ambicionam, em maior ou menor grau, a possessão econômica: repare-se que a visão de mundo que norteia esses jornalistas – a exemplo do que ocorre com Paulo Honório – não é nem um pouco ingênua, orientando-se basicamente pela obtenção de vantagens econômicas; ardilosa, subverte conceitos e fatos para adaptá-los às necessidades ou ambições financeiras dos indivíduos, e é bastante comum nas relações de regionalidade daquele meio."

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Fonte:
Cristiano Paulo Pitt: "VIDA AGRESTE: MEMÓRIA E REGIONALIDADE EM SÃO BERNARDO". (Dissertação apresentada à Universidade de Caxias do Sul, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Letras, Cultura e Regionalidade. Orientador: Prof. Dr. João Claudio Arendt). Caxias do Sul, 2010.

Nota
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Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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